2011/09/29

A Revelação


Não sei como não percebi antes, devia estar ali na minha frente sempre, eu nunca vi, nunca dei conta, até aquele dia.
Espantei-me, consegui disfarçar bem, mas espantei-me sim, e por pouco não bati o carro.
Sim eu estava dirigindo.
A avenida estava cheia, mais um daqueles engarrafamentos matinais. Todos indo para o trabalho, de má vontade como eu, quero crer.
Mas divago, cada dia divago mais e mais.
Ela estava ao meu lado, escutávamos música no carro, o som estava alto para abafar o barulho dos outros carros na rua, o céu ainda estava clareando, horário de verão...
Foi então, que queimando um sinal vermelho, eu estava muito rápido para poder parar a tempo, ela passou sua mão, esquerda, na minha que displicentemente segurava o volante.
Mão cheia de anéis, pulseiras, unhas pintadas de vermelho (insisto sempre para que ela as pinte dessa cor), e então eu vi aquelas marcas na sua mão, marcas parecidas com sardas, mas que na verdade são marcas de idade, de idade!
Meu Deus!
Nesse momento dei-me conta que ela estava envelhecendo, ficando velha! Nunca havia me incomodado, ou mesmo dado conta dos pés de galinha em volta dos olhos, os cabelos brancos, sempre pintados, a pele continuamente tratada com cremes hidratantes...
Toda a nossa vida em comum passou diante de mim, junto com os outros carros que me fechavam, levando-me quase a chocar-me com um deles. A lividez que ela reparou em mim na hora, creditei ao susto da freada brusca, acho até que cheguei a “cantar pneu” para disfarçar melhor.
Ela tentou passar a mão em meu rosto, mas consegui disfarçar o repúdio colocando a cabeça para fora da janela do carro e xingar o motorista da frente, que não ouviu o meu desaforo.
Completei o percurso até o trabalho praticamente mudo, tinha medo falar qualquer coisa, sim eu sabia que nada que dissesse seria bom, tinha medo de ofendê-la, de acusá-la de ficar velha, de sua falta de consideração comigo.
Sentia-me ofendido e ridículo diante de tal reação.
Enfim cheguei.
Desci do carro, com certa aversão, que disfarcei bem, beijei-a rapidamente, e deixando de lado o elevador subi correndo pelas escadas, tal a ânsia de livrar-me de sua presença, sua lembrança, e chegar ao meu andar. Já em minha sala, liguei o computador e acorri ao banheiro, urgia ver-me ao espelho, tinha urgência disso.
E lá estava eu, refletido no cristal, um velho de cabelos ralos e brancos, um rosto carcomido pelas rugas e infeliz, tão desgraçada e miseravelmente infeliz que no meu peito o coração parecia querer parar de bater...
Então encostei minha cabeça no vidro frio e comecei a chorar.
Desesperei-me ainda mais ao ver que chorava sozinho, pois minha imagem no espelho limitava-se a me olhar com reprovação e asco.

2011/09/27

SOBRE CAFÉ, AMERICANOS E DÚVIDAS

Há duvidas cruéis que me assolam a alma e que me roem o coração, perguntas sem respostas que, por mais que eu pergunte, ninguém me responde...
Mas vamos começar do começo, que é sempre o melhor modo de se começar algo!
Vamos a ele.
Diariamente, chova ou faça sol, frio ou calor, nos encontramos na Bolsa Oficial do Café de Santos. Somos quase uma fraternidade, um clube fechado de três indivíduos - mais do que isso dá encrenca, porque logo pedem, em nome da democracia, o direito de falar e, conseqüentemente, discordar.
Três é um bom número!
Lá estávamos hoje, tomando nosso sagrado café, sentados em nossa mesa cativa, observando o movimento de turistas americanos. Todos já na casa dos sessenta e tantos anos ou mais.
Americanos típicos, grandões e rosados, com suas indefectíveis máquinas fotográficas penduradas no pescoço. Falando alto, rindo e, para profunda irritação das meninas do atendimento, pedindo café descafeinado!
Só eles mesmos...
Comentava a ironia da situação, o único lugar para se tomar um café decente é na Bolsa. Lá o café “É” de verdade, tipo exportação, e esses americanos apressados, em vez de esperarem o café chegar lá na terrinha deles, vêm bebê-lo aqui.
Enquanto eles penduravam-se em volta das mesas, continuávamos com nossa conversa fiada para passar o tempo até termos que voltar ao trabalho, quando entrou um que nos chamou ainda mais a atenção.
Vestido de safári, chapéu de lona verde camuflado, parecendo um caçador no qual só faltava um facão na cintura e um rifle as costas, usando óculos ray-ban, trazendo a tiracolo a esposa, uma velhinha magra com cara de missionária triste e submissa...
A guia turística deveria tê-lo informado de que o Brasil não é mais uma selva, pelo menos não totalmente, e que ele não precisava vir travestido de “Jim das Selvas” em plena savana africana. Só faltava aquela telinha de tule para protegê-lo dos mosquitos e moscas tsé-tsé.
O homem dava a impressão de ter vindo aqui não para tomar café, mas sim para caçar leões, tigres, sabe Deus o que mais, menos tomar um café!
E olhando para os americanos ali, expus a supracitada dúvida para o colega ao lado:

- Como é possível que eles dominem o mundo? Me responda Ó Sábio Vadinho!

Pensando ainda em Jim das Selvas, imaginei aquele americano sendo devorado por plantas carnívoras...
Preciso parar com tanto café!

2011/09/21

ESCREVER POR ENCOMENDA FUJA DESSA ROUBADA!

Aqui estou digitando essas linhas...
O que faço pelos amigos (ok, é menos que o que faço pelos inimigos – e são tantos...) poderia estar na praia, no cinema, em casa, na cama, ou mesmo, - oh infelicidade - trabalhando (o que na verdade deveria mesmo estar fazendo agora), mas não, estou tentando desenvolver um texto coerente e levemente inteligível para os leitores de “NÃO LEIA ESSE LIVRO![1]
Poderia me dedicar de “corpo & alma” (riam os que não me conhecem, riam bastardos ignorantes e apostatas) à uma crônica, poderia gastar linhas e laudas falando sobre o mais absoluto nada, preencher o vazio existencial dos leitores, que ainda teimosamente mantém essa brochura nas mãos.

Vamos lá:

“O céu azul me recebe alegre e esfuziante nessa segunda-feira, pós dia das mães. Tomei um frugal café da manhã, uma bolachinha de água e sal e uma fatia de queijo branco, ainda estou enfastiado pelo almoço de ontem, como, aliás, deve estar o nobre leitor. Trago na mente o sorriso fresco e alegre de minha velha mãezinha abrindo seu presente ontem, ela ouvia Emoções, do Rei, sobre a mesa da sala, um ramalhete de lindas rosas vermelhas e bombons, muitos bombons, alegria de nossa matriarca. Os filhos a cercavam de carinho e desvelo e os netos, ah!, essas crianças, corriam atrás dos gatos e dos cachorros, fazendo a alegria da casa com muita algazarra”

Não!

Tive que parar e correr ao toalete do escritório e vomitar, não posso me prostituir dessa forma, não posso, não devo e, principalmente, nada recebo para isso.

Não!

Não vou escrever nada que possa aumentar a minha taxa de glicemia. Não sou doce, não sou delicado, não escrevo para agradar, embora pela primeira vez (e quero crer, a última, pois são tantas as exigências, as divergências, os cafezinhos, as ameaças, os sapos engolidos, que me pergunto por que me submeto a isso) escrevo por encomenda.

Já pensei em desenvolver uma história, baseada em fatos reais que me foram me contado por uma pessoa incapaz de mentir ou mesmo distorcer a verdade, embora, verdade seja dita, vítima do mais alto grau de alcoolismo e leve demência.

O conto começa com uma loira perdida aos pés de uma montanha, sozinha, numa noite fria e que ainda ameaçava terminar em neve..., mas acho que essa história não futuro também.






[1] Mais um projeto fracassado!

2011/09/20

UM CONTO EM TEMPO REAL

- Pare de passar as mãos no rosto! – ordena-se duramente.

Continuando a coçar o rosto resolve que deve barbear-se, afinal ele pode até não ser um escritor, mas deve manter pelo menos uma boa aparência.
Diante do espelho do banheiro, encara-se por um longo tempo, até que começa a passar o creme de barbear. A lâmina começa a escanhoar o lado direito do rosto quando – Eureca!, ele grita- surge-lhe uma idéia. E como num filme americano, ele sai correndo com parte da barba por fazer.
Senta-se em frente ao computador e começa a digitar:

- “A casa estava vazia como um tumulo recém-construido...” – ele para de digitar e passa mão no rosto sente a espuma escorrer e vê que começa a pingar nos teclados. - Droga, droga, droga, merde. – pronuncia com raro prazer a única palavra que sabe dizer em francês – Merde!

Volta ao banheiro e começa a limpar a espuma de barbear, que agora já desce pelo pescoço. A água da torneira faz mais sujeira ainda, e ele decide tomar uma ducha, quem sabe além de limpar essa porcaria ainda ajuda a clarear as idéias.
A água quente começa a relaxá-lo.
Olhando pela janela, ele vê as pessoas que passam lá fora e uma cena ordinária chama-lhe a atenção.
Ordinária para os simples mortais, não para ele, um colunista transbordante de sensibilidade poética e consciência social. Na sua cabeça aquilo torna-se de imediato uma bela crônica mundana.
Para não perder a inspiração, corre novamente ao computador ligado sobre e mesa da sala. Vai pingando pelo caminho, já transformando a imagem palavras faladas, que com seus dedos ágeis de escriturário, há de transformá-las em letras, e essas letras em palavras, sentenças, e por fim, um história cheia de emoção, sentimentos...

- Sim, a crônica de hoje já estava pronta.

Mas ao chegar à sala, para sua consternação,lá está o notebook cheio de espuma, que lentamente começa a derreter e a penetrar entre os teclados...
Passa as mãos ainda molhadas sobre cada uma das teclas, piorando ainda mais a situação.
Desesperado pega uma meia que estava sobre o sapato debaixo da mesa. - Merde, merde, merde!
Aqui devo deixa claro aos senhores leitores a seguinte informação:

"MEIAS NÃO SE PRESTAM A TAL SERVIÇO! NÃO TENTEM ISSO EM CASA OU EM QUAQUER OUTRO LUGAR! "

Sigamos.
A meia espalha ainda mais a água e a espuma de barba, sujando agora todo o teclado. Então é tomado de um desespero duplo.

– Vou perder o computado e a história! – ele sacode o pobre aparelho, gira sobre si mesmo, pois o movimento de rotação há de expulsar todo o liquido. Gira, gira, gira até quase perder o equilíbrio. E milagrosamente o teclado seca.

Mas não nos preocupemos em saber se isso causará algum dano, afinal o computador não é o nosso personagem principal dessa história.
Sigamos.
Mais assustado que tonto e exausto ele senta-se na poltrona para retomar seu fôlego e pasmo, vê a sujeira que voou para as paredes. Ele afunda na poltrona e passa a mão no rosto. Parte da barba ainda está por fazer, dos cabelos escorre água, que num fio desce pelas costas e o faz despertar para o estrago que está fazendo na poltrona.

-Vai manchar o tecido! Merde, merde, merde.

Sem pressa, não por auto-controle, mas medo de quebrar uma perna, vai até a área de serviço procurar um pano para secar a poltrona e limpar, por mínimo que seja, as paredes.

- Minha história, minha história... – lamuria-se. Lá se foi a minha história.

Não encontrando nada, volta à sala e usa o outro pé de meia. Que como o pé anterior, que para ilustra melhor esse drama, vamos supor que tenha sido o pé direito, não só não ajuda, como anteriormente, espalha mais e deixa o cenário ainda pior.
Desolado, olha em volta, e o que vê o deixa paralisado, sem qualquer ação, e o tique nervoso o leva a passar as mãos no rosto. A barba por fazer, a poltrona por secar, as paredes por limpar, a história por escrever...

- Minha história, minha história... – segue-se o “merde”, prova cabal de sua miséria lingüística.

E para piorar, acaba bateria do notebook, deixando refletido em seus olhos o negro do monitor.

- Essa é a história da minha da vida... – diz desolado para si mesmo, com que tentando consolar-se.

E, como que empurrado por uma mola em suas pernas finas e úmidas, ele pula gritando “eurecas seguidos de merdesmerdesmerdes”.

- É isso, é isso, aqui está a história de hoje, não há nada mais triste para enternecer o corações dos leitores – o tolo acredita que leitores tem coração! – vou escrever a história da minha vida. É isso, a história da minha vida!

Louco, arrebatado, possuído, outra vez por uma história, ele põe-se a procurar por papel e caneta. Revira sua escrivaninha, mas nada de papel, nada. Nem papel de presente, papel de embrulho...
Para não perder a inspiração outra vez, ele começa escrever a história de sua vida nas paredes da sala.
Conseguiu resumir seu infortúnio nas quatro paredes manchadas de espuma de barba e água. Ao fim, quando a sua curta biografia estava toda ali, ele sente-se aliviado, aquela carga já não estava mais esmagando-o, ele estava exorcizado. O fantasma da narrativa estava fora de sua cabeça.

- Mas e agora? Como vou fazer para publicar isso? – A realidade fez-se presente, para seu desespero. Enquanto, sentado na poltrona molhada e manchada, recupera-se de seu desatino, toca o interfone.

É sua mulher chegando. Imaginando tudo o que vai acontecer, ele passa as mãos pelo rosto. A barba ainda está por terminar, o corpo ainda está molhado e cheio de sabão seco.

- Merde, merde, merde! Essas paredes do apartamento serão poucas para a segunda parte dessa história...

2011/09/19

RUYZINHO


How a little baby boy bring the people so much joy
“Christmas Must Be Tonight”
By The Band




Dulce, espero que você não tenha rasgado esta antes de ler.
Sei que jurei nunca mais entrar em contato depois da separação, mas nesses últimos dias tenho sido assombrado com imagens do Ruyzinho.
Me diga como está, ele já está na escola? Espero que não – não rasgue a carta, não rasgue!
Sei que no fundo de sua alma você sabe que tenho razão.
Como está o menino, posso perguntar dele?
Não sei por que insisto em perguntar, sabendo desde já que você não irá me responder...
Dulce, não te peço desculpas, perdão, nem me passa pela cabeça tentar uma reconciliação, já arrumei minha vida aqui, trabalho como zelador de uma capelinha aqui na cidade, e espero que você tenha acomodado a sua por ai (desculpe, disse isso só por delicadeza, não me passa pela cabeça te magoar de forma alguma).
Sei que pode te passar pela cabeça que te escrevo por causa de alguma necessidade, mas não te escrevo esta por nenhum outro motivo que saber do Ruy, meu pequeno e único filho (depois dele fiz vasectomia, decidi nunca mais ter filhos) quero tê-lo como único em minha vida.
Minha doce Dulce (espero que isso não te de ganas de rasgar o papel) tento imaginar como você está, as marcas que a vida e as preocupações deixaram em seu rosto...
Em mim as marcas são as olheiras profundas que trago, fruto das noites insones, dos pesadelos que me fazem acordar aos gritos e molhado de suor...
A pobre da Rute, coitada, ainda não se acostumou com isso, mesmo passado tantos anos.
A foto do Ruy, que trago na carteira, está tão amarrotada, cheia de vincos, manchada, que a criança está quase irreconhecível.
Dulce, se você ainda não rasgou essa carta, deve estar se perguntado por que estou dando tantas voltas e não dizendo nada, afinal, a última pessoa de quem você quer noticias é de mim e da Rute, aliás, me desculpe dizer o nome dela tantas vezes.
Dulce o que quero saber é se você está mesmo decidida a mandar o Ruy para escola. (juro que espero uma resposta sua, mesmo na forma de um telegrama, só com a palavra “não”, mas alguma coisa no fundo do meu peito...)
Você sabe que não deve fazer, e não digo isso por causa da pensão e do acordo de pagar pela assistência médica e educação do menino (que eu sonhava em ser doutor, doutor de qualquer coisa, mesmo que fosse doutor advogado), mas veja bem (estou sendo vítima dessa “força de expressão), não será bom para ele, não será bom para você, nem para ninguém, sem contar que se você fizer realmente isso, eu nunca mais dormirei, e a Rute (juro que essa será última vez que escreverei o nome dela) não suportará mais ser acordada aos gritos pelo resto de suas noites.
Pobre criatura...
Dulce abra os olhos, e ponha na sua cabeça de uma vez por todas, o Ruyzinho não é uma criança normal, embora seja fisicamente um Apolo tropical e hirsuto, o Ruyzinho, meu único filhinho querido, é um lobisomem...

Com carinho,
O sempre preocupado pai
Amaro.

2011/09/15

SONHOS

Aluguel de sonhos.
Tenho muito espaço e um cenário muito bacana. Tem um riacho de águas azuis e um jacaré que apareceu não sei de onde – acho que alguém o esqueceu por aqui - ; ele fica numa das margens e nada de um lado para outro o dia inteiro. Almoça bem, já que o rio é rico em peixes e, sendo um rio de sonho, tem, às vezes, até baleias jubarte para ele caçar.
O terreno é grande, largo e profundo, tem ar puro, grama verde e fresca, céu azul e límpido de dia e tremendamente estrelado todas as noites, exceto quando houver pesadelos, pois pesadelos em noites estreladas não funcionam... Não! Para essas ocasiões temos cá trovões, raios, tremores de terra, uivos, ganidos, correntes sendo arrastadas, gritos histéricos, gritos de terror, gritos de horror, vozes de crianças chamando chorosas e muito mais.
Basta consultarem nossos cardápios de terrores.
Pode-se colocar qualquer fantasia, delírio, devaneio, mesmo os mais insanos e tresloucados.
Sonhe sem medo e sem limites!
Traga cá seus fetiches oníricos.
O meu fetiche onírico recorrente são pedaços de montanhas flutuantes - como icebergs de cabeça para baixo – sob uma paisagem vermelho vivo, onde pterodátilos voam aos gritos - tenebroso...
Aqui você poderá voar, literalmente. Crie asas, asas angelicais – de alvíssimas penas, asas diabólicas –, de couro feito morcego. Seja um rei, um imperador, o rei do mundo, ou melhor, seja o dono do mundo, mande & desmande sem dó nem piedade. Ponha para fora aquele ditadorzinho que existe dentro de você!
Traga para cá seus desejos!
Traga aqui aquela garota linda dos tempos de escola. Sim, ela que nunca percebeu a sua abjeta existência, lembra dela? – como poderia esquecê-la, não é?, afinal você ainda rola na cama por ela...
Ah! Esses íncubos...
Traga para cá seu desejo mais recôndito, aquele ódio, aquela vontade de dar fim no seu chefe, no seu cunhado, em qualquer desafeto. Aqui ninguém o julgará, além de você mesmo e sua consciência – que, verdade seja dita, não tem qualquer serventia ou utilidade aqui!
Sonhe sem rédeas!
Venha para cá, venha viajar, atravessar fronteiras sem passaporte, sem vistos de entradas...
Venha, venha...
Nesse terreno vasto tudo é seu, tudo é possível, tudo é acessível. Você “É” o seu limite.
Sonhe em paz, mas cuidado com o jacaré!

DIVAGANDO


Estou na janela da cozinha aqui do escritório fumando e vendo a vida passar, e deparo com uma cena triste, um sujeito magro, barba por fazer, agarrado com uma trouxinha de cacarecos, sentado na passarela que cruza a linha de trens aqui no cais.
Fico matutando o que ele estaria pensando, estaria ali esperando a vida passar assim como eu?, estaria esperando a barca para o outro lado do canal?, estaria esperando o trem para jogar-se embaixo dele?

- Será? Sei lá...

Às vezes tenho vontade de sair correndo daqui e saltar para dentro de um navio qualquer desses que chegam por aqui, de passageiro ou carga, ser clandestino, sumir...
Ir para a África, me embrenhar nas matas (outra vez estou sendo vítima de minhas leituras de juventude, sonhando com uma África que não existe mais, no Tarzan, Jim das Selvas, Sir Richard Burton etc. É, realmente perdi muito tempo lendo...) e desaparecer.

- Fugir desse escritório... – suspiro soltando a fumaça.

Lá fora o sol brilha como que a me provocar, a me induzir à fuga. Enquanto escrevo outro navio passa. O sujeito agora está limpando as unhas com um canivete que tirou de sua trouxinha.
Até agora nada de trens, nem da catraia que faz a travessia.
Enquanto ele limpa as unhas encardidas fico namorando o mar. O cigarro está quase no fim, na mesa os papéis me esperam. Ouço o telefone tocar, suspiro e espero que não seja para mim. Dou uma tragada mais profunda, a fumaça deixa o mar mais etéreo, aumentando a sensação de sonho, devaneio, quase um delírio...
Outra tragada, menos minutos trabalhados.
Penso em tomar um café, mas não vale a pena, o café é ruim, e café ruim me desgosta de uma forma tão profunda que não consigo explicar, me deixa com a boca amarga e me azeda a alma, aumentando a vontade de sumir deste lugar.Acabou o cigarro, sobrou só a bituca que quase me queima o dedo, acabou meu tempo de fuga. Antes de voltar à minha sala olho outra vez o mar, os navios e o pobre coitado sentado na passarela.
Nada do trem ainda...

CRIANCINHAS


(ou Herodes, grande e incompreendido Herodes!)



...e as crianças continuavam correndo e gritando, empurrando os móveis pelo caminho, derrubando o que houvesse pela frente.
Os pais nada viam, nada ouviam, nada os incomodava. Serão os pais naturalmente anestesiados para as atrocidades cometidas pelas suas crias? Devem ser, senão as coisas não chegariam a esse ponto.
Eu me virava na cadeira de um lado para outro, um sorriso forçado anunciava o meu mal-estar com a situação. Comia uns salgadinhos para me distrair, mas não dava para fingir que não estava testemunhando aquilo, não dava.
Quando a última fileira de crianças passou correndo pela cozinha, gritando como se o mundo estivesse à beira da hecatombe, quase levando junto a geladeira, não resisti e fiz um comentário para quem quisesse ouvir:

- Pois é, Herodes tinha razão! Não é mesmo? – e engoli um bolinho de queijo engordurado com um falso sorriso de satisfação.

A dona da casa, querendo impressionar uma das mães que estava à mesa conosco, pergunta com afetação:

- Ah! é? E o que foi que ele escreveu mesmo?

A amiga, embaraçada, olha para mim constrangida e comenta:

- É aquele Herodes. O Grande, da Bíblia...

- Que cabeça a minha! Qual o versículo dele mesmo?

- Não tem versículo dele. Herodes era o Rei da Judéia que mandou matar as criancinhas, citado por Mateus...

- Que pecado, mas qual a razão? – perguntou com os olhos esbugalhados de indignação.

Olhei para a minha mulher, peguei uma coxinha de galinha, levantei-me da mesa e disse que já era hora de ir embora, afinal ainda tinha que levar os cachorros para darem a voltinha no quarteirão. Na rua comentei com a minha mulher que realmente Herodes sabia o que estava fazendo e que miseravelmente não fez escola...

Depois me perguntam a razão de estar me tornando um eremita.



A TIPINHA ENTRA NA LIVRARIA


Longos cabelos, tingidos; óculos fashion; roupa da moda - roxa; bolsa com frigobar; equilibrando-se num salto alto, aleatoriamente pega um livro.
Folheia-o como um alienígena fazendo necropsia num outro ser mais alienígena ainda (entenda estranhamento).
Quando atendida, fazendo-se de importante, com o dedo indicador direito no lábio, comenta:

- Livro pesado...

O atendente se prepara para o pior, afinal o livro tem pouquíssimas páginas. A madame continua:

- ...parece-me que o autor está num luto profundo sofrendo uma dor, dor de grande perda...

O atendente, coitado, tenta explicar:

- Mas esse é um livro de humor. Acho que a senhora não entendeu o que ele quis dizer.

Ela empurra os longos cabelos para trás e retruca:

- Pois para mim esse livro traduz toda a dor excruciante de uma imensa perda!

Não sei como terminou essa conversa sem sentido, pois peguei meu livro e fui embora imaginando essa tipinha comprando um quilo de filé num açougue e discutindo com o boi em questão foi morto!





2011/09/10

A PROMESSA DE CARMEM


Com os olhos inchados de tanto chorar - sim ele chorou sem que ninguém percebesse, mas ele chorou - Oswaldo olha o relógio de pulso, entre as renitentes lágrimas tenta ver as horas. Ainda falta muito para a meia-noite.
Oswaldo ainda veste o terno preto, que ainda recende à coroa de flores, fumaça das velas, aos perfumes das velhas parentas que o abraçaram, fumaça dos cigarros que fumaram durante o velório de Carmem. A boca estava amarga de tanto tomar café, as costas doíam de tanto tapinhas de consolo, o corpo estava moído de tanto cansaço, mas a mente não desligava.
Olhou outra vez para o velho relógio que dançava em seu pulso magro e cheio de veias azuis, e viu que o tempo avançara bem pouco.
Resolveu tomar um banho, longo e quente que, quem sabe, lhe traria um sono breve, porém repousante?
Subiu as escadas lentamente, quase como que conferindo os números de degraus que ele conhecia a trinta e cinco anos, olhou as ranhuras das paredes, as teias de aranhas que se formavam no alto do teto, ouvia sem prestar atenção nos ruídos dos velhos degraus de madeira. A porta do banheiro rangiu, mas ele também fez que não percebeu. Tirou as roupas e abriu o chuveiro.
As lágrimas deram lugar à água quente e ao vapor, lentamente os músculos foram relaxando e alguma coisa parecida com paz foi se apossando de seu esquálido e torturado corpo.
Mal se enxugou e largou-se na cama, aconchegando-se na depressão no meio do colchão, aninhando-se, dormiu. Dormiu sem sonhar. Acordou pouco depois das dez, percebeu mais do que sentiu que estava com fome, e olhando o que havia na geladeira resolveu que ficaria ainda mais um pouco sem comer.
Mais tarde isso seria solucionado, resolvido, e amanheceria o dia seguinte feliz, realizado e de barriga cheia.

- A morte não é fim. – ele leu essa frase escrita num bilhete colado com um imã na porta do frízer. Sorriu.

Olhou o relógio, eram onze horas, mais sessenta minutos...
Tornou a subir as escadas, agora mais rápido, tão rápido quanto a idade o permitia, entrou no quarto e vestiu-se.
Pôs uma camisa florida, comprada especialmente para essa ocasião, uma calça de linho branca, passou gel nos cabelos grisalhos, loção pós barba nos rosto e saiu.
Sorria enquanto se dirigia até o cemitério, onde a mulher cumprindo a sua promessa de voltar após a morte, já deveria estar lhe aguardando.
Promessas, promessas, são tantas as promessas que faziam um ao outro, -“Nunca vamos nos separar’ – diziam amiúde, - “quem for primeiro volta para o outro”.
Por isso a morte da esposa não o abalou.
A família, os amigos, até mesmo os funcionários da funerária, comentavam como o homem estava frio diante do corpo da mulher morta no caixão, não demonstrava qualquer sinal de dor ou abatimento. Pior ainda, parecia feliz, sorria, evidenciando até certa irritação quando abraçado e levando tapinhas nas costas.
Mas isso acontecera de manhã, quase ontem. Olha para o relógio, meia-noite em ponto. Ele estranha a ausência da mulher. Ela não está no portão esperando por ele como o combinado. Onde estaria? Teriam roubado o relógio com qual tinha sido enterrada?

- Malditos coveiros! – esbravejou baixinho para não ser escutado e confundido com ladrão de sepulturas. – Mas talvez o meu esteja alguns minutos adiantado. – tentou confortar-se com essa idéia.

Não demorou muito e logo ouviu a inconfundível voz da mulher que o chamava:

 - Oswaldo, Oswaldo você está aí?

Oswaldo emocionou-se, no seu íntimo achava que a mulher não voltaria do mundo dos mortos, ele jamais acreditara mesmo em reencarnação, não acreditava em nada, somente nas promessas da mulher. E ela cumprira mais essa.
Corre ao seu encontro, sorrindo, chorando, rindo, tremendo, arrumou forças não sabe onde para não gritar seu nome.
Lá estava ela.

Viva! - ainda com flores grudadas na roupa, e viu aliviado que o relógio ainda estava em seu pulso.

- Carmem você voltou para mim como havia prometido. Vamos recomeçar a nossa vida em outro lugar. Já pus até aplaca de vende-se na porta de casa...

Carmem olhava para Oswaldo com um sorriso plácido, calmo, um lago sem vento sob o luar. Ela esticava-lhe o braço, mas não se movia do lugar.
Oswaldo achegou-se a ela e a abraçou em seus braços com tamanha ânsia que quase a partiu ao meio.

- Vamos Carmem. Vamos embora antes que aparece alguém por aqui e nos veja. Vamos embora, vãos embora. Você cumpriu sua promessa e voltou para mim.

Carmem sorriu, pigarreou, girou a ponta do pé direito no chão fazendo uma pequena depressão no solo arenoso, e olhando para cima, como que procurando alguma estrela no céu, declarou.

- Sim Oswaldo, eu voltei. Sim estou aqui como o prometido, mas não para ficar com você, mas para te buscar, para você ficar comigo. Chega de traições com a Vânia do escritório, com a minha prima Alicinha, com Dona Francisca da farmácia. Nunca mais você vai me trair Oswaldo.

E puxando um apalermado Oswaldo pelo colarinho, pulou de volta para a sua cova.
...e no escuro um gato miou, espantando uma coruja que estava prestes a dar o bote num rato.

2011/09/09

UMA QUASE EPIFANIA

Quando andamos pelas ruas, devemos estar atentos, de olhos bem abertos para os sinais que a vida nos envia. Sempre há alguma coisa no cenário urbano (ou rural, dependendo de onde mora o leitor) que destoa de modo bem sutil.
Ora é um cavalo que coça a orelha - já viram um fazendo isso? Se não, o Vadinho pode contar isso a vocês - ora uma evangélica pregando para uma puta na porta do puteiro.
A palavra puta ofendeu os ouvidos do leitor?
Desculpe.
Mas quando se ouve uma música chamada “Mulher que se disputa”, temos que estar preparados para tudo. Porém não é disso que quero falar, digo, escrever.
Sigamos, para eu não me perder em elucubrações outras...
Ontem aconteceu a segunda opção. Estava indo embora para casa e, ao passar em frente a um dos muitos puteiros que há aqui no centro da cidade, vejo uma senhora de coque, saia preta sobre os tornozelos, com uma cara resignada de “Ó Senhor! O que faço em teu nome e por um terreno no paraíso”, entregando um folheto de sua igreja e tentando, creio eu, convencer a moça, (hahahahahaha, sim, divago) a largar aquela vida de pecado e devassidão.
Olhei para a cara da profissional do amor e balancei a cabeça com um riso sardônico na cara, que me foi retribuído no mesmo tom jocoso.
Segui em frente e atravessei a avenida ainda com o riso na cara, quando, do nada, me surge um senhor, baixinho, gordo, careca, quase uma réplica de Buda, não fossem os óculos quadrados na cara e uma pastinha 007 na mão esquerda.

- Eu também era um pavio-curto, briguento e encrenqueiro até o dia que me disseram que eu não era um sujeito belicoso, era só por demais orgulhoso. Isso mudou a minha vida.

Olhei para o lado, pensando que ele estivesse falando com outra pessoa que não eu, afinal não sou de conversar com estranhos na rua ou em qualquer outro lugar. Quem me conhece sabe bem disso.
Ele continuou com a arenga, até que resolvi cortar o assunto com minha peculiar delicadeza:

- Pois saiba o senhor que não sou belicoso nem orgulhoso, sou apenas muito, muito nervoso!

Pois não é que o sujeito sumiu. Não posso afirmar que ele sumiu no ar, haja vista ele não ter demonstrado, à primeira vista, ter a capacidade de voar, mas sumiu tão rápido que pensei ter sido uma alucinação.
Seria um aviso?
Se for, aviso de quê?



2011/09/01

REDENÇÃO

Um rangido de dobradiças anunciou a entrada de um freguês. O balconista olhou para os fundos da taberna e encostou-se no balcão. De dentro da escuridão que habitava o lugar, uma voz avisou:

- Cuidado com os cacos de vidro no chão, não vá se cortar com os pedaços de copos aí!

- Bom dia – disse o recém chegado. - Veja-me um rum.

- Bom dia - respondeu o balconista. – E emendou: - Sinto muito, senhor, mas ainda não estamos abertos para atendimento, aliás, estou ainda fazendo a faxina – e mostrou a vassoura e uma pá de lixo nas mãos.

- Mas só um copo de rum não vai lhe dar qualquer trabalho e como ainda não está aberto para atender, que chance há de alguém vê-lo me servindo, não é mesmo?

Concordando o rapaz o serve de uma generosa quantidade de rum e volta para o centro do salão para continuar a limpeza.

- Veja só essa sujeira, não sei como alguém consegue quebrar quase cem copos de cerveja... Olhe só a bagunça que me sobra...

Balançando a cabeça, ele continua a varrer e catar os cacos de vidro.

- Veja isso – diz ele para o sujeito ainda encostado no balcão sorvendo o rum. - Veja só isso.

O sujeito vai até a mesa e vê alguma coisa desenhada no tampo que o faxineiro insistentemente aponta.

-Parece um desenho de um arpão com uma corda, mas com essa escuridão quase não dá para ver direito – comenta, enquanto aperta os olhos para ver se consegue enxergar melhor.

-Não, não! Isso não é um desenho qualquer. Preste bem atenção nos traços e na tinta, isso aqui não foi desenhado, me parece ter sido tatuado aqui na madeira...

-Ora! Quem faria uma tatuagem numa mesa de bar? - diz o freguês fazendo um muxoxo.

- O senhor não faz idéia do que acontece nesse bar. Me diga se não está - snif, snif, snif - sentindo um cheiro azedo no ar! Parece que alguém anda fumando ópio por aqui...

- Estou sentindo tantos odores aqui..., mas o mais forte é o cheiro de cerveja azeda e, se não estou enganado, até cheiro de sangue. Mas com esse ar parado... Abra as janelas e deixe o sol entrar junto com o ar fresco da rua.

- Não diga isso! A patroa não colocou janelas na taberna para que ninguém de fora veja o que acontece aqui, e não admite que entre luz ou ar da rua – interrompe.

- Vejo que o senhor tem um bom olfato. Venha aqui ver isso - diz , levando o homem até o centro do bar, onde uma mesa está suja de sangue, pedaços de roupas e fios de cabelos.

- Me diga. O que o senhor acha disso? Todas as manhãs, quando chego aqui, encontro todos os tipos de sujeira, mas restos humanos?!? Isso está começando a ficar estranho até para mim. Tenho medo de que um dia a polícia bata aqui e me culpe por algum crime. Só Deus sabe como fujo desse tipo de encrenca... - Vejo que o senhor já esvaziou o copo. Aceita mais um gole de rum?

Os dois voltam para o balcão e ele enche novamente o copo do estranho. Continuam a conversar, enquanto o rapaz esvazia o lixo no latão que será posto na rua mais tarde.

- Parece que você não gosta de trabalhar aqui. Então me responda, por que continua? Não há nada melhor que você deseje fazer?

- Realmente eu detesto isso aqui, mas é isso que eu mereço. Me propus a acabar meus dias fazendo o que não gosto, tenho que sofrer, senhor, tenho que sofrer muito e muito... – diz isso e cobre o rosto com as mãos, ocultando uma lágrima. Serve mais rum para o homem no balcão e serve-se de um gole de aguardente. Toma de uma só vez e volta a levantar a cabeça cheirando o ar.

- Alguém está decididamente fumando ópio... O senhor não sente o cheiro? Com a vassoura em punho ele volta a varrer o salão.

- Malditos pombos – pragueja. – Veja só a sujeira que eles fazem... Os mágicos não poderiam fazer seus truques com outros bichos...? A platéia aplaude e eu limpo as penas e as fezes...

- Eu vi um cartaz colado ali fora. Ontem foi a última apresentação de um mágico. Como foi o espetáculo? Você assistiu?

- Não, senhor, aqui na taberna só entram os convidados da patroa, gente esquisita. Nunca fui autorizado nem convidado a vir aqui à noite, não que um dia eu quisesse... A patroa sempre deixou bem claro que eu nunca deveria vir aqui sem sua ordem e – olhando para os fundos da taverna – nem deixar que ninguém entrasse aqui fora de hora, sem sua autorização expressa – responde o faxineiro, tirando com uma espátula as fezes dos pombos coladas no chão e em algumas mesas.

- Mas você me deixou entrar – comenta o entranho.

- É verdade, mas acho que o senhor veio na hora certa, hoje estava precisado de falar com alguém...

-Já que é assim, então comece me dizendo a razão de você continuar trabalhando aqui, já que detesta esse lugar...

- Estou me punindo. Fiz muita besteira nessa vida e tenho que compensar de alguma forma, e o jeito que arrumei foi fazer os trabalhos mais desprezíveis, mais nojentos e execráveis – e sem conseguir segurar, começa a chorar.

- Mas o que você fez assim de tão terrível? Que crime você cometeu afinal?

Encosta-se no balcão, serve mais uma dose de rum ao freguês e outra aguardente a si mesmo.

- Sabe, senhor, sou órfão de pai e mãe. Uns dizem que meus pais morreram logo depois que nasci, já outros, que eles, sabendo que eu não daria para nada que prestasse, me jogaram na porta de uma velha parteira. Seja como for, fui criado pela velha que me tratou como filho, trabalhando feito uma escrava para me sustentar, educar e fazer de mim um homem de bem, mas... – suspira¬ - olhe só no que deu. Bebe mais da aguardente. Um dia, já adulto, cheio de vícios e cercado de falsos amigos, fui roubar a velha. O senhor acredita? Fui roubar a velha que me criava como um filho! Ela tentou me explicar que só tinha dinheiro para a comida, que se tivesse mais algum tostão sobrando me daria... Mas nem deixei a velha falar e, tomado pela ira, pela necessidade de meus vícios, dei-lhe um tapa no rosto. Não foi forte, ela nem chegou a virar a cabeça.., mas ficou ali com as mãos sobre o rosto vermelho e começou a chorar... Vendo aquilo, enraiveci ainda mais, peguei tudo o que pude na casa e saí para rua. O dinheiro que arranjei com aquilo dividi com os amigos e só voltei para casa dois dias depois.

Sem graça pelas lágrimas que ainda corriam pelo seu rosto, o rapaz volta a varrer o chão. Silêncio. Um suspiro, dolorido e profundo

- Então? Não vai me contar o resto? Vai ficar se escondendo atrás dessa vassoura?

- Quando voltei para casa, ela estava na mesma posição, com as mãos ainda cobrindo a face, morta. A coitada morreu de tanto chorar... Parecia uma estátua. Dura. Triste. Nesse dia saí de casa e caí no mundo. Desde então estou purgando esse pecado... O senhor não sabe pelo que já passei... Mas nada do que fiz até agora apagou a minha culpa. Veja aonde vim parar...

- Venha me servir outra dose, já está na hora de ir e não quero sair com a garganta seca.

Deixando a vassoura encostada numa mesa próxima ao palco, o rapaz volta ao balcão e enche o copo do estranho, quando ouve um guincho agudo vindo dos fundos do estabelecimento. Ele treme e sua de nervoso.

- Acho mesmo que o senhor deveria ir embora. A patroa está chegando e tenho certeza de que ela não gostará de ver o senhor aqui, e pode ainda me despedir ou coisa pior... Aquela mesa suja de sangue me dá arrepios!

O estranho toma seu rum e pede a conta.

- Não precisa pagar, fica por minha conta. Há muito tempo que não falava com alguém, já nem lembrava a minha voz, assim ficamos empatados. Pode ir em paz, mas nunca comente com ninguém que o senhor entrou aqui, nunca! – recomenda com firmeza na voz.

- Está certo, esse será o nosso segredo. Você me acompanharia até a porta? Aqui é tão escuro que sou capaz de me perder e não achar a porta, ainda mais com todo esse rum na cabeça – ri um riso meio forçado.

O rapaz o acompanha até a porta, que quando se abre deixa entrar uma forte claridade que até ofusca, e desviando os olhos para o chão ele vê, espantado e assustado, a sombra do estranho. Ela começa a transformar-se, deixando a forma humana e tomando contorno angelical...

- Quem é o senhor? – gagueja quase em pânico. O estranho oferece-lhe a mão e diz:

- Venha comigo, seu tempo aqui acabou. Alguém lá em cima intercedeu por você. Não tema mais nada...

Um vento quente bate a porta da taberna e da rua ouve-se o guincho estridente de uma porca furiosa...