2017/09/29

O QUE EU DISSE QUANDO CHEGOU MINHA VEZ DE PRONUNCIAR-ME


Depois de ouvir por horas dos cinco irmãos e cinco cunhados as mais lagrimosas desculpas, razões, motivos, “porque sins”, “porque nãos”, gritos, acusações, ofensas, ameaças, ranger de dentes, o mais velho dos filhos disse que agora era a minha vez [1]de expor minha opinião sobre o que fazer com os velhos. E quem me conhece, sabe que essa sempre foi “a minha praia...” O que faltou em apupos sobrou em silêncio e aversão por mim, mas sigamos.

Levantei-me dramaticamente devagar, aliás, os presentes não esperariam outra coisa de mim. Apoiei minhas mãos no tampo da mesa, olhei nos olhos de cada um à minha volta, pigarreei, tomei um gole de água, que bebi lentamente (quase gargarejando) e ao pousar o copo – coisa de segundos - bati fortemente com o punho na mesa fazendo, agora, por vontade própria, uma cena realmente dramática.

Pularam de suas poltronas, arregalaram os olhos, uns mais sensíveis (culpados talvez?) perderam o fôlego e os principais interessados demonstraram medo, medo de verdade. Alegrei-me, pois como podem ver, comecei bem.

- Vocês querem a minha opinião, pois aqui vai ela. Sou francamente a favor da internação imediata dos dois. Olhei para o velho casal, eles tiveram um calafrio, discreto, mas eu percebi.

– Vocês! – disse apontando o dedo indicador de forma dramática (detesto quando percebo que, contra minha vontade, agrado determinadas plateias), deveriam ser internados numa clínica imediatamente, para posteriormente serem transferidos para uma casa de repouso. Uma vez lá, deverão ficar em quartos separados em alas separadas, nunca mais se encontrando, nem em corredores ou jardins – quando forem levados para tomarem sol – nem durante as refeições. Deverão permanecer assim até que se esqueçam um do outro. Mas – lá vou eu ser dramático outra vez! – não pensem que faço isso por maldade. Não! – devo confessar que não fui muito convincente, mas os olhos marejados dos velhos já me bastavam no momento – Digo isso para o bem de vocês dois. Lá, os velhos – pronunciei os “velhos” olhando para os filhos, ignorando totalmente os interessados como se eles não estivessem mais lá – terão atendimento médico, enfermeiras treinadas, visitas de católicas piedosas, apoio psicológico e principalmente, nenhum motivos para se queixarem de nada! Juro que nesse momento senti a primeira praga da velha nas minhas costas.

- Mais ainda. Vocês terão pessoas para conversarem, para desaguarem esse mar de fel que os corrói por dentro.
Para a Dona Celinha vai ser como aquelas férias que ela sempre quis e o velho lhe negou. Lá terá casa, comida, roupa lavada e gente para conversar à vontade, não terá que pôr e tirar mesa, lavar louça, eles cuidarão de lembrá-los dos horários dos remédios, e quem sabe, visita dos filhos e netos saudosos (tá certo peguei pesado aqui) aos domingos...

Fiz uma pausa para mais um gole de água que bebi o mais lentamente possível. Na verdade essa pausa era uma provocação, sabia que a qualquer momento um dos filhos ou filhas pulariam em meu pescoço. Os importunava sim, mas é importante que os nobres leitores tenham em mente que eu nunca quis participar dessa reunião, mas o filho mais velho usou argumentos tão convincentes[2] que não o houve como eu recusar[3] e acabei vindo aqui. Sinto que vim não como mais um genro, mas como um artista que dá show em conferências e palestras, só para distrair os presentes, sem influenciar em qualquer resultado – e cá estava eu fazendo o que faço melhor, drama e palhaçada! Sorvido o último gole de água, voltei à carga.

- Agora vejam bem – apontei com esse dedo indicador que ainda haverá de ser item de colecionador no futuro - para o velho.

- Seu Bentinho, o senhor poderá se ver livre das tiranias da Dona Celinha, nunca mais comerá a gororoba ora insossa, ora salgada que ela lhe serve, poderá ler seu jornalzinho – esse momento foi meu ponto alto, por dentro, chorei por não estar sendo filmado – pois juro diante dos presentes que faço-lhe, de todo o coração, uma assinatura do Diário Oficial da União para que o senhor tenha o que ler pelo restos de seus dias. Pense nas enfermeiras que o atenderão, todas bonitonas, de uniformes brancos e justos, todas elas sempre sorrindo, sei que a princípio o senhor estranhará esse hábito das pessoas mostrarem-lhe os dentes todas as vezes que lhe virem, mas creia em mim, todas as pessoas, fora os dessa casa, fazem isso corriqueiramente. Logo o senhor se acostumará com isso. Imagine acordar e ver um dia claro, luminoso e, não se assuste, pois aquela grande bola de fogo no céu é o sol. Não me olhe assim tão espantado – não verdade ele estava era ficando apopléctico –.  E ao ser levado aos jardins pelas enfermeiras o senhor sentirá como é bom tomar solzinho da manhã. E logo irá sentir-se tão bem que perceberá como foi estúpido economizar tanto dinheiro por tanto tempo, que num átimo, pulará de sua cadeira de rodas – impagável a cara dele com os olhos quase soltando das órbitas – e saíra andando, andando não senhor, correndo...

Olhei para os lados enquanto o filho mais velho dava um calmante para o pai, e olhando para a velha vislumbrei satisfeito, que ela, com ódio desse escriba, tinha trincado o cabo da bengala.
Olhei para meu relógio e conferi as horas com o velho cuco na parede, dei a entender que tinha que ir embora e voltei ao pequeno e improvisado discurso.

- Não quero, e faço questão de deixar isso bem claro para os presentes, que não desejo nenhum mal aos seus pais, mas somente o melhor para eles agora que o fim se apresenta cada vez mais próximo e em cada esquina – “o fim se apresenta cada vez mais próximo e em cada esquina” -. Meu Deus, que momento de rara inspiração! – Tive vontade de dar tapinhas em minhas costas...

Os filhos olharam-se entre si, os velhos – pela primeira vez em muitos e muitos anos – fitaram-se nos olhos e procuraram por Deus naquela sala, mas posso afirmar-lhes, Deus não estava lá! E tremendo em suas bases perceberam que todas as suas maldades, suas maquinações e manipulações tinham cobrado um preço, muito alto, e EU estava lá cobrando...

- Quero, como já frisei anteriormente, unicamente o bem deles, um bem que jamais poderá ser encontrado aqui nessa casa, pois nenhum de vocês tem qualquer tipo de treinamento médico, com exceção é claro do Fred - marido da filha mais velha, veterinário com licença cassada –, então pelos motivos fartamente citados e expostos, voto por mandá-los imediatamente à uma casa de repouso, e nesse momento tiro de minha pasta 007 setenta e dois folhetos de clínicas de repouso e asilos,  sendo que sessenta e nove estão localizados em Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Acre. De olhos marejados, jurei que era a melhor, bastava pesquisar na internet, outros em Maranhão, Rio Grande do Norte e dois ou três nas Guianas[4].

- Para terminar tão longa e cansativa peroração, quero ratificar os meus melhores votos ao Seu Betinho e Dona Celinha, e desejo do fundo de meu (raso) coração todo o bem e toda a felicidade a vocês e que seja feita somente a vontade do Bom Deus! Então abaixei minha cabeça em uma muda oração que confrangeria o coração de qualquer um com um mínimo de fé na humanidade.

Terminando de falar esperei que alguém entusiasmado deixasse de lado certas antipatias por mim e aplaudisse meu discurso, mas que nada, somente o silêncio temperado por um enorme e amargo desprezo me acompanhou até fora da sala. Saí sem que o filho mais velho me pagasse a velha dívida prometida. Mas, uma vez na rua, praguejei sacudindo meus punhos para o céu: - Espero que todos vocês morram quinze minutos depois de encontrarem a felicidade![5]

Esperei que um raio seguido de um estrondo cortasse o céu como se fosse uma confirmação do registro da minha praga, mas...






[1] O sexto cunhado.
[2] Ele me devia dinheiro. Estava, secretamente, quebrado, pois perdeu tudo o que tinha em jogos e corridas de cavalos.
[3] Eu precisava daquele dinheiro!
[4] Omiti a que havia em Maceió, muito sol e praia, que nunca desfrutariam.
[5] Vide a cena em que Scarlett O’Hara jura nunca mais sentir fome em  “...E O Vento Levou”