2011/01/31

CATEDRAL


Entro em uma igreja velha - e não antiga - no centro da cidade estilo Gótico tardio, comprida, longilínea, com torres em forma de pontas agudíssimas, quase um cenário para um filme de terror. Atravesso seu umbral e para meu desgosto, por obra de algum modernista inimigo da fé de meus amigos católicos, a vejo totalmente pintada de branco, suas longas paredes, seu teto abobadado, de um branco que quase ofusca aquele que, desavisado e despreparado, ali entra.

Naquele mesmo momento deu-me vontade de sair correndo. Meu espanto só fez aumentar quando percebi que os vitrais também haviam sido substituídos por vidros brancos e foscos, fazendo-me afundar numa brancura opressiva e agonizante. Nenhuma imagem se via lá dentro.

Onde fui à procura de paz, uma solução, um refúgio, só encontrei desespero...

Explico-vos.

Numa igreja, principalmente uma Gótica, tardia ou não, procuro a grandeza, seja de um Deus, um Universo sem fim, tão grande (os dois) que quero ver na minha pequenez uma porta que sirva de saída de minhas angústias, desespero...

De que me adianta achar-me igual a Deus ou o Universo, se não consigo resolver meros problemas cotidianos?

Afinal procuro por algo mais que possa me auxiliar nessa hora de necessidade.

Mas, mesmo desiludido e frustrado, resolvi ficar por ali mais uns instantes...

Perdi totalmente a vontade (ou a coragem?) de orar e clamar por ajuda, e me deixei vagar à procura de entendimento para aquilo. Quem teria a idéia de pintar a igreja de branco por dentro, não deixando um canto sequer no escuro?

Não havia mais o lugar para as velas (há em mim um clamor por fogos, tochas e velas, eco talvez da Idade Média...), e sim caixinhas com pequenas lâmpadas que são acesas com o “simples” depositar de moedinhas! Teria o autor de tal concepção a idéia de que em cantos escuros escondem-se demônios? Ou será que ele acha-se em “pé de igualdade” com o Criador e o Universo? Passou-lhe pela cabeça que nessa “obra”(?) ele estaria “olhando nos olhos dos “Gigantes” como um igual?

Respeito a arrogância, mas nunca o mal gosto!

Deixando essas divagações de lado, levanto-me para ir embora, mais triste do que quando entrei...

Procurei ali uma luz no “céu”, mas tudo o que vi foi um prédio, pintado de branco, me afastando da ilusão de ter “saído” do mundo real, da dureza do dia-a-dia, ali estava eu em mais um edifício ordinário, como se fosse um prédio de apartamentos, um conjunto de escritórios, ou seja, mais um prédio comercial como outro qualquer...

Quando entrei ali queria sentir-me pequeno, minúsculo, a ponto de achar que meus problemas eram ainda menores que eu diante de toda a criação, mas vi que eu era do mesmo tamanho, talvez só pouca coisa maior que o verme que concebeu a idéia de fazer aquilo ali dentro...

Não pensem que sou religioso, não sou, sou um ateu espiritualizado (ironia de minha parte?) que às vezes procura abrigo e que dessa vez não encontrou.

Uma vez lá fora, percebi que o sol era menos ofuscante que a pintura da igreja...

2011/01/25

CINQÜENTA ANOS

(só você meu cigarro, me compreende)


Cinqüenta anos...
E teimo com o trema
Cinqüenta anos...
E daí?
Meio século de vida...
Tartaruga vive mais que isso!
Cinqüenta anos...
Tantos sonhos
Perdidos
Outros tornados
Pesadelos
Perdi cabelos
Ganhei barriga
Umas rugas
Cinqüenta anos...
Vejam só...
Grande bosta
Vos digo, grande bosta!
Trocaria tudo o que aprendi
(quase nada vos garanto, quase nada)
Para ter de volta o tesão dos vinte!
Cinqüenta anos...
Nada no banco
nas mãos
Ou nos bolsos
Cinqüenta anos e
Sou o pesadelo dos cobradores
Dos planos do passado
(quase nada realizado...)
Sobrou-me somente contar os dias
Para a aposentadoria...
Cinqüenta anos...
Cheguei à idade em que nos jornais
Não leio mais as manchetes
Mas o necrológio
Torcendo para não ver o nome de nenhum amigo...
(cinqüenta anos prá quê?)
Cinqüenta anos
Nunca esperei por isso, nunca!
Aos dezoito bradava:
Morrer aos trinta e cinco, aos trinta e cinco!
Não me perguntem por quê...
Mas ultrapassei a data limite e cheguei aos
Cinqüenta anos!
Os amigos de chopes diminuíram
Uns por pressão alta
(o sal das batatinhas)
Outros diabetes
(o açúcar das caipirinhas)
Outros por causa da barriga
Outros...
Cinqüenta anos...
Não vejo nisso uma vitória, não...
A memória (caridosa?) fez-me esquecer
As grandes aspirações
Mas ainda funciona para os horários dos remédios...
(um empate com sabor de derrota)
Cinqüenta anos...
Não quero comemorações!
Não quero presentes!
Não quero tapinhas nas costas!
(até porque me ataca a tosse)
Quero o mesmo esquecimento,
Que experimento um pouco todos os dias...


QUE A MORTE, DIFERENTE DA VIDA,
SEJA RÁPIDA E INDOLOR!
TIM TIM!

2011/01/21

VAIDOSA


(ou não fodas mais com a vida do meu amigo!)


hoje cansei
chateado com
lero-leros
conversas fiadas
palavras vazias jogadas ao ar
dei um basta
o momento crucial do:
dá ou desce!
fartei-me - talvez demasiado tarde -
das lágrimas
(em pixels)
das ladainhas
(fonte branca sob fundo negro)
das ânsias virginais
(aqui empregado só como ilustração)
das dúvidas infantis
cansei das “causadeiras”
das que publicam –impunemente:

“- não sei se dou, não sei se não dou...”
“- ele me amará com eu o amo?”
“ – oh! Meus leitores que devo fazer com ele?”

ora a vida passa
(rasteira na gente)
tão rápida
ligeira
vertiginosamente
e vocês falsas amantes de meio-período
falsas julietas de subúrbios
rapunzels de aplique
vampiras de nossa paciências
carpideiras renitentes...
hoje cansei
dei basta
sacrifiquei o resto de minhas forças
e dei uma basta.
não me incomode mais com suas
misérias falsamente existencialista
o que você quer é
palhaçada
(me desculpe ai Paiação
por tal expressão)
o que você quer é
se exibir às suas iguais
(pobre mundo esse que pastamos!)
o que você quer é
um homem para exibir
no picadeiro
em que você transformou a sua miserável
vida
em que és:
a mestre de cerimônias
bilheteira
vendedora de pipoca
a vaidosa domadora
de um leão sem dentes
sem amor-próprio
sem sombra...
esse circo acabou hoje para mim
que o fogo consuma essa lona
sem graça e sem cores
me pergunto até quando
sua vaidade homicida se alimentará
de dessas almas perdidas
desnorteadas e desamadas?
o que mais você fará para
alimentar a sanha
louca de seus leitores?
Viciados que estão em sua miséria cotidiana?
malditos sejam todos!
cada um!
cada seguidor!
cada um vocês bebedores!
desse fel hedonista!
desse sangue frio e aguado
que jorra dessa doentia vaidade!
Basta!
Estais excluída de meus favoritos...


2011/01/20

A PESCA

Enrolava a linha em volta da garrafa, molhada e já cheirando a mar, pescava com linhada, que dava mais prazer que vara e carretilha.

Rodou sobre a cabeça a chumbada, deu uma, duas, três voltas no ar e lançou-a ao mar.

Esperou uns minutos, nada dos peixes beliscarem a isca. Tornou a puxar a linhada, enrolar na garrafa e lança de novo n’água.

Assim passou toda a tarde.

Não tinha pressa nenhuma de voltar para casa. Olhou em volta procurando o cachorro, e o viu correndo atrás de gaivotas, latindo feliz da vida, indo e vindo atrás das aves. Só se ouvia o barulho das ondas e o latido do cão. Isso era bom, e sorria pensando no alvoroço que deveria estar em sua casa a essa hora. Gente falando alto, crianças correndo, os velhos gritando para se fazerem ouvir.

Suspirou e jogou a chumbada de volta à água, a linha corria e espalhava água salgada para os lados, nesse momento tocou o celular, viu que era a mulher procurando por ele.

Pensou se deveria atender ou não.

Não atendeu.

- Parou de tocar, - vai ver a mulher cansara de esperar que ele atendesse.

Recolheu a linha mais uma vez, nada de peixe, só água salgada e algumas algas. O cachorro continuava a correr atrás das infelizes gaivotas, estava molhado e sujo de lama, teria que tomar banho quando voltasse para casa.
Sorriu outra vez vendo a imensa alegria do cão. Novamente o celular tocou, sem pensar, quase como um reflexo, jogou o parelho no mar, em segundo depois arrependeu-se, teria que comprar outro agora.

- Mas que diabo a mulher tinha que ligar tanto?

Recolheu a linha, estava mais desanimado ainda com a pescaria. Não estava lá só para pescar, queria mesmo era ficar sozinho com seus pensamentos, os peixes seriam um bônus, mas essa chamada insistente da mulher...

Colocou o camarão no anzol, girou a chumbada sobre a cabeça e arremessou o mais longe possível, e esperou. Para seu espanto a linha deu um tranco, e ele imediatamente começou puxá-la.
Puxou, puxou e por fim na ponta da linha aparece um peixão, o cachorro parou a sua tola correria e veio ver o que o dono tinha conseguido, sentou-se ao seu lado abanando o rabo, quando o dono coçou-lhe a cabeça e as orelhas.

O sol começa a se pôr, o dono pergunta ao cachorro se deve continuar tentando mais um peixe antes de voltar para casa, em resposta o cachorro sai correndo para se divertir com as gaivotas.

O velho sorrindo começa a enrolar a linha em volta da garrafa...

2011/01/17

saudade
suas fotos antigas
liguei
-caixa postal-

lembrança
suas fotos em minhas mãos
e deu caixa postal

falta
suas fotos amassadas em minhas mãos
maldita caixa postal
-não deixo mensagem

raiva
suas fotos picadas pelo chão
caixa postal
o celular contra a parede


2011/01/14

Constatação

Ser solitário é:
Tomar café sozinho num balcão imundo de um botequim e ter por carinho - o único do dia - a tragada do cigarro.

2011/01/10

Constatação Preocupante....

Na sala pessoas rindo, copos vazios, pratos sujos, garrafas pelo chão, alegria; no quarto a mulher se tranca a ler Clarice Lispector.

2011/01/06

CELESTINO

DRAMA RELÂMPAGO E METAFÍSICO



Som de choro, soluços e fungadas de nariz.
A mocinha, vamos chamá-la de Eleonice, ainda esfrega o rosto da última bofetada.
Começa a chorar, quando a porta da sala é aberta de forma brusca e entra Jurandyr Tosco.

Jurandyr Tosco – Eleonice, o que te aconteceu?

Eleonice – O Celestino esteve aqui hoje e... - Empurrando os cabelos louros para trás, chora e gagueja.

Jurandyr Tosco – Celestino? Aqui? Como você pode permitir que ele atravessasse o umbral de nosso lar? – irado, ele grita – eco.

Eleonice tenta falar algo, mas é interrompida por uma outra bofetada violentamente desferida em seu rosto por Jurandyr Tosco, aumentando ainda mais o hematoma sob o olho direito.
Ela cai ao chão e rola até ser amparada pela parede pintada de amarelo canário do quarto de visitas, derrubando pelo caminho a mesinha de centro, vinte e dois bibelôs de cristal, uma ou duas cadeiras de cana da índia e por fim uma replica de o Triunfo da Morte de Bruegel, comprado numa feira de praia...
Jurandyr Tosco, chocado com a destruição dos bibelôs, presente de sua mãe para Eleonice, destrói todos os CDs e DVDs de Celine Dion que Eleonice tocava na hora em que ambos faziam amor. Antes de sair do apartamento, ele dá uma última olhada na mulher caída no chão coberta de cacos de cristal e uma tela atravessada na cabeça.

Jurandyr Tosco – Pobre Bruegel, sempre achei que você merecia sorte melhor. Ele sai e bate a porta.

Som de porta batendo.

O vizinho do terceiro andar reclama do barulho e ameaça começar uma confusão logo resolvida pela violência inerente de Jurandyr Tosco.

Eleonice– Jurandyr, esse teu mau gênio será o nosso fim... – fala chorando

Fim do Primeiro Ato

SEGUNDO ATO


Eleonice – Ainda chorando e maquiando o olho inchado – Pleno Segundo Ato e ninguém faz idéia de meu drama.

Toca o telefone.

Ela dirige-se à mesinha caída no chão e atende o aparelho.

Eleonice - Alô¬? Quem fala?

Toca a campanhinha, o fax dá sinal, a televisão liga sozinha, o vizinho do terceiro andar reclama, as flores nos vasos murcham, e a unha do de dedo anular direito quebra.
Eleonice – Minha unha nããããão – terminem esse ato, terminem esse ato, por favor. Uma voz poderosa vinda de todos os lugares responde.

Voz – Não! The Show Must Go On!

Eleonice – chorando - por favor mudem esse roteiro, aqui eu só sofro, choro, apanho, e acabaram de destruir meu cenário no primeiro ato. Por favor, eu sou linda, rainha da laje 2009, eu mereço o melhor, o melhor, o melhor – ri loucamente...

Voz – Luzes... Apaguem!
Som de objetos caindo.

Eleonice – Força Superior, eu te odeio, eu te odeio, entenda bem isso, eu te odeio.

Som de porta sendo chutada.

Entra Jurandyr Tosco mais furioso que o seu normal.

Jurandyr Tosco – Eleonice, responda-me o que eu estou fazendo aqui? Eu estava no aeroporto, quase embarcando no avião e quando dou por mim o que acontece? O que acontece é que me vejo entrando nesse apartamento, nesse maldito apartamento onde você me traiu com o Celestino.
Música dramática.

Eleonice – eu nunca o trai com o - interrompida por outra bofetada de Jurandyr Tosco.

Ela cai sobre a mesinha do telefone outra vez , mas em vez de chorar agora ela ri, ri e gargalha histericamente.

Jurandyr Tosco – Com essa gargalhada devo entender que você admite ter me traído com o Celestino?

Eleonice – rindo e corando ao mesmo tempo - não, Jurandyr, rio sim, mas rio de meu destino. Saiba você, Jurandyr Tosco, que há muito mais mistério entre o céu e a terra que pode entender sua vã – interrompida por outra bofetada de Jurandyr Tosco.
Jurandyr Tosco – Quantas vezes já lhe falei para nunca, nunca e nunca me chamar de ignorante! – Dá-lhe outra bofetada e sai do apartamento.
Som da porta batendo e voz do vizinho do terceiro andar reclamando do barulho, seguido de som de porradas.
Eleonice – gritando - Ok, ok, você me provou que existe uma força superior, que você pode mandar no meu destino, destruir minha vida quando bem entender, e daí? Me responda, o que você quer provar? Me diga!

Voz – Eu não me reporto a ninguém, não me explico a ninguém, sou um ser superior, muito superior a você, sua criaturazinha inferior e ridícula.

Som da porta da sala sendo aberta outra vez, e outra vez entra Jurandyr Tosco.

Jurandyr Tosco – Eleonice, não quero mais te dar porrada, tenho um avião para pegar e nunca mais quero ver a sua cara e esse apartamento onde você me traiu com o Celestino.

Eleonice – Mas é que, Celestino – outra vez interrompida por outra porrada de Jurandyr Tosco.

Jurandyr Tosco – gritando - Nunca mais pronuncie esse nome na minha frente, nunca mais.
Eleonice – Jurandyr, você não está entendendo – interrompida por um chute.

Jurandyr Tosco – furioso – Não me chame de ignorante, não me chame de ignorante, já te pedi, não me chame de ignorante – chuta o que restou da mesinha de centro – som do aparelho telefônico caindo ao chão.
Eleonice – Jurandyr, entenda que somos meros fantoches nas mãos de seres superiores, não somos donos de nosso destino, não temos livre arbítrio nenhum, tem alguém lá em cima – interrompida por outra porrada.
Jurandyr Tosco – Então é lá em cima que o celestino está morando? O sacana mudou-se pro quinto andar? Tá aí um lugar que eu nunca pensaria em procurá-lo – interrompido por Eleonice.

Som de outro chute.

Jurandyr Tosco – Nunca me interrompa, tenho poucas falas nesse drama e você ainda me interrompe?

Eleonice – É isso mesmo Jurandyr, isso aqui é um drama, um drama escrito por uma entidade muito superior que nós todos, tanto os que estão aqui deste lado como os que estão nos lendo, vendo ou ouvindo agora.

Jurandyr Tosco – nervoso – Pare com essa conversa, mulher, para agora, você está tentando me confundir.
Eleonice – Se é verdade que eu quero te confundir, suba até o quinto andar, procure pelo celestino.. - interrompida por um soco de Jurandyr.

Jurandyr Tosco – eu sabia que se te apertasse bastante você se entregaria. Então é aqui em cima mesmo que mora o tal do Celestino. Pois vou lá agora acabar com esse miserável.
Jurandyr Tosco sai intempestivamente batendo a porta e fazendo o vizinho do terceiro andar reclamar. Logo ele volta, nervoso e chutando a porta, que dessa vez cai definitivamente.
Jurandyr Tosco – Eleonice, nesse prédio não tem quinto andar. Me diga onde mora esse Celestino, me diga logo, eu tenho um avião prá pegar e eu perder esse vôo nem sei do que sou capaz de fazer. Me diga onde eu encontro o Celestino?


FIM DO SEGUNDO ATO


TERCEIRO E DERRADEIRO ATO
Deus ex-machina



Eleonice – Ok Celestino, ok, você provou seu ponto de vista O Jurandyr é a besta que você falou, ele é limitado, irracional e incapaz de compreender algum coisa metafísica, e que eu tenho muita resistência física, mas não vou me dedicar o Box-tailandês.

Jurandyr Tosco – Com quem você esta falando, ficou louca de vez? Para de falar com o teto! Eleonice, com quem você está falando? – Demonstrando medo pela primeira vez nesse drama - Que história é essa de se dedicar ao Box-tailandês?

Eleonice – Agora que você provou que está certo, será que você poderia dizer pro Jurandyr quem é o celestino?

Voz – Jurandyr – que corre a se esconder sob o que sobrou do sofá – Jurandyr Tosco, eu só fiz uma aposta com a Eleocine, que você irracional como é nunca compreenderia um drama metafísico como esse. Você foi uma falha na minha produção, mas antes de descartar-te resolvi provar que você realmente não tinha solução, e assim sendo, decido que vou apagá-lo desse texto, a partir de agora você não existe mais.

Toca a campainha e Eleonice, desligando a televisão, levanta-se para atender.


FIM

CATEDRAL



Entro em uma igreja velha - e não antiga - no centro da cidade estilo Gótico Tardio, comprida, longilínea, com torres em forma de pontas agudíssimas, quase um cenário para um filme de terror. Atravesso seu umbral e para meu desgosto, por obra de algum modernista inimigo da fé de meus amigos católicos, a vejo totalmente pintada de branco, suas longas paredes, seu teto abobadado, de um branco que quase ofusca aquele que, desavisado e despreparado, ali entra.

Naquele mesmo momento deu-me vontade de sair correndo. Meu espanto só fez aumentar quando percebi que os vitrais também haviam sido substituídos por vidros brancos e foscos, fazendo-me afundar numa brancura opressiva e agonizante. Nenhuma imagem se via lá dentro.

Onde fui à procura de paz, uma solução, um refúgio, só encontrei desespero...

Explico-vos.

Numa igreja, principalmente uma Gótica, tardia ou não, procuro a grandeza, seja de um Deus, um Universo sem fim, tão grande (os dois) que quero ver na minha pequenez uma porta que sirva de saída de minhas angústias, desespero...

De que me adianta achar-me igual a Deus ou o Universo, se não consigo resolver meros problemas cotidianos?

Afinal procuro por algo mais que possa me auxiliar nessa hora de necessidade.

Mas, mesmo desiludido e frustrado, resolvi ficar por ali mais uns instantes...

Perdi totalmente a vontade (ou a coragem?) de orar e clamar por ajuda, e me deixei vagar à procura de entendimento para aquilo. Quem teria a idéia de pintar a igreja de branco por dentro, não deixando um canto sequer no escuro?

Não havia mais o lugar para as velas (há em mim um clamor por fogos, tochas e velas, eco talvez da Idade Média...), e sim caixinhas com pequenas lâmpadas que são acesas com o “simples” depositar de moedinhas! Teria o autor de tal concepção a idéia de que em cantos escuros escondem-se demônios? Ou será que ele acha-se em “pé de igualdade” com o Criador e o Universo? Passou-lhe pela cabeça que nessa “obra”(?) ele estaria “olhando nos olhos dos “Gigantes” como um igual?
Respeito a arrogância, mas nunca o mal gosto!

Deixando essas divagações de lado, levanto-me para ir embora, mais triste do que quando entrei...

Procurei ali uma luz no “céu”, mas tudo o que vi foi um prédio, pintado de branco, me afastando da ilusão de ter “saído” do mundo real, da dureza do dia-a-dia, ali estava eu em mais um edifício ordinário, como se fosse um prédio de apartamentos, um conjunto de escritórios, ou seja, mais um prédio comercial como outro qualquer...

Quando entrei ali queria sentir-me pequeno, minúsculo, a ponto de achar que meus problemas eram ainda menores que eu diante de toda a criação, mas vi que eu era do mesmo tamanho, talvez só pouca coisa maior que o verme que concebeu a idéia de fazer aquilo ali dentro...

Não pensem que sou religioso, não sou, sou um ateu espiritualizado (ironia de minha parte?) que às vezes procura abrigo e que dessa vez não encontrou.

Uma vez lá fora, percebi que o sol era menos ofuscante que a pintura da igreja...

2011/01/05

É triste eu ter que explicar isso...

Minha felicidade não é ébria, ébrio sou eu (quando sobra algum para o uisquinho)!
joguei fora as palavras
todo o sentido
todos os sentidos
a lógica
a razão
meus pensamentos vagueiam
espalhados pelo vento
nada mais penso
nada mais quero
acendo um cigarro
e dou o primeiro passo
sigo em frente
até um muro me pare
um buraco me engula
ou o diabo que me carregue

BRAGUEANDO

A árvore do vizinho caiu, (envenenada lentamente por seu proprietário, pois ela teimava em jogar folhas no quintal) agora onde meus sanhaços e bem-te-vis vão cantar?

2011/01/04

AQUELES OLHOS AZUIS

- Oi! Você é nova por aqui?
- Acabei de chegar..., aliás, onde “é aqui”?
- Não se preocupe, no começo ficamos assim mesmo, desorientadas, perdidas, tentando entender o que aconteceu.
- Não consigo entender nada, afinal onde estou?
- É melhor darmos uma volta antes de começar a te explicar “os ondes, comos e porquês”. Eu mesma já perdi a conta de quanto tempo estou aqui, acho que fui uma das primeiras a chegar – coça a cabeça - faz tanto tempo me Deus...
- Onde estou? – Assustada, começa a chorar.
- Calma, calma. Você ainda está em choque, vamos dar uma volta, conhecer outras mulheres e quando estiver calma, todas nós te explicaremos o que houve. Começam a andar.
- Mas aqui é tudo igual. Não tem paisagem, não tem cor, flores, perfumes, nada, nada, nada.

Começa a desesperar-se.

- Eu morri! Oh meu Deus! Eu morri é isso não é? Estou morta, morta, morta...! Por isso esse lugar é assim. Estou no limbo, no “grande nada” por toda a eternidade esperando pela....- antes de terminar é interrompida.
- Não! Não é nada disso que você está pensando. Veja – diz apontando para frente –, vamos até ali, vou te apresentar a Luciana.

Caminham, e como lá não há referências espaciais, não sabemos se andaram muito ou pouco.

- Luciana, essa aqui é a nossa nova amiga, acabou de chegar.
Luciana dá um longo suspiro, olha para a recém-chegada com um olhar triste, abraça-a, passa a mão pelos seus cabelos.
- Como você é jovem, qual é a sua idade?
- Dezenove...

Luciana, demonstrado grande apreensão, olha para a outra mulher e comenta.

- Elas estão chegando aqui cada vez mais jovens...
- Pobrezinhas... Ela pensa que morreu, que está no purgatório...
- Criança... – diz Luciana – criança, como isso pôde acontecer...? Não, não responda, essa pergunta é retórica...
- Você poderia explicar em poucas palavras o que lhe aconteceu para que ela pare de pensar que está morta e no purgatório? Já fiquei nessa função por muito tempo e não tenho mais paciência para isso. – Diz a primeira.
- Venha minha criança, vamos caminhar mais um pouco e por favor, não precisa nos dizer que andar aqui não dá em lugar nenhum, há muito tempo que sabemos disso...

As duas mulheres riem dessa grosseira constatação.

- Qual a sua última lembrança? Pense bem antes de responder. Qual a sua última lembrança?
- Estava andando num shopping com minhas amigas, quando... – interrompida pelas duas.
- Quando você viu um homem lindo, de não menos lindos olhos azuis. – falam juntas as duas mulheres.
- Sim! - responde a menina. Nunca vi um homem mais lindo em toda a minha vida e, aqueles olhos azuis...- angustiada.
- Me deu uma vontade de...
- Mergulhar dentro deles, não é? – perguntam as duas juntas.
- Sim, isso mesmo. Como vocês descobriram? – Pergunta espantada.

Tristes, as duas, outra vez, falam juntas:

- É onde você está agora!

DISCUSSÕES FILÓSOFICAS

- O que você entende? O Que você entende? – pergunta raivosa a moça loira para a morena sentada ao seu lado.

- Ora essa você pega um livrinho desses e já começa a bancar a professora para o meu lado, me responda você o que entendeu da mensagem do autor, vamos, vamos...

Os gritos ecoam pela escadaria, só parando quando as duas fazem:

- Psiu, psiu, psiu...

- Hei! Hei!


Passado dois segundos, começam a bater boca outra vez.


- Descartes, por vezes chamado de "o fundador da filosofia moderna" e o "pai da matemática moderna", é considerado um dos pensadores mais importantes e influentes da História do Pensamento Ocidental. Inspirou contemporâneos e várias gerações de filósofos posteriores; boa parte da filosofia escrita a partir de então foi uma reação às suas obras ou a autores supostamente influenciados por ele... – ta aqui na quarta capa. Vê! – aponta o livro para amorena de tranças aplicadas e levemente loiras.

- Sim, já li, mas o que ele deixou para a posteridade? –desdenha.

- Muitos especialistas afirmam que a partir de Descartes inaugurou-se o racionalismo da Idade Moderna.

- Sim, mas e daí? O que é um René Descartes diante do meu dinamarquês loiro e lindo do Soren Kierkegaard...

- Racista – grita a loira – Você só se liga no Soren por que ele é dinamarquês. Pensa que todo marinheiro loiro é escandinavo. Sua besta existencialista...


Quando a morena ia retrucar, já com as unhas prontas para rasgar o rosto maquiado da loira, interrompem a discussão outra vez para:

- Psiu! Psiu!

Voltam.

- Eu não sei a razão de ainda sentar ao teu lado. Você não me compreende. – resmunga a morena, agora lixando as unhas. – Vou embora daqui, não vou mais perder meu tempo discutindo com uma cartesiana de terceira...


Pega bolsinha e começa a subir a escadaria, quando ouve a loira:


- Ei, psiu! Ei mocinho bonito vamos fazer um nenê?

- Não sei como ainda trabalho nesse hotelzinho. – reclama a morena, que fecha o livro “O Conceito De Ironia Constantemente Referido A Sócrates” – e ameaça jogar o volume no auxiliar de pedreiro que sobe as escadas de mãos dadas com a loira, que contando os trocadinhos, faz um muxoxo para morena e fala-lhe baixinho:

- Sou cartesiana sim, mas me dou melhor que você sua existencialista de beira de cais!


A morena faz menção de usar a lixa de unha como estilete, mas na rua passa outro possível freguês, ela desce as escadas correndo e fazendo:


- Psiu, ei psiu...


Envergonhado Kierkegaard, fica corado na quarta capa do livro...

2011/01/03

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O CANDITADO E SEUS ASSESSORES

DRAMA RELÂMPAGO




Cenário:
Uma sala pequena, num canto há uma pia, lá um homem candidato a um cargo eletivo lava as mãos e gargareja, depois de mais um discurso prometendo mundo e fundos aos pobres eleitores

(sons de gargarejo)

Candidato – (nervoso e com nojo) (som de água saindo da torneira) Mais sabão! Mais detergente! Mais sapólio! Mais querosene. Mais gasolina! Rápido, me tragam um esmeril! Uma escova de aço!

Assessor 1- Mas senhor! Assim o senhor vai acabar comas suas mãos...

Candidato - Que mão? Que mãos? Eu estou usando luvas!

Assessor 1- Mas se o senhor está usando luvas para quê quer todos esses produtos?

Candidato - Para poder usar as minhas mãos. Não tocarei com minhas mãos em nada que essas luvas tocaram nada!

Assessor 1- Se o senhor quiser posso tirá-las.

Candidato - Então, por favor, faça isso.


O assistente retira-lhe as luvas e joga-as num duto que em serão incineradas.


Assessor 1 - Pronto agora o senhor está livre dessas imundícies.

Candidato - E você está despedido. Fora! Saia da minha frente! – grita virando-se para a parede. Saia, não estou conseguindo respirar por sua causa, saia, saia já.


O assistente assustado sai correndo da sala, no corredor tromba com outros dois assistentes que entram correndo.


Candidato – Telefonem para aportaria e mandem eliminá-lo. Apaguem o nome dele do sistema. Quero que ele nunca mais tenha existido!

Assessor 2 - Sim senhor. – o assessor vai para o canto da sala e (som de teclados de celular) liga para a portaria.

Assessor 3 – Senhor. Telefone.

Candidato – Quem é?

Assessor 3 – O senhor tem mais uma inauguração.

Candidato – Inauguração de quê? Creche? Escola pública? Parque? Campo de futebol? Pontes?

Assessor 3 - Não senhor. Agora o senhor vai inaugurar... - interrompido pelo candidato.

Candidato – Não importa o que vou inaugurar! Não importa! Assessor nº 2.

(Som de algo caindo no chão, vento forte, som de derrapada)

Assessor 2 – Sim senhor candidato.

Candidato – Vá ver quantas pessoas têm reunidas para a essa outra inauguração. Conte quantas mulheres, crianças, homens, velhos, velhas, doentes e sãos. Depois calcule quanto vou precisar de produtos de limpeza para minhas mãos.

Assessor 2 – Sim senhor! (som de vento e porta batendo)

Candidato – Minhas luvas de borracha. Minhas luvas de amianto! Minhas luvas de soldador! Meus antibióticos! Meu tubo de oxigênio de bolso.

Assessor 3 – Tudo aqui senhor!

Toca o telefone

Assessor 3 - Senhor. O Assessor nº 1 já foi eliminado.

Candidato - Ótimo.

Toca o telefone outra vez.

Assessor 3 - Má notícia senhor.

Candidato – (nervoso) O que foi agora?

Assessor 3 – A viúva junto com os cinco filhos, engrossou a fila dos pedintes aí na frente do prédio...

Candidato – (tossindo muito) Meus antiácidos.

Vozes vindas da rua começam a tomar o ambiente





CAI O PANO

O PERSONAGEM RENITENTE


O sol brilhava no céu azul, nada havia no mundo que pudesse estragar esse dia tão formidavelmente maravilho. Nada.
Um vento suave entrava pela janela balançando as cortinas, desenhando sombras etéreas no chão recém encerado.
O doce perfume das flores do jardim, docemente invadiam o ambiente.
Aquilo era uma pintura de pura perfeição.
Então delicadamente, ele puxou a arma e disparou um único e fatal projétil contra a cabeça.
Então aquele fio vermelho desenha um contraste nesse quadro.
Não! Não era isso que eu queria escrever. Vamos tentar outra vez.
Praia.
Verão quente, gente bronzeando-se na areia, vendedores de sorvetes, crianças jogando bola e correndo para a água, correndo da água, fugindo dos pais, procurando os pais. O caos do verão.
Sentado em sua cadeira,empastelado de protetor solar, boné, óculos escuros, ele tenta sem sucesso ler o jornal. Tem a seus pés um copo de caipirinha, uma raquete de frescobol e o aparelho celular desligado.
Vindo da calçada, uma loira fenomenal passa por ele, que finge que não vê ou não vê mesmo, pois ainda continua absorto lendo o jornal. Todos à sua volta param o que estão fazendo para ver a deusa semi-nua que desfila em direção a água.
Uma bola chutada por uma criança arrebata-lhe o jornal das mãos. Enfurecido ele olha para o lado de onde veio a bola, levanta-se e sacando uma arma que mais tarde as testemunhas dirão "sabe-se lá de onde saiu", dispara um único e fatal tiro na cabeça.
Não! Não era para sair assim! Vamos tentar outra vez.
O restaurante está cheio, são nove horas da noite, os casais estão jantando, outros namorando, não há mais nenhuma mesa vazia. Ele está sozinho, olha para o relógio. Helena está quarenta e sete minutos atrasada. Helena nunca chega na hora, ela é uma retardatária convicta e crônica.
Ele já está na segunda garrafa de vinho, um espumante italiano, tinto. Ele tem certo receio de vinhos tintos, eles sempre acabam por manchar alguma peça de sua roupa. O garçom, já sem graça, pergunta pela terceira vez se ele quer fazer o pedido, já sabendo que a resposta será não.

- Não. - ele responde, mas como está escrito na linha de cima, o garçom já esperava essa resposta.

Ele bebe o vinho do copo num gole só, e serve-se mais uma vez, esvaziando a garrafa. Faz sinal ao garçom pedindo outra, olha para o relógio e irrita-se. Hoje Helena passou das contas.

Tamborila com os dedos no tampo da mesa. O garçom chega, enche-lhe o copo, que ele sorve de uma vez só deixando os outros fregueses constrangidos, e bate com o copo com tanta força na mesa, que ele parte-se em pedaços.

E enquanto os casais, os garçons e a menina da chapelaria tentavam entender o que estava acontecendo, ele saca do bolso do paletó uma pistola, e num átimo, dispara um único tiro na fronte, morrendo imediatamente, estragando a noite de todos os que lá estavam, deixando particularmente preocupado o garçom, que perdera um ótimo freguês e a caixinha da noite, e intuindo que passaria longas horas prestando depoimento na delegacia.
Não! Mas que diabo! Esse sujeito me larga no meio da história?
Vamos tentar mais uma vez....
Terminado (fica melhor) o espetáculo, as pessoas saem felizes do teatro. A peça, uma comédia ligeira, servira para desanuviar a cabeças das preocupações por duas horas. Duas horas em que tudo que precisaram fazer foi rir, rir sem preocupações, rir das situações e apuros dos personagens no palco, pois sabiam que antes do fim do espetáculo, tudo ficaria bem. Todos seriam feliz para sempre, com cortina descendo e orquestra tocando.
Da platéia veio o aplauso, flores foram jogadas aos atores principais. Fim.
Abraçados os casais saem em direção às suas casas, a restaurantes, a andar na praça e rir. Mas ele, ele foi o último a deixar o prédio, sai meditabundo, cabisbaixo, parece não ter se divertido com a comédia, mais parece ter saído de um velório.
Saiu em passos lentos, com as mãos nos bolso e o olhar triste. No que pensava ele? Que tristes lembranças assolavam essa pobre alma?
Antes de atravessar a rua, tirou um cigarro do maço que trazia no bolso do blazer, acendeu, deu uma baforada para o alto, talvez com a intenção de, com a fumaça, cobrir as estrelas que brilhavam no céu.
Tossiu e tornou a por no bolso e...

...antes que esse miserável resolva matar-se outra vez, escrevo:

FIM

DUAS PARTES

Estou aqui tarde da noite, sentado em frente ao computador, tendo por companheiros a noite fria, um charuto e uma xícara de café.

Na cabeça, fantasmas de histórias que teimam em me assombrar e que se recusam a vir para os teclados...

Antes de vir para cá fiquei virando na cama, tentando dormir. Soquei o travesseiro, virei de um lado para outro, e dentro da minha cabeça as palavras se formavam, as histórias aconteciam, os personagens nasciam.

Sonado, vim para cá e nada me ocorre, nada me vem, fui abandonado pelos personagens e me esqueci das histórias a serem contadas.

Fico aqui a teclar à espera de que algo surja, mas pelo andar dos ponteiros do relógio acho que a madrugada já está perdida, e curto a insônia vendo TV...

Preciso arrumar uma forma de me livrar dessas assombrações que me perseguem todas as noites. Por que, quando deitado, quase dormindo, as histórias se formam de um jeito claro? As personagens aparecem tão sólidas, críveis, palpáveis e verossímeis? E quando, desperto, saído debaixo das cobertas tão quentinhas e vindo encarar esse monitor, tudo se esvai com num sonho?

Minha história deveria começar com a narrativa do personagem principal:

- Senti uma pontada no peito... Achei que estava enfartando e pus a mão com força sobre a camisa pressionando o coração. Achei que fosse desfalecer tão aguda era a dor, mas para meu estranhamento percebi que foi um corte. Alívio! Não era enfarto. De alguma forma havia me arranhado com alguma coisa e só agora estava sentindo a dor... Na primeira oportunidade fui ao banheiro para ver o tamanho do machucado. Diante do espelho tirei o paletó, a camisa, a camiseta regata e vejo para meu espanto o tal machucado em meu tórax... Por mais que eu imaginasse o pior – sou um pessimista fatalista – nada até aquele momento havia me preparado para aquilo. Não havia ali uma picada de inseto, um arranhão ou mesmo um corte – que por si só já seria um tanto complicado de se explicar e entender - o que eu via ali era uma, uma, uma..., uma rachadura! Sim uma rachadura, uma trinca, como dessas que vemos nas paredes das casa velhas e abandonadas. Ela, a trinca, vinha da altura da clavícula e descia quase três dedos abaixo do mamilo esquerdo. Fiquei ali boquiaberto, vendo a “rachadura” em meu peito, tentando entender como aquilo poderia estar acontecendo... Já não doía. Aliás, nem posso chamar, agora, a pontada que senti de dor, foi mais como um beliscão. A imagem daquela greta no peito me deixava anestesiado para qualquer coisa. Tudo o que queria agora era ir embora para casa. Mas o que dizer ao chefe? Simplesmente dizer a ele que meu peito “rachou” e que precisava ir embora para remendar e passar uma massa corrida não ia pegar bem... Resolvi, então, sair sem avisar ninguém, de casa, quando chegasse, daria uma desculpar qualquer, “mataria” alguém de família ou sei lá o quê eu conseguisse improvisar...

Entrei em casa correndo e fui direto para o banheiro, precisava rever o meu peito. No caminho tive a impressão que as canetas que trazia no bolso da camisa estavam entrando na rachadura. – Absurdo! – Gritei para mim mesmo, chamando sem querer a atenção dos outros passageiros no ônibus. No banheiro, arranquei as roupas quase rasgando, botões voando e ricocheteando nos ladrilhos e quicando no chão.

- Não! Meu grito deveria ter sido algo assustador, medonho, gutural, um grito vindo das estranhas do homem de Neanderthal que carregamos dentro de nós. Mas o que saiu de minha garganta foi um soluço. O que vi refletido no maldito espelho me tirou o fôlego antes de gritar. A rachadura agora descia até a minha cintura, e logo chegaria à minha pélvis. E sim, agora tive a certeza que as minhas canetas estavam mesmo entrando no buraco do peito. O horror com que olhava para o meu peito era tanto que me fazia ignorar a falta da dor lancinante que tal machucado deveria me causar e a perda de sangue que já deveria ter me matado... Mas o horror, o horror me paralisava e me desligava desses detalhes. O que me impediu de passar o resto de meus dias boquiaberto diante do espelho foi o ruído seco, baixo e discreto que vinha de meu peito. Era como uma barata roendo papel, um roc-roc-roc grave, baixo, que logo percebi se tratar do som de meu corpo dividindo-se ao meio. Aparvalhado via o corte crescendo e descendo, dividindo-me em dois lentamente...

Logo nada de mim restaria... Nada? Permitam-me corrigir isso. Logo duas partes de mim, muito mal-cortadas, diga-se de passagem seria encontrada no banheiro de meu apartamento. O que a polícia pensaria? O que seria noticiado nos jornais? Como explicariam o mistério de um corpo rasgado ao meio sem nenhuma gota de sangue próxima do cadáver? Homem solteiro encontrado cortado ao meio! Sim, delirava tamanho o absurdo de minha situação. Empurrando os cabelos para trás lamentava a minha situação e solidão... Será que se Márcia estivesse aqui ela tomaria pulso de minha absurda condição e conseguira juntar os meus dois pedaços? Por um momento rio, penso se ela ao chegar e me ver já em duas partes, iria reclamar sua parte “nesse latifúndio”. E como fez com tudo o que eu tinha quando foi embora, “pegaria sua metade de direito”? Será que ela seria capaz de fazer isso? Sinto uma fisgada no peito, não metafórica, mas sim literal que me responde essa pergunta. Sim, ela pegaria a sua parte.
Olho para o espelho e estou preso em minha outra metade por um fio – entendam isso como quiserem... Mais alguns segundos e serei duas partes da mesma coisa.
- Duas partes de nada! – Rosno. Duas partes que viverão (?) num apartamento que já está dividido, e que agora é meio-apartamento, numa meia-vida, numa meia-existência...

Antes de desfalecer, me pergunto que parte de mim Márcia escolherá?

- Que parte Márcia escolherá...?, e dou a última baforada no charuto olhando o fundo da xícara vazia de café. Continuo olhando para o monitor até os olhos começarem a arder. Não tenho vontade de fazer mais café nem de fumar, a boca já está azeda, o sono que vinha me comendo pelas beiradas enfim me pegou, acho que vou dormir, a história que se escreva por si própria, afinal elas sempre se escrevem mesmo e nós somos usados como meras ferramentas por elas...

Desligo o computador, deixo meus demônios arquivados e volto para a minha cama quentinha sem mais nenhum fantasma me assombrando a cabeça.

- Boa noite.