2011/02/25

Diálogos rápidos

(drama relâmpago)


Cenário: Uma igreja com velas acesas, o som do órgão preenche o ambiente.
Personagens: Dois homens muito velhos.



- O que procuras assim tão agoniado nessa igreja? Uma resposta de Deus?

- Que resposta que nada! Procuro é por um Deus que me sirva, porque esse ai...




(Vento forte e as velas apagam-se!)

(cai o pano)





Carinhosamente dedicado ao Vadinho, Silvio e ao Magrão

FIM

2011/02/24

NÃO...

- ... deixe que ele pronuncie seu nome, não deixe não! Aqui, veja!, só os fantasmas me visitam e nenhum deles é da família ou amigos... - Malditos sejam! Por isso te repito, não deixe que ele pronuncie seu nome, não deixe não. Pois quando ele faz isso, tudo muda, tudo. Olhe pro lado, olhe, olhe nada era assim, nada, sai daí, sai daí. Odeio esses fantasmas desconhecidos, não que eu goste dos conhecidos, pois grito para todos -“vade retro, vade retro”! Mas eles, como você bem vê, não vão e ficam aqui me incomodando o dia todo ora atravessando paredes, ora surgindo no pé de minha cama, todos chorando e reclamando... - Vade retro, vade retro!

– Mas agora já não adianta mais nada, não!, ele pronunciou meu nome e nunca mais nada será o mesmo...

VITRINES

(revisada e levemente ampliada)



Quem me conhece, mesmo que vagamente, sabe que perco o(s) amigo(s) , mas não perco a piada – sim, intuo já uma velhice solitária e amarga, mas fazer o quê? É o preço que pagarei por se o que sou:

- Fiel aos meus princípios, pois ouço e escrevo!, mas sigamos...

Outro dia, bebericando meu santo cafezinho ouço a história de um recém-solteiro de meia-idade, que num domingo desses de pouco sol e sem presa à vista, saiu para se socializar com a ex-família.

Me contava o nabokiviano amigo os detalhes com tal riqueza, que me vejo aqui incapaz de transcrevê-la, furtando-os assim, meus leitores, dos pormenores sórdidos, das cores fortes, da linguagem docemente impudica que tais conversas impõem...

Mas dou-lhes, de forma poética, esse breve e aprazível resumo, vejo-os lá embaixo.


Foi entre as vitrines

Que ele a viu

E sentiu-se visto

olhares cruzaram

promessas no ar

ele

um velho sátiro

ela

uma ninfeta

digna dum Nabokov da melhor safra

ela com a mãe

ele, ex-mulher

manequins testemunhas mudas

cabides cúmplices sem culpa

corredores de lingerie apimentando os desejos

o rubro à sua frente

serão das peças

ou de seus olhos?

ela, de soslaio

ele, a vibrar

o não-dito

o não-feito

o desejo no ar

a Lolita ali

- será que ela ouve o seu latejar?

desejo a lhe sair pelos poros

ele sente que brilha

seus olhos o traem

suas mãos suam

ela vai com a mãe

antes de sumir olha-o

a ponto de fazer seu sangue ferver

mas é tarde demais

ele está velho

ele está perdido

ele está, hoje, com a ex-mulher do lado...

por que hoje?

por que hoje?

sofre a dor da perda

sofre a dor de saber nunca mais outra chance

sofre a dor das escolhas desse domingo...


Mas como sabemos e os jovens logo saberão, as dores de uns são as doçuras de outros.

Passem bem!

2011/02/23

CRÔNICA DA SÉRIE HOMEM DE MEIA-IDADE DE “VOLTA AO MERCADO”


SIM ELA VIRÁ


Que jamais me digam ou me deixem saber que já disseram que sou um mau amigo!

Depois de ouvir a triste história citada na crônica Vitrines fui para casa com as minhocas de minha cabeça revirando-se dentro do crânio. Aquilo não poderia ficar assim, não poderia passar em branco pela História pessoal de meu amigo. Segundo Paulo Coelho todos nós temos que escrever a nossa “lenda pessoal” - ou algo assim, pois não pensem vocês que perco meu tempo com tais desimportãncias – e meu amigo não deixaria esse vale de lágrimas como vítima de uma piada de mau gosto do Destino.

Cobrir a dita-cuja de porrada não posso fazer, ainda mais com a Lei Maria da Penha e a imagem de pacifista que teimo em manter diante da sociedade. Aliás, aqui cabe uma boa pergunta:

- Quem é mais hipócrita? Eu ou a sociedade? - Divago muito, voltemos ao resultado do melancólico caso desse meu amigo.

Não podendo partir para a ignorância, resolvi usar a minha melhor arma, o meu escárnio e uma praga bem pregada na forma de um poeminha.

Agora é só torcermos para estarmos todos - inclusive você leitor - lá no dia e hora.



Sim, ela virá
Com seu avental preto
Caminhando
Como quem anda nas nuvens
Com passos leves
Delicados
Como uma bailarina
Tocará o solo
Com as pontas dos pés
Ela vira na sua direção
Trará no rosto
Um sorriso

(profissional, não se iluda)

Ela olhará através de você

(sim, esse é o seu olhar)

Seu café se aproxima
Na bandeja
A xícara
O petit-four
O copo d’água
Ela se aproxima de sua mesa
Falta pouco para chegar até você
E há poucos passos
Ela tropeça
Cai
A bandeja, a xícara, o petit-four, a água e ela vão ao
Chão
Você sorri
Você ri
Você gargalha

- Meu dia está ganho!

(murmurará você entre dentes)

E no chão frio do Café
As lágrimas dela se confundirão
À cor negra do café...
E na rua o sol brilhará
(só você perceberá isso, sossegue)
Como um orgasmo cósmico


PRIMEIRO CAPÍTULO

Abro as janelas de par em par, o sol entra e ilumina a sala, um gato gordo e velho arrasta-se até o meio do tapete e deita-se, tapete? Que tapete é esse? Gato? Desde quando tenho um gato, ainda mais gordo e velho?, vou segurar o espirro, vou segurar o espirro...

Olho em volta e não reconheço essas paredes, vou procurar a cozinha, lá se houver uma geladeira, e há de haver uma, vou abri-la, e antes que a luz interna acenda sei o que vou encontra lá dentro. Gostaria sinceramente de não de:

1. não encontrar a cozinha, e se encontrá-la
2. não achar lá dentro uma geladeira, e se achar e abrir:
3. não encontrar aquele pedaço de pernil de porco...

Não sei por que sou o único personagem coma consciência de sê-lo, não sei por que meu criador me detesta tanto a ponto de escrever sempre a mesma história só alterando, por pura maldade – ou seria esquizofrenia? - os cenários.

Não há um capítulo que não comece comigo abrindo uma janela... E nunca, nunca há uma paisagem a ser descrita, um cenário cinematográfico de deixar o leitor sem fôlego, nada, isso quando não chove, neva, ou como no último conto, ele fez-me abrir – falta de conhecimento é claro – uma vigia de um navio e inundou-me a cabine. E esse gato deitado no tapete morreu... Era o que me faltava, uma morte na minha história, será que nessa casa existe um jardim?

Se sim:

1. Por favor, que não seja secreto me fazendo perder horas procurando por ele;
2. Que eu não descubra outros mortos enterrados nele;
3. Que eu não seja alérgico a nenhuma planta de lá...

Ok, ok, lá vou procurar por um nessa casa, à frente tenho um longo corredor, espero que a casa seja térrea, hum, quadros bonitos nas paredes, então, quero crer, devo esperar por belas estátuas no jardim, pela claridade há espelhos também... Tenho medo de espelhos, no penúltimo conto eu era um corcunda ruivo e caolho e carregava no ombro um macaco empalhado, por que ele me expõe assim ao ridículo?

Aproximo-me do espelho de olhos fechado, sinto vontade de passar por eles com olhos fechados, mas alguma coisa dentro de mim – subtexto talvez? – me obriga a olhar-me...

Quero seguir em frente, minhas pernas paralisam-se, e abro os olhos e constato que sou um personagem odiado. Esse louco - e para de colocar tachado no que eu penso!! – me odeia, me odeia, agora sou uma gorda tatuada e, o que é isso no meu peito – e que peitos! – parece um crachá, parece não, é um crachá, ó meu Deus, sou uma funcionária pública. Mas o que estou fazendo numa casa desse tamanho? Tenho certeza que eu não ganho para isso...

Espere ai. Não estou sozinho, digo sozinha aqui, ouço passos, passos de homem – como sei que são passos de homem?, não faço nem idéia, isso é coisa do autor desse folhetim miserável – eles se aproximam. Qual será o meu papel nessa trama? Sei que não deveria, mas sinto medo, calafrio, palpitações, um estremecimento, receio, não, certeza que vou me dar mal...

A voz máscula chama por Martha, serei eu, espero que não. Marta, repete a voz, e estremeço, espero que não seja eu. Encosto-me numa parede onde não bate a luz do sol e espero que a tal da Marta apareça. A voz aproxima-se chamando pela Marta, prendo a respiração. E espero que capítulo acabe antes do sujeito aparecer.

Acabe capítulo, acabe, acabe...

- Genézio!

Fim do capítulo.

Agora que me chega esse fim do capítulo, agora? Agora o Genézio já está arrancando minhas roupas...
Enquanto ele sobe as escadas comigo no colo – juro que esperneei um pouco – penso quanto tempo leva para um gato morto começar a feder...



DIÁLOGO SOBRE TERNOS, CASAMENTOS E PREVISÕES


Quando cheguei ao ponto de ônibus a conversa já ia assim:

- Não admitirei que fales mal do casal. Afinal eles esperaram que eu pagasse a ultima prestação do meu terno para se separarem.

-Tens razão. Doze meses já é até bastante tempo...

- Que doze meses? Ta pensando que eu sou o quê? Um miserável? Um pobre-coitado? Paguei o terno em três vezes, sem juros!

- Então o casamento só durou três meses...?

- Sim, nem abriram a caixa do fogão.

- Quem deu o fogão? Você?

- E meu nome é Vadinho prá presentear noivos com fogões? Expliquei que estava sem dinheiro e depois daria a eles o que estivesse faltando... Não falha! Quando vejo que um casamento não tem futuro faço isso. Prometo o presente para mais tarde. Imagine se gasto dinheiro assim. O terno ainda tem alguma utilidade, afinal na nossa idade tem sempre alguém morrendo...

- Que pessimismo mais mórbido!

- Mórbido? Estou é sendo pragmático. Veja o Garcia com aquela úlcera feia que ele tem. Quanto tempo você que vai levar para ela evoluir para coisa pior e morte?

- Jesus Cristo! Agora você está gorando o Garcia? Sei que você não ia muito com a cara dele, até compreendo depois daquela experiência com a Rutinha, mas daí a ficar esperando a morte dele...

- Não estou gorando ninguém, estou só exemplificando...

Chega meu ônibus.

Faço sinal, entro, vou embora pensando na sabedoria do interlocutor. Já gastei muito dinheiro em roupas para casamentos que duraram menos as prestações. Mas o que me intrigava mesmo na volta para casa era a história entre o sujeito, o tal do Garcia e a Rutinha... Essa minha pressa, deveria ter ficado mais tempo no ponto, afinal percebi que o outro sujeito estava se deleitando com a fumaça de meu cigarro...

2011/02/15

O BAR


No balcão sujo, as marcas de copos se multiplicam exponencialmente; o barman já não sabe se sorri de verdade ou se aquilo no seu rosto tornou-se um ricto, uma cicatriz; as garrafas estão sempre pela metade, nunca vazias, nunca cheias, sempre a um passo de acabar no próximo copo que nunca deixa de chegar.

Há anos que não se vê mais a cor das paredes, tamanha a densidade da fumaça de cigarros; as cadeiras são fundas, dada a quantidade de fregueses que se sentam ali diariamente, e o chão está gasto de tantos passos perdidos que passaram por ali em tantos e tantos anos...

Em algum canto um piano toca, mas onde?

Não pense em procurar onde!

Ninguém sabe, afinal nada se vê naquele ambiente turvo de fumaça e emoções desencontradas e sentimentos conflitantes; as vozes, roucas, roufenhas, sussurrantes, abafam a melancólica melodia da triste música que escorre dos teclados tocados pelos pálidos e suarentos dedos do pianista, que há anos, séculos - quem sabe? - toca a mesma canção deprimente.

As luzes no teto são como estrelas, brilham mas não iluminam, nada atravessa aquela atmosfera tão densa.

Um freguês encosta no balcão, e, antes de pedir alguma coisa, o barman, em “piloto-automático”, serve-lhe uma dose de conhaque, que é sorvido de um só gole; outro copo e mais outro são servidos, muitos outros seguirão, até que o indivíduo se deixe seduzir pela melancólica canção, e, como os outros que lá se encontram, esqueça de voltar para casa, para o trabalho, para a família, para a vida; se somará à procissão de espectros que, bebendo, esperam pelo fim dos tempos, para que enfim possam descansar.

O barman olha para o estranho calendário na parede que, em vez de dias, marca anos e séculos, e, contando-os para o fim do mundo, faz com o lápis uma cruz nele e olhando para o relógio resmunga:


- O tempo não passa... - Pegando o pano de prato, passa a limpar pela enésima vez o balcão marcado de copos e dores .


Pela porta da frente, mais um infeliz entra e o barman, suspirando, pega às suas costas uma garrafa qualquer na prateleira, e lá do fundo a música recomeça, a mesma música melancólica de sempre...

- O tempo não passa... - reclama o barman com o homem que bebe e não presta atenção em nada à sua volta. Enquanto limpa as marcas de copos num lado do balcão, no outro, elas renitentemente voltam. - O tempo não passa...

ITINERÁRIOS

Cid abre a janela, um ônibus passa na avenida, e ele vê um jovem encostado, quase dormindo com a cabeça encostada no vidro, e nesse momento, Eli –esse é o nome do jovem – dá com seus olhos nos olhos de Lena, que sonhadora, pensa em João no momento em um jato passa sobre a cidade, João vai embora do país, cansado e desiludido – jurou nunca mais voltar.

O motorista do coletivo segue seu caminho diário e rotineiro, impermeável às misérias que carrega ou o cerca, e por pouco atropela a velhinha na faixa de pedestre. Ela levanta a mão e roga-lhe alguma praga, o ônibus faz uma curva à direita e passa pela banca de jornal de Pedro que acena-lhe um bom dia e volta a leitura do jornal do dia que estampa um crime hediondo, como qualquer crime deveria ser, hediondo, e por um segundo pensa ter reconhecido a foto de um dos suspeitos nos passageiros do ônibus que acabou de passar, mas deve ser engano pensa, pois ele vê todo o tipo de gentes durante o seu dia, e seus dias são tão longos...

Cid continua à janela, olha para o céu, acha que chove, mas Cid não tem inclinações para meteorologista e sempre erra suas previsões, toca o telefone, imagina que seja Verônica, erra, erra feio, pois não te inclinações para adivinho, atende e é Débora, ele foge de Débora há semanas, como ela encontrou seu número? Sabe que nunca saberá, Cid nunca sabe, desconhece a leitura dos sinais, não reconhece o perigo nem tropeça nele.

Atende ao telefone com voz fria e distante, impessoal, Débora pergunta se tudo está bem, ele diz que sim, Cid mente mal, ela percebe, chora e percebe que Cid não a quer mais, silêncio e por fim desliga sem despedir-se.

Cid fica com a mão direita sobre o aparelho por alguns segundos, talvez o telefone tocasse outra vez, e dessa vez seria Verônica, mas o aparelho não tocou e Cid retornou à janela e vê nuvens pesadas de chuva cobrir o céu, a chuva será rápida, diz, mas ele erra e choverá por quatro dias e meio. Enquanto esses acontecimentos ordinários se desenrolam, Eli chega à escola, atrasado, corre para a sala de aula, é repreendido pelo professor, hoje é dia de prova, havia esquecido, o dia vai de mal a pior, pode sentir isso nos ossos. Lá fora o céu já está carregado, além da bronca, ir mal na prova chegará molhado em casa, quem entende esse clima?

Lena no escritório não consegue focar-se no trabalho, de quando em quando olha para o celular, sente ganas de ligar para João, talvez ele ainda esteja com o seu aparelho ligado, talvez ela consiga falar com ele, talvez ele mude de idéia e reembarque de volta ao descer no aeroporto, talvez, toca o interfone e ela não terminou o relatório, talvez ele esteja lendo o livro que ela lhe deu, não daqui a pouco entrego os relatórios, talvez ele ache a carta que ela colocou na página trinta e cinco, mais dez minutos e já levo os papeis!, talvez, talvez eu peça as contas desse escritório e vá atrás dele...

O motorista já começa a segunda viagem do dia, a velhinha volta das compras com a sacola cheia de legumes, traz sob o braço esquerdo uma baguete, a chuva fina começa, o motorista liga os limpadores do pára brisas, e a velhinha amarra um lenço sobre a cabeça, o ônibus faz a curva no momento em que a velhinha atravessa a rua, ele freia para dar-lhe passagem, mas o carro que vinha esquerda segue em frente, passa numa poça d’água e molha a velha, essa encharcada faz o mesmo gesto ao motorista do ônibus, ele sorri, está acostumado com ela, e pensa como vai ser o dia em que ela morrer, ela chega à calçada e faz outro gesto ao motorista e discretamente sorri, essa é sua única alegria, ofender o motorista, e pensa como será o dia em ele mudar de linha. Em casa enquanto corta cenouras pensa no motorista e chora com as cebolas.

Cid fecha as janelas, a chuva engrossa e começa a molhar o seu quarto, o telefone não toca mais, ele volta a deitar-se, tentar ler o livro que comprou num sebo, começa a folheá-lo, em busca de ilustrações que lhe prendam a atenção, e na página trinta e cinco cai uma carta que ele lê com avidez, e desinteressa-se pelo livro, na casa da velhinha a sopa está quase pronta e o telefone toca, ela atende lentamente, sem pressa, ela já não tem pressa para mais nada, é a filha dizendo-lhe que o avião do filho já decolou e que ela torna a ligar quando ele chegar a Londres, lá já deve estar fazendo frio, diz a velha, e eu aqui fazendo a sopinha de legumes que ele gosta tanto, falam mais uns poucos minutos e ela desliga.

A chuva engrossa, troveja, e logo chega a noite.

A sopa de legumes esquenta os ossos da velha, antes de deitar-se ela vai ver o que falta na geladeira, assim ela terá a chance de xingar o motorista do ônibus a caminho de mercado amanhã.

O motorista enquanto janta com a família, diz que acerta o relógio pelos gestos obscenos da velha, por isso nunca atrasou o seu trajeto, e por causa dela ainda vai conseguir uma promoção, uma linha melhor, Verônica ri, e serve a sobremesa ao marido.

CRIAÇÃO

...onde eu estava mesmo quando a campainha tocou? Deixe-me ver nas anotações. Cavalos mortos, tiros, fumaças, gritos, hum..., acho que isso já foi escrito antes em outro conto, vejamos, vamos continuar procurando. Tenho que encontrar minhas anotações, um dia desses vou ter que começar a me tornar metódico..., mas alguém se torna metódico ou já nasce assim? Se for o caso de nascer assim, vou ter que revirar as outras caixas...

Será que eu estava escrevendo sobre pescaria? Joga linha, puxa linha, torna a jogar e torna a puxa, e peixe que é bom mesmo, neca! Não, esse já está escrito! Tabernas mal-assombradas? Anjos, demônios, apocalipses? Hum...

Mas como é possível acontecer uma coisa dessas?

Num momento estou digitando feito um possesso, a história desenvolvendo-se no monitor, uma página, duas, três, toca a campainha, levanto para atender, procuro pela chave, onde larguei a bendita chave, reviro os bolsos da calça, nada, o bolso do blazer, nada, vou à bolsa, nada, então a encontro sobre o fogão. Não, não quero nem imaginar como ela foi para lá, a campainha continua a tocar, abro a porta, desse canto da sala consigo ver o notebook e a tela, nela o texto.

A campainha toca mais uma vez enfim abro aporta, era uma entrega, assino o recibo, pego o pacote, procuro um lugar na sala onde pô-lo, não acho e deixo em cima do fogão lá na cozinha.

Pronto refiz meus passos.

Mas nada de me lembrar onde deixei as anotações, e olhando para o conto na tela, não consigo achar uma solução para ele.

Continuar como? Como terminar?

Terremoto?

Não, muito usado e mal visto, falta de imaginação de um sujeito que se diz escritor.

Incêndio?

Não!

Já usei esse expediente e mesmo assim depois descobri que o vilão da história não só tinha sido o único a sobreviver, como ainda mudou de nome, cultivou um bigode cafajeste e se meteu num outro conto...

Reler.

Reli e acho que o mundo não perdeu grande coisa mesmo, uma história sem sal, sem pé e nem cabeça, creio até que fui salvo pela campainha, agora até me arrependo de não ter dado uma gorjeta decente pro garoto em vez de uns papeizinhos..., papeizinhos..., papeizinhos...

Corro à janela, mas o entregador já está longe demais...

2011/02/11

MARISKA VOIVODINA PORUMBESCU, SUA NETA E O FANTASMA


Festas nas ruas, fogos no céu, bandeiras nas janelas e risos no ar. É primeiro de dezembro e celebra-se a união da Transilvânia com o Reino da Romênia, ocorrido em 1928 e ato fundador da Romênia moderna, mas na casa de Mariska Voivodina Porumbescu, nascida no Condado de Ilfov, cigana, taróloga, parteira e punguista, as coisas não pareciam assim tão bem.

Senão, vejamos...

Mariska Voivodina Porumbescu estava polindo sua bola de cristal (na verdade feita de vidro reciclável dos mais ordinários), quando um arrepio subiu-lhe pelas pernas, atravessou todo o robusto e hirsuto tronco e foi terminar no alto da cabeça, arrepiando-lhe todos os fios de cabelo.

- Nu înţeleg, nu înţeleg – (não entendo). – Nu, nu (não, não) - e balançando a cabeça para arrumar os cabelos desgrenhados, Mariska Voivodina Porumbescu olha para a bola de cristal para entender o que está lhe acontecendo.

Mariska Voivodina Porumbescu senta-se à sua mesa coberta de veludo vermelho e amarelo, fecha os olhos, começa a recitar uma ladainha e por fim entra em transe.

- Salut - (olá) - diz a voz que sai da bola de cristal.

- Salutare - (olá) - responde Mariska Voivodina Porumbescu, tremendo de medo, afinal essa era primeira vez em sua vida que ela falava com algum espírito de verdade.

- Vorbiţi portugheza? - (você fala português?) - pergunta o espírito com forte sotaque.

- Nu! - (não) - responde Mariska Voivodina Porumbescu, sentindo seus cabelos rejeitarem os cinqüenta e cinco anos de tinturas e começando a embranquecer de pânico... - De unde sunteţi? (de onde você é?) – indaga, gaguejando e já prestes a desmaiar.

- Unde e toaleta? - (onde é o banheiro?) - pergunta a voz com um tom fortemente angustiado.

Mariska Voivodina Porumbescu, antes de desmaiar após bater a já agora encanecida cabeça na quina da mesa (e acordar trinta e sete dias depois, vesga e gagá), aponta para um canto da casa.
- Mulţumesc - (obrigado) e Pa!- (tchau).

Silêncio, e então...

...um vento forte abre a porta da frente do casebre, joga a bola de cristal no chão, faz trinta e sete embaixadas, e jogando-a contra a parede, à guisa de gol, estilhaça-a em milhares de fragmentos, vindo a cortar o pezinho de sua neta Constantina Eminescu Vlahuţă, que, infeccionando, fará com ela manqueje para o resto de sua miserável vida.

Numa cela fétida, cheia de baratas, Constantina Eminescu Vlahuţă cumprirá pena pelo seu crime hediondo: - empurrar a entrevada e louca Mariska Voivodina Porumbescu em cadeira de rodas para a frente de um trem de carga.

Constantina Eminescu Vlahuţă morrerá em vinte e nove de julho, e em seu último suspiro, amaldiçoará sua avó, sua bola de cristal e o espírito do brasileiro que lhe causou tudo isso.

O ESCRITOR E O BUSTO DO EDGAR

As contas não param de chegar. Sobre a mesa acumula-se uma pilha de cobranças.

Um busto de Poe é usado como peso de papel.

Por baixo da porta entra mais um envelope, agora é conta de luz, a de água deste mês já está com o autor do Corvo.

Falta de tudo na casa.

E sentado na poltrona da sala o homem arranca os cabelos (metaforicamente falando, é claro), a mulher tenta convencê-lo a não se entregar ao desespero, debalde.

O sujeito se diz escritor, se acha escritor, ficcionista. Já enviou seus escritos para várias editoras, grandes jornais, jornais de bairro, jornais de sindicato, jornais de supermercados, e nenhuma resposta até agora.

Ela tenta consolá-lo dizendo que uma hora ele será descoberto...

Mas no desespero ele fica surdo, e entrega-se à depressão, e deprimido ele escreve ainda mais e mais e mais...

E não consegue publicar.

Ele olha para o busto de Poe e se pergunta o que fazer. Nenhuma resposta vem do torso do escritor.


- Nunca mais, nunca mais – grita feito um covo – escreverei coisa alguma pelo resto da minha vida!


Só não atirou a estátua pela janela por medo que o vento espalhasse as contas acumuladas, afinal ele usava o verso dos envelopes como rascunhos para seus contos.

O papel já estava no fim e não havia dinheiro para comprar mais. Era muita miséria para uma pessoa só. Sua vida de escritor está ficando igual a dos personagens de contos russos, só faltava nevar, sua espiral descendente de autocomiseração só foi interrompida pelo grito da mulher:


- Benhê! A geladeira queimou!

- Pronto! Minhas preocupações com neve acabaram.


Olhou com ódio para o velho Edgar.

Num último suspiro de razão que ainda lhe restava no fundo da alma, tentou pensar que ele mesmo fazia parte de um conto de Poe, sim, só poderia ser isso, ou então não restaria alternativa para ele do que... ( Oh! Deus, isso é pior que ver um gato preto emparedado)...prestar concurso e virar servidor público onde poderia ser pago para escrever, nem que fossem ofícios, memorandos, cartas sem fim...

Outra vez ele olhou para o busto do velho Edgar que por poucos segundos ganhou vida e lhe disse:


- Isso não! Serviço público, não!

2011/02/10

Crises E Mais Crises

12h00 minhs

Meia hora em frente ao espelho do banheiro da repartição fazendo maquiagem, outros tantos minutos penteando os cabelos, olha para as unhas, vira de costas e quase quebrando o pescoço, vê como está a sua roupa recém-comprada (modelo exclusivo, disseram a ela!)

Saí e vai à rua almoçar seus legumes e verduras.

Olha-se em todos os reflexos das vitrines por que passa, sempre ajeitando, ora a roupa, ora o cabelo, ora um detalhe qualquer. No restaurante, escolhe a mesa mais bem localizada, de preferência na entrada, para que possa ser vista por quem entra.

Manipula os talheres com graça e leveza, observando as mãos. Tem com elas uma implicância patológica, acha que as sardas traem a sua idade.

- Não fosse esse um país tropical, andaria de luvas o ano inteiro... - reclama baixinho. - Tantos cuidados, tanta vaidade, quanto dinheiro gastos em cremes para o corpo, cremes para os cabelos, esmalte para as unhas, e essas mãos traindo a minha idade...

Terminada a refeição, sai à rua para tomar um pouco de sol antes de voltar para a repartição e amarelar-se até as dezoito horas.

Olha em volta de si enquanto anda, tanta gente jovem e ela ali envelhecendo, enrugando-se, azedando-se cada dia mais.

Execrando o elevador ela sobe a escada nervosa, pensando com seus botões:

- Assim subindo as escadas acabo engrossando as panturrilhas!

Quando chegar em casa à noite, vai socar o filho que a tornou avó!

- Ele não perde por esperar...


18h00minhs


Fim do expediente, na rua, o carona de sempre a espera impaciente.

No carro.
Chove fininho, o limpador dos pára-brisas indo de lá para cá. O trânsito, carregado.

Dentro do carro, o casal calado. Olham para frente, esperando uma chance de se deslocarem, saírem do lugar, poucos metros que sejam.

Falta assunto.

A razão? Não vem ao caso e nem nos interessa...

Para quebrar o gelo, o homem, comenta, tentando, quem sabe melhorar o clima:

- Nunca mais essa rádio tocou a nossa música, não é?

No que a mulher entre ríspida (afinal ela está ao volante) e com pouco caso:

- Nossa música? Desde quando nós temos uma música? Você tá viajando? Vê se entende uma coisa de uma vez por todas, isso é só carona, não sou sua mulher, não sou sua namorada e nada sua, além da pessoa que lhe dá carona, compreendeu isso de uma vez por todas?

De repente parece que o engarrafamento nunca mais irá acabar. A chuva engrossa, e o rádio não toca a música “deles”...

E o clima dentro do carro piora.

Ela pensa:

- O vou fazer para o jantar...?


19h35minhs

(aqui cabe uma cena dramática)

Cenário: Banheiro cheio de vapor.

Ela sai do banho.

Pega a toalha e começa a enxugar-se lentamente.

Passa a mão no espelho para limpar o vapor e deixa a toalha cair no chão. Mira-se no espelho, vê um cravo.

Aproxima-se um pouco mais no intuito de espremê-lo.

Olha-se profundamente no reflexo, apóia a mão no lavatório.
Soluça e começa a chorar.

- Onde eu errei meu Deus, onde?

O jantar atrasa hoje.

No dia seguinte.

(Aqui acompanha bem, como fundo musical, um Cantochão)

De cócoras, depois de joelhos, arrastando-se pelo altar da velha igreja, com os olhos fundos, marejados, o peito apertado e pesaroso, entre soluços, se perguntava:

- Onde perdi a minha fé? Onde?

Lá do alto os anjos barrocos se olhavam embaraçados.



2011/02/09

A REFORMA!

(Uma história (i)real)




1. Primeiro chegaram arrebentando as paredes. Depois as levantaram e pintaram, deram acabamento de gesso, coisa bonita de ser ver, depois;

2. chegararam os eletricistas, arrebentaram as paredes, passaram canos para fios, mais fios para as lâmpadas, e outros tantos para as tomadas, quando eles se foram vieram os;

3. pedreiros reformar as paredes outra vez. Pintaram, recolocaram os gessos, limparam o salão e se foram para;

4. que o pessoal da informática instalasse os cabos lógicos, logicamente arrebentando novamente as paredes, o gesso recém recolocado no teto, empurrando as mesas e os outros móveis, arranhando o chão já tão sofrido. Foram-se e;

5. voltaram os pedreiros para repintarem as paredes e recolocarem os gessos de volta ao teto. Sentado à minha mesa olhava aquilo entre desolado e histérico, roendo as unhas, quando olho para a porta;

6. os marceneiros chegam para retirar as persianas. Arrebentam as paredes na operação. No chão acumulam-se persianas e pedaços de cimento e gesso que caiu do teto. Horas depois chegam as faxineiras. Depois de tudo limpo;

7. voltam os pedreiros. Cimentam os buracos de onde saíram as persianas. Pintam outra vez as paredes e outra vez o gesso e recolocado no teto. Minhas unhas já se acabaram, acho que agora vão cair-me os cabelos. Pensando nisso vejo;

8. chegar o pessoal que vai passar cascolaque no chão de taquinhos dos anos quarenta (não perguntem o século). Saímos da sala e vamos embora para casa, afinal o cheiro é forte demais. No dia seguinte;

9. nem bem chegamos à repartição, nos damos bonsdiasecomovão, comentamos como o chão ficou bom, quando;

10. voltam os pedreiros para, agora, pintarem o teto!

2011/02/08

A MALDITA PERGUNTA

(É quando me pergunto se vale a pena ser educado)



- Acordei com trinta e sete graus e meio!

Respondeu o cão, quando por educação (sim a tenho), perguntei-lhe como estava.

Mordi os lábios, e discretamente amaldiçoei a hora que o encontrei. Tentei seguir em frente, mas ele segurou-me pelo braço, ( os chatos tem esse hábito!) e começou uma história sem fim e/ou sentido sobre tudo e sobre nada em especial (especialidade dos chatos), minto teve fim, quando por milagre a porta do elevador abriu-se e deixando-o a falar sozinho, entrei naquele cubículo espelhado, apertei o botão do terceiro andar, e fui.

Mas antes que o maravilhoso meio de transporte vertical chegasse, ouvi muito. Não entendi nada, deixei-me ficar em piloto automático e balançava a cabeça afirmativamente para cada frase, palavra, sentença, afirmações e negações que ele fez. Concordando, falsamente, com suas exclamações, balançava a cabeça com mais veemência ainda.

Com as mãos nos bolsos eu quase me castrava, sentia em meu íntimo, que quando a conversa terminasse, se terminasse, estaria eunuco...

Tudo isso por um simples:

- Tudo bem?

No bolso do meu blazer trazia um exemplar de “Ficções”, de Jorge Luis Borges, que ainda feliz com a vida, havia comprado num sebo onde passo religiosamente todos os dias.

Pergunto-me se isso tem alguma coisa a ver com a essa situação.

...e ainda gasto dinheiro comprando livros sobre realismo fantástico!

A Grande História Jamais Escrita!

Tinha a vontade de escrever uma história sobre uma terra que vivia sob a sombra de reis barbudos, severos, gigantes e belicosos.

Que viviam em lutas constantes, destruindo tudo à sua volta, não respeitando vilas, famílias plantações.

Espalhando a morte e a peste, doenças e pragas pelos quatro pontos cardeais.

Teria também nessa história, como costumam acontecer nessas narrativas, dragões cuspidores de fogo e devoradores de donzelas, muitas donzelas. Ah! Heróis também teriam a sua vez, haja vista que não durariam muito, afinal se lutar com gigantes não é moleza, imagine somado a essa miséria ainda tivessem dragões?

Muito e muito tempo se passaria até que alguém, talvez um estrangeiro, eles sempre fazem suas avarias por onde passam, daria um jeito nesses gigantes e dragões, e por fim se casaria com a última donzela do vilarejo, claro que ele teria ainda de esperar uns anos, que por causa dos excessos dos dragões, a última donzela estaria com sete anos de idade...

Já ficou imaginando as aventuras que o estrangeiro viveria!

Afinal ele teria que empregar seu tempo, paciência e energia em alguma coisa, enquanto a sua donzela estivesse crescendo.

Depois de matar gigantes, dragões, praticar um ou outro estupro (pense na donzela, como demoram a crescer!), roubo de cavalo, ele iria explorar outras vilas, outros países e quem sabe, procurar uma outra donzela menos complicada.

Sim seria uma grande história, com um pouco de boa vontade de minha parte, tornar-se-ia uma grande saga.

Mas a preguiça...

De mais a mais, tenho lá meus problemas com donzelas..

2011/02/03

A VIRGEM VITORIANA


“O velho sátiro entrou no quarto da mocinha, ela estava estendida na cama, lânguida e ofegante.
Na verdade a mocinha era uma fada, de asas tão diáfanas que pareciam com as de libélulas. Magra, fina, frágil e branca feito uma porcelana chinesa, ela tremeu ao ver a figura priápica, perdeu o fôlego e sorriu.
Seu sorriso excitou ainda mais a monstruosa figura que avançou e baixou lentamente seus cascos eqüinos, evitando assim qualquer barulho que chamasse a atenção dos guardas que ficavam do outro lado da porta.
Sua respiração fazia vibrar o ar à sua vota.
A fada agitava suas frágeis asinhas e também arfava fazendo com que as chamas das velas tremeluzissem e produzissem sombras fantasmagóricas.
A besta lentamente achegou-se aos pés do leito da donzela...”



Abanando-se com as folhas manuscritas, a virgem vitoriana, afogada em uma desconhecida agonia, dirige-se à janela de sua casa de grossas paredes de pedras. Na velha lareira uma acha de lenha estala assustando-a. Ela se vira para trás e pensa ver a sombra do velho sátiro, encosta-se na parte mais escura da sala, e entre amedrontada e ansiosa pede a Deus que sua criatura tenha conseguido fugir do reino da fantasia e venha resgatá-la dessa vida insossa e sem cor. Mas outro estalo da lenha levanta uma minúscula faísca, que mesmo assim produz uma luz fugaz o suficiente para iluminar a sala e fazê-la sentir-se uma idiota.

Abana-se com mais força, fazendo com que as folhas se espalhem pelo chão, mas ela não pensa em recolhê-las de imediato. Antes de tudo o mais precisa respirar, precisa urgentemente respirar e chamar uma aia para libertá-la do espartilho, soltar-lhe os cabelos, trazer-lhe uma jarra de água – água, não – uma jarra de vinho tinto – vermelho cor de sangue – sente que precisa recuperar a cor.

Da janela a virgem vitoriana olha para a vila lá embaixo no vale. Mas pouco poder ser visto a essa hora da noite, pois é noite de lua nova e uma névoa muito espessa cobre tudo. Ela fecha a janela a tempo de evitar que um morcego entre em sua casa.

- Um morcego! – ela murmura – um morcego iria muito bem à minha história. Volta à escrita, relê, toma da pena de ganso – que cria exclusivamente para isso – e volta escrever.

“A criatura meio-homem, meio-bode estica sua gigantesca mão em direção à virgem. Ela sofre de angústia, desejo, escrava de um desejo até então desconhecido. Seria o forte odor caprino do mitológico ser que a enfeitiçava? Seriam seus olhos negros feito carvão?”

Outro estalo da lenha a fez jogar a pena de ganso para o alto, e quase cair da cadeira, onde se sentava na beirada, vítima, ela também, do encanto de sua história.

E com o susto, ela acaba por esquecer de introduzir o morcego na história.

A virgem vitoriana resolve, enfim, chamar a sua empregada, e pedir uma jarra de água e outra de vinho tinto. Com uma mataria a sede e aproveitaria para limpar o suor que lhe brotava na testa, com a de vinho, recuperaria a cor e a coragem para seguir em frente com a história.

Somente bebendo ela poderia imaginar a consumação do ato de amor entre a Besta e a Virgem. Enquanto esperava a velha serviçal chegar ela aproveitou para acender mais velas, a criada não deveria pegar jamais uma dama vitoriana como ela sozinha com uma história contendo sátiros príapicos, alcova e virgens prestes a deixar de sê-lo. Ela era uma mulher vitoriana ciente de seus deveres sociais.

Passados poucos minutos, ela torna à sua pena de ganso (outra, pois aquela outra só seria achada anos depois do...- bem isso é outra história e eu não vou contar nada aqui) e à escrita. Como que possuída por mil demônios, escreve e bebe, escreve e bebe e de quando em quando, sacudindo a cabeça, ri.

Descreve com impressionante riqueza de detalhes as preliminares (que ela descrevia da lembrança de uma noite em que, procurando a chave das adegas, pegou sem querer sua serviçal namorando com o chacareiro, protegidos pelas sombras dos corredores da velha mansão), trinta e três páginas depois, ela finalmente chega ao momento da consumação, e...

Para.

Estaca.

Petrifica-se, pois não sabe como continuar a partir daí, afinal, desgraçadamente, ela é uma virgem vitoriana, velha e feia.

Por exaustivos minutos, ela escreve, rabisca, rasga as folhas e nada consegue produzir. Olha para o chão agora coberto de folhas amassadas e chora.

Chora frustrada, pois:

1. Desconhece as delícias do sexo, e;
2. Precisa chamar a aia para, (que humilhação!) perguntar-lhe o que acontece depois das preliminares.

Gemendo, amaldiçoa ser uma virgem vitoriana...