2013/01/29

SEM TÍTULO



Assim se ufana

O canarinho

Num estribilho:

Liberdade é um sonho

Que não troco pela

Minha ração de alpiste

CRIME



Os ruídos saem em gorgolejos

Bolhas vermelhas

Escorrem pela túnica branca


2013/01/16

JAGUNÇO




Acabo de voltar da rua, encharcado até os ossos.

Mas não quero reclamar da chuva, nem da falta dela onde mais se precisa que aqui. Para isso temos os noticiários que não nos deixam esquecer. Na rua, lembrava-me de uma conversa que tive pela manhã.

Uma amiga reclama do fim de seu casamento e de não conseguir colocar o ex-amor para fora de casa, antigo ninho de amor, promessas e agora sonhos desfeitos.

Segundo ela, há vários dias deu ao companheiro o aviso-prévio, o caia fora, rua.

Mas ele faz-se de desentendido e continua assombrando as paredes do lar.

Dizia-me ela, que já não mais se falavam, faziam as refeições em horas diferentes, dormiam em quartos separados.

Todos os dias ao sair para o trabalho recomendava (creio que esse recomendava é eufemismo) que ele não estivesse mais em casa a hora que ela voltasse à noite, mas, ó desilusão, ao chegar encontrava o mancebo largado no sofá assistindo televisão, gritando a cada gol de seu time preferido, esperando ainda que ela lhe fizesse o jantar. Se isso remete o leitor a um samba antigo é pura coincidência. ¹

Ri de sua situação. Me diga o leitor o que se pode fazer numa circunstância dessas?

Pediu-me conselhos. A mim!

Ri uma segunda vez e perguntei-lhe se falava sério? O que poderia eu dizer-lhe, como eu poderia ajudar-lhe. Esse é caso em que terceiros não ajudam em nada e podem, ou conseguem somente atrapalhar.

Indaguei se não seria uma fase, pois o casamento como a lua tem lá suas fases. Como a maré (coisa de quem mora no litoral) tem lá seus altos e baixos...

Resumindo, fui tirando meu time de campo colocando panos quentes, saindo pela tangente.

A conversa prometia ir longe, com detalhes e mais detalhes, que só servem, no futuro, para nos deixar encabulados por tê-los ditos. A palavra como flecha, depois de disparada não tem volta (eis aqui uma pérola de profunda sabedoria), assim sendo tentei fazer a velha amiga não abrir tanto assim seu coraçãozinho.

Debalde.

A horas tantas, sim horas “e” tantas (mesmo) ela visivelmente desesperada (aqui não nos cabe julgar se seria caso para tanto desespero) me pergunta:

- Você que conhece tanta gente em tantos lugares, não conheceria algum jagunço que desse uma lição, ou mesmo leve susto nele?

Veja leitor, eu conhecendo um jagunço, eu?

Não foi possível outra vez segurar o riso.

Senti uma mágoa profunda nela, pois, agora sim, era visível sua desesperança.

Tentei desviar a conversa para outro assunto.

- Olhando pela janela vejo que vai chover logo.

Pausa.

Pensei com meus botões, ela deveria estar constrangida com seu desabafo, envergonhada da sugestão de dar um fim definitivo no futuro ex-companheiro, talvez já se imaginando nos jornais da noite, horário nobre na TV. Retalhado, encontrado num terreno baldio, pedaços espalhados numa praia, sei lá o que se passa na cabeça de uma desesperada.

A cara estampada na capa de uma revista sensacionalista!

A cena desenvolvia-se em minha cabeça...

Esperei mais algum tempo e seu silêncio continuou ate minha hora de almoço. Sem mais nenhum contato desliguei o computador e saí.

Na rua pensava ainda na sua pergunta sobre eu conhecer um jagunço, e lembrei que há uns trinta anos, quando jovem e fazendo teatro amador, sai uma noite - sim aqueles casos com o Vadinho como sempre - a procura de sanfoneiro para uma peça que montávamos à época...

Ora bolas, eu lá tenho cara de quem conhece sanfoneiros e jagunços? Poderia ter me aprofundado mais no assunto, não fosse a chuva me trazer de volta à realidade.









¹Golpe Errado

Geraldo Pereira

Lá vem ele com seu terno branco engomado/trazendo outra morena a seu lado/E a nega dele na casa da branca se acabando /E ainda leva o jantar embrulhado/É... um golpe errado/todo mundo diz que é../um golpe errado/Na hora que ele sai /pra batucada/é a hora que ela chega do trabalho/e tem de fazer de madrugada/um bife malpassado prá ele /Não ficar contrariado./É...um golpe errado

2013/01/14

IDEALISTA




Pobre homem

Cheio de amor e fé

Pela humanidade.

Padece

Planeja e sonha

Transformar lágrimas em risos

Doenças em saúde

Findar com a miséria

Criar, enfim, um mundo ideal

Te aviso pobre idealista:

- Nessa máquina as engrenagens são quadradas!

Pois saibas

Na verdade serás

Mastigado

Cuspido

E esquecido

A ti nem estátua

Nem placa de rua

Nome de manicômio

Serás pó

Esquecido

Ou pior

Hás de ser modelo de mau-exemplo!



2013/01/08

O MESMO




O despertador toca às seis horas em ponto.

Mais um dia, um dia igual ao de ontem, em suas alegrias e tristezas, o mesmo sol, as mesmas nuvens no mesmo lugar, como se fossem pintadas na tela azul do céu. O canto dos pássaros como num disco de vinil arranhado. E ele que gostava do canto dos sanhaços...

A campainha da porta toca.

- Mauro, passe amanhã. – grita da cozinha sem se dar ao trabalho de ver quem é.

- Mas você disse isso ontem – responda Mauro.

- E direi o mesmo amanhã e depois de amanhã. Responde passando manteiga no pão, o mesmo pão de ontem, que será também o de amanhã.

Os passos de Mauro descendo as escadas, a porta da rua batendo, os pneus do carro derrapando na rua e quase atropelando Mauro que escapa por um triz. Antes ele corria à janela para ver o que havia acontecido...

O mesmo dia se repetindo.

Ele abre o jornal, ainda quente, o cheiro da tinta, dobrado sobre a mesa. Na manchete a mesma tragédia, o mesmo número de mortos, seu horóscopo com a mesma previsão, “cuidado com a alimentação e falsos amigos, aproveite seu dia como se fosse o último”.

- Antes fosse! – pensou alto num longo suspiro.

O mesmo dia de trabalho, aquele processo sem solução, a mesma bronca do chefe na mesma hora da tarde – 15h30 no relógio da praça, onde mostrava ainda a temperatura, 32º -, o mesmo telefonema atrás da funcionaria Madalena da Silva – Tia Dadá do café, a mesma resposta:

- Ela está de férias. – e pensou “longas férias...”

De volta à sua casa, a mesma dose de formicida, as mesmas dores nas tripas sendo dissolvidas, o desmaio, o baque no chão quadriculado e frio, o acordar na cama no dia seguinte com despertador tocando às seis horas em ponto...

O mesmo dia se repetindo.

Se ao menos ele se lembrasse de trocar a folhinha ao acordar...