2017/11/08

DONA FUINHA, QUEM DIRIA, FEZ CENTO E DEZ ANOS MESMO!



- Dona Fuinha fez cento e dez anos mesmo!

- Você vai cumprimenta-la?

- Por nada-nada-nada-nada nesse mundo de Deus. Alias, já chamaram a Saúde Pública, Defesa Civil, bombeiros? Para entrar na edícula?

- Pois é... Pela lenda hoje é o dia de seu passamento...

- Velha dos infernos, vai enfim encontrar o “Pai”.

- Deus? Ela?

- Que Deus! O pai dela é o demo, príncipe das trevas, o tinhoso, o coisa-ruim, o maligno, o diabo.

- Será que lá nos infernos ela se dará bem?

- Capaz... O fogo e o enxofre há de limpar o mau cheiro daquele corpo...

- Corpo? Que corpo?

- Humm... O receptáculo da alma, quiçá?

- Dona Fuinha e alma na mesma sentença? Não dá liga, não orna não.

- Tem razão...

- Minha avó, quando era pequeno, me contou a história dela. Nunca acreditei até me casar – o que nunca pensei também...  – e vir morar aqui no bairro.

- Sim, coisa de gente encantada, amaldiçoada, gente com o batismo vencido. Desde os sessenta anos amaldiçoada desse jeito... Mas nunca soube os detalhes. O que tua avó contava?

- A velha contava que Dona Fuinha, aliás, Dona Maria Amália Fiúza era uma velha, já na época, muito má. Morta-de-fome que só, gananciosa, ambiciosa do alheio, gananciosa madrasta de uma da pior espécie. Trancafiava o sobrinho do marido no quarto, só deixando a criança sair para comer e beber, longe dos olhos dela, bem longe. Não deixava a criança sentar-se no sofá, pois o lugar dele era no chão, onde os cães não ficavam, pois esses ficavam deitados no sofá.  No trabalho vivia a falar mal dos colegas. A roubar comida das marmitas na geladeira. Humilhava o marido, flertava descaradamente com os motoristas, ou qualquer outro funcionário subalterno, sempre falando: - Isso é que é homem, não esse traste que mora na minha casa, ênfase no “minha casa, minha comida, minha cama, minha geladeira”. Era desprovida de qualquer graça, beleza ou simpatia, baixinha, tinha gorda e enorme que era - como explicar isso? - dois pares de joelhos! Pernas tortas. Cabelos tingidos com uma cor criada exclusivamente para ela, só pode ser essa a explicação! Uma coisa entre palha ressecada e bosta seca. Dentes encavalados, sempre com comida presa entre eles, voz agudíssima, quase um grasnar. Bajuladora de chefes, de diretores, de gerentes de bancos, de qualquer um que ela julgasse que lhe fosse superior. Sempre com uma palavra ruim, cruel, desabonadora, venenosa na ponta da língua. Eternamente desagradável. Ate que um dia, num desses dias que em nada promete fazer alguma diferença na biografia do cristão sobreveio. Aconteceu nesse determinado dia de ela estar falando mal do “negrinho”, que se dependesse dela, comeria uma única vez por dia, dentro do quarto dele, poupando-a assim de olhar para aquela fuça preta que lhe causava nojo e repugnância, quando um senhor, à grande custo segurando sua raiva ouvindo tanta desgabo chegou-lhe de chofre e olhando em seus olhos de roedor preferiu-lhe essa praga:

- “A senhora é a pessoa mais desagradável que já vi e ouvi em toda a minha vida. E a senhora não faz ideia de quanto eu já vivi... Pois saiba que eu desejo, e assim será, que a senhora viva, a partir de hoje, mais cinquenta anos. Quero que a senhora viva com dores, viva sofrendo, quero que a senhora viva e veja todos ao seu lado morrendo, quero que a senhora sofra dores, quero que a senhora chore lágrimas de sangue, que a senhora se arrependa, e somente um dia depois dos cinquenta anos que agora lhe dou a senhora morra, não que descanse, mas que morra. Mas não pense que há de desfrutar desses anos, não, não há de. Seus dias serão de agonia. Fome, terás tanta fome, que usaras focinheira para não se auto devorar, pois, há de, quando ninguém estiver por perto, arrancar pedaços da própria carne para se saciar.   Quando então chegar perto do fim de seus dias, toda a podridão de seu corpo alma tornar-se-ão  podridão. Todos à suas volta afastar-se-ão de nojo. Terás por companhia nesses últimos dias somente os abutres e os comedores de carniça, pois é isso que és por dentro hoje, é assim que sairás desse mundo quando sua hora chegar.“

- Cinquenta anos sofrendo essa maldição e mesmo assim continuou má até o fim...

- Quantos gatinhos e cachorrinhos intoxicados com chumbinho, pardais, sanhaços, andorinhas, todas envenenadas naquele chafarizinho. Velha infeliz dos infernos vivia se arrastando feito assombração apoiada nas paredes. Meu pai dizia que sempre a via revirando latas de lixo em busca de restos comida. Roubava roupas dos varais. Mas o pior era quando ela começava a gritar...

- Estava esquecendo essa parte. Ela gritava por conta das dores de dente. Na praga ainda estava que ela sofreria de fome eterna e dores em todos eles. Mas quem a viu há uns anos atrás disse que já estava completamente careca e banguela. Cega, surda e cada dia pior de caráter. Essa morreu tão má como no dia em que nasceu... E não sobrou ninguém da família para chorar sobre a sua carcaça. Nem filhos, nem netos, bisnetos. Que a terra lhe seja muito pesada.

- Essa desgraçada vai ser enterrada mesmo é como indigente, mas o que me preocupa mesmo é o maldito cheiro de carniça que ficará no bairro por muitas e muitas gerações... Isso vai continuar desvalorizando os imóveis.

- Que Belzebu[i] e leve com todas as moscas do bairro!








[i] Belzebuth ou Belzebub ou Beelzebuth, príncipe dos demônios, segundo as Escrituras; o primeiro em poder em e crime depois de Satanás, de acordo com Milton; chefe supremo do império infernal, de acordo com a maioria dos demonógrafos entre eles o nosso demonólogo plantonista Doutor Vadinho Madeira.