2018/03/29

ARTE NO BAR “MOSCA FRITA”




Vejam isso, tem coisas que só acontecem naquele bar – conhecido como “Mosca Frita”, tido e havido como o melhor pé-sujo da região.

Depois da proibição de fumar dentro do bar ou mesmo sob sua marquise, cuspir no chão, pendurar a conta, trazer uísque de casa e usar o gelo do bar os fregueses passaram a reclamar das músicas que o galego tocava lá. Era breganejo, pagode, forró, dor-de-cotovelo, dor-de-corno, dores-de-amores, sofrência, boleros e guarânias e outras tantas misérias musicais que rara era a noite que um ou outro não tentava cortar os pulsos com um caco de garrafa de cerveja, beber aguarrás ou pular debaixo de algum ônibus.

 Pois cansado dos protestos, ele resolveu inovar, e resolveu colocar cultura no boteco e vejam só a encrenca que ele criou.

Noite de sexta-feira.

Entra um casalzinho, desses moderninhos, descolados, do tipo que colocam no C.V.: “uma aventura num barzinho de subúrbio” - procuram uma mesa bem discreta nos fundos, perto da cozinha e ao lado dos banheiros, dão-se as mãos, olham-se nos olhos, pedem uma coca-cola diet com gelo de água mineral e limão siciliano e dois copos – no bar do Galego não tem canudinhos, por questão de higiene, a vigilância sanitária descobriu que o galego os reaproveitava, mais uma Vistoria Vitoriosa do Fiscal Dr. Vadinho, O Implacável...

Ela, segurando a mão do rapaz começa a falar-lhe bobagens aos ouvidos, quando de chofre a luz se apaga, surge o galego trepado uma pipa de chope e começa a declamar:

(silêncio de perplexidade)


- Galego - Atenas. O pa­lá­cio de Teseu. Entram Teseu, Hipólita, Filóstrato.

E saem dos banheiros, um homem e uma mulher com os corpos cobertos por toalha de mesas de mesa e começam a falar:

- TESEU - Depressa, bela Hipólita, aproxima-se a hora de nossas núpcias. Quatro dias felizes nos trarão outra lua. Mas, para mim, como esta lua velha se extingue len­ta­men­te! Ela retarda meus anelos, tal como o faz madrasta ou viúva que retém os bens do herdeiro.


(silêncio de perplexidade mais intenso ainda)

- HIPÓLITA - Mergulharão depressa quatro dias na negra noite; quatro noites, presto, farão escoar o tempo como em sonhos. E então a lua que, como arco argênteo no céu ora se encurva, verá a noite solene do esposório.


- TESEU - Vai, Filóstrato, concita os atenienses para a festa, desperta o alegre e buliçoso espírito da alegria, despacha para os ritos fúnebres a tristeza, que essa pálida hóspede não vai bem a nossas pompas. (Sai Filóstrato em direção ao banheiro de onde saíra.) De espada em mão (na verdade um salame ainda envolto em parafina) te fiz a corte, Hipólita; o coração te conquistei à custa de violência; mas quero desposar-te com música de tom mais auspicioso, com pompas, com triunfos, com festejos.

O galego, com uma toalha de mesa xadrez verde e vermelha enrolada à volta da cintura, torcendo os bastos bigodes, diz emocionado:

Galego - Entram Egeu, Hérmia, Lisandro e Demétrio!


(silêncio, silêncio assustador)


O rapaz que segundos antes interpretava Teseu muda de toalha de mesa que antes era amarela, para uma toalha de mesa branca.

- EGEU -­ Salve Teseu, nosso famoso duque! - E mudando a toalha de mesa amarela para branco novamente,

- TESEU - Bom Egeu, obrigado. Que há de novo? – e mudando outra vez a cor da toalha de mesa.

- EGEU - Cheio de dor, venho fazer-te queixa de minha própria filha, Hérmia querida. Vem para cá, Demétrio. Nobre lorde tem este homem o meu con­sen­ti­men­to para casar com ela. Agora avança. Lisandro. E este, meu príncipe gracioso, o peito de Hérmia traz enfeitiçado. Sim, Lisandro, tu mesmo, com tuas rimas! Prendas de amor com ela tu trocaste; sob a sua janela, à luz da lua, cantaste-lhe canções com voz fingida, versos de amor fingido, e cativaste as impressões de sua fantasia com cachos de cabelo, anéis, brinquedos, ramalhetes, docinhos, ni­nha­rias, men­sa­gei­ros de e­fei­to de­ci­si­vo nas jovens ainda brandas...

Um copo é jogado contra o chão, todos se assustam. Começa o burburinho o encanto foi quebrado, acabou-se a magia.

Nesse momento crucial, eles são abruptamente interrompidos, pois a mocinha que tudo via sem nada entender, assustada começa a chorar e pede para ir embora.

- Você me prometeu uma noite romântica e me trás num antro de loucos? Cadê as músicas de amor, cadê os músicos seus amigos? Você me trás para ver essa indecência? Homens e mulheres seminuas vestida em toalha de mesas...
(as vaias dos bêbados enchem o ambiente)


O rapaz intelectual de esquerda, barbudo, cabelos cacheados, cachecol em volta do pescoço - eterno refém da ideia de uma revolução, quer cultural, quer social – que achando que impressionava a namorada, fica sem graça, olha envergonhado para os atores - esses sim seus amigos de Diretório Acadêmico, não os músicos citados pela namorada – chama o galego, e embaraçado, pede a conta.

Sua sorte, a única pelo resto da noite, era que o dinheiro que trazia no bolso deu certinho para pagar a coca-cola e o copo quebrado...

Levanta-se e segue em direção à saída, sob apupos dos bêbados que desde que despertaram do encanto esperavam uma briga, desce para a rua e grita pro galego:

- Eu falei que essa droga de William Shakespeare, não ia dar certo, da próxima vez tem de ser Plínio Marcos, Plínio Marcos, seu elitista idiota, burguês de subúrbio, o povão não quer arte, quer palavrão.

- Olha para a namorada que continua sem entender nada, afinal ela só queria um pagode para rebolar.

E assim mais um capítulo anônimo da Historia passa sem testemunhas e registro.

No dia seguinte o Galego escreve com giz na tabuinha na porta do estabelecimento:

Prato do dia: “Buchada de Bode com lentilhas, batatas ao murro e à noite ”Navalha na Carne”.

Ainda assim em seu íntimo pedia a Deus que a “distinta freguesia não imaginasse que navalha na carne não fosse um convite a brigas...”.

- Ai qu’um dia “bolto” a Portugal e às minhas “bacas”... – suspira enquanto seca o suor da testa com sua boina de lã.

2018/03/15

MENOS UM NESSA NOITE


sobre a mesa - o jornal
decalcado nele – morto
o autor do zum-zum


MAIS UM DIA DEPOIS DE OUTRA NOITE DE CHUVA...




pela janela
a realidade,
pelo rádio
o prefeito e suas estatísticas
águas sujas
números vazios
no segundo mandato
não há mais horizontes
nem necessidade de promessas
a realidade invade
as ruas
as calçadas
as portas
sobe pelas janelas
depois dos ratos
fogem as pessoas
no rádio o prefeito regurgita
números
números
números
números
não se engasga
não tosse
não fica vermelho
 não lhe cresce o nariz
e enquanto desvio de buracos
e lixo espalhado
a sua verborreia desce pelos falantes do carro
e como nas ruas da cidade
inunda de imundície os meus ouvidos...
olho o céu e vejo a (mesma) chuva para essa noite
outra vez
outra vez
outra vez
outra vez
outra vez












(como não me ufanar de meu torrão natal? Como?)