2019/04/30

REFORMA





36° anuncia o termômetro da rua!
Por via das dúvidas, desde antes de ontem, escondi as lâminas de barbear. Há anos tenho grades na janela, não dá para saltar no espaço entre o telhado de casa e o chão lá embaixo, não nasci para o verão, tenho tremores quando se anuncia a primavera...
O pedreiro chegou na hora, errada – para mim. Queria que ele não viesse hoje, obras, grande ou pequenas, me estressam, reformas me enlouquecem.
Tenho um texto para terminar de escrever. Dois cachorros a passear na rua...
Ele entra, suja meu tapete, e me avisa:
- É melhor o senhor recolher os tapetes e cortinas, hoje o serviço vai ser punk.
Respiro fundo.
Desde ontem estou com prisão de ventre, constipação proveniente dessa obra em casa...
 Sinto-me estufado feito um baiacu, e de mau humor. Já tomei iogurte grego, agua morna pela manhã, mamão, duas colheres de sopa de azeite extra virgem, óleo mineral.
Estou lubrificado e entupido ao mesmo tempo.
Sento-me à mesa.
Encaro o notebook, ergo minhas mãos como se fosse eu grande maestro a reger a Sinfonia 1812 de Tchaikovsky. Quando meus dedos estão quase pousando sobre os teclados minhas cachorras começam a latir a uivar como hidrófobas. Salto como se tivesse molas nas pernas, corro à cozinha onde elas estão e paralisado de horror vejo o pedreiro paramentado com o mais assustador traje de trabalho, com máscara cobrindo-lhe o roto, luvas sujas de tinta vermelha e uma marreta na mão direita fazendo gestos desesperados para que a cachorras parassem de latir.
Encosto-me à parede, tento recuperar o fôlego, gesticulo às cachorras, que não entendo minhas ordens põe-se a latir ainda mais – minhas cachorras são raça poodle! O pedreiro tranca-se na área de serviço.
Tornando-me, outra vez senhor da situação faço parar os latidos, peço ao pedreiro que volte ao serviço.
Olho o termômetro da rua, 38º...
Acho que a terra está mais próxima do sol que a lua de nós...
Deliro.
Volto ao notebook e ao meu texto:

... então no sétimo dia, baratas em volta daquela maçã perdida no escuro da noite...”
Sou interrompido outra vez.
Agora as cachorras começam a correr em volta das minhas pernas. Choram, fazem manhas, correm à porta e jogam-se ao chão aos prantos. Olho me relógio de pulso. Hora do xixi delas.
Penso no termômetro.
Penso no calor.
Penso:
- Que mijem no apartamento!
Penso na mistura de urina, cimento e cal...
Pego as coleiras para leva-las à rua.
Pego meu chapéu Panamá.
Meus óculos de sol.
Passo protetor solar.
Respiro fundo e vou à área de serviço, Lili, a poodle branca não conseguiu se segurar...
Limpo rapidamente o chão, pois sei que cada segundo que passa aumenta o perigo.
Tento não olhar para o termômetro.
Ando pela calçada como as baratas de meu conto a ser escrito, ando encostado nas paredes, esgueirando-me pelas sombras. Por duas ou três vezes pisei nas patas das bichinhas. Somos três lutando por uma fresta de sombra.
É quase meio-dia, diminuem as chances de encontrarmos sombra.
Elas não encontram um pedaço de chão que não esteja fervendo. Tento arranjar forças para leva-las a uma pracinha a dois quarteirões daqui. Antes de atravessarmos a rua elas acabam por urinar em mim...
No termômetro 39°.
Resignado volto ao apartamento.
Corro ao banheiro para tomar um banho. Enquanto esfregava-me furiosamente veio a primeira cólica.
Dobrei-me em dor.
- Essa não era uma boa horaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaargh – hurro.
Segue-se uma segunda e mais dolorosa pontada na barriga.
O desjejum começa a surtir efeito agora.
Escorrendo água e sabão pelo corpo, patinei em direção ao vaso.
Quase escorregando sento-me nele...
E quando começo a evacuar...
O pedreiro dá a primeira marretada para derrubar a parede de um quarto.
Com o susto o “fluxo” é, literalmente, cortado.
Sentado no vaso, encharcado, rescendendo a urina de cachorro e “interrompido” em uma necessidade das mais básicas...
Uso de meus conhecimentos de zen-budismo, tantra, enfim, rezo e faço promessas, minha situação é constrangedora e dolorosa.
Respiro fundo, aberto minha barriga com todas as minhas forças, dou soquinhos nos joelhos, fico roxo de tanto esforço.
Quando estou quase “conseguindo”, sentindo o relaxamento do esfíncter...
...outra marretada do pedreiro na maldita parede interrompe meus dolorosos esforços.
- Deus! – clamo por Ele em desespero de causa.

A HOMENAGEM


Homenageávamos uma querida amiga.
Antes de continuar essa narrativa devo, a bem da verdade, dizer que uma pessoa chamou-me a atenção desde que cheguei. Uma senhora de grande circunferência e peso, que trajando um vestido cereja-incandescente atraia as pupilas desavisadas daqueles que atravessavam o umbral da vetusta igreja.
Um ano de falecimento.
A ela eram-lhe feitos discursos, comentávamos a sua falta.  Testemunhos, demonstrações de grande afeto, depoimentos sem fim. “Hasta” que chega o (assim se apresentava o bufão) “quebrador de paradigmas” – o sem noção de costume, o ladrão do brilho alheio – e põe-se vomitar dialética, politizar a falecida, esquerdificar suas posições, suas declarações, suas ações, procurei, discretamente as bandeirolas vermelhas com foice e martelo, não as vi, mas devem ter esquecido em algum lugar por ali, ou - deliro, sei – planejavam para o fim uma passeata...
Apresentou-se como “adevogado” & poeta!
Ia começar a perpetrar um poema em homenagem à finada quando, enojado, saí da sala sentindo a triste vergonha alheia.
Estava sem tomar o meu omeprazol, logo começariam os refluxos...
Fiquei a zanzar aguardando acabar a cerimônia, pensando com meus botões que talvez a homenageada não estivesse curtindo tanto assim a tal preito.
Mas, quem sou eu para saber das coisas do além?
Acabada a cerimônia, fomos ao coquetel, propriamente dito, e à confraternização, pois estamos todos naquela fase da vida onde só nos encontramos agora em enterros, deixando para lá os aniversários, casamento e batizados.
Abraços daqui, abraços dali, fugindo de um ou outro, fotos e mais fotos. Estava já esquecido da chateação anterior quando, após fotografar um grupo de amigas, umas das presentes (nem tão amiga minha assim...) deu-me seu celular para que eu tirasse a mesmísima foto...
Peguei o aparelho e logo lhe disse que ele não estava funcionando, ao que ela me responde que o dito aparelho é ruim mesmo...
Mexeu daqui, mexeu dali e me devolveu o aparelho, foquei, apertei o disparador, e devolvi-lhe o aparato.
Brava ela me responde:
- Para quem se diz fotografo, você fez uma merda de foto.
Foi nesse momento que tudo o que estava azedando-me o estomago veio à tona.
- Antes de dizer que sou um mau fotografo, compre um aparelho que preste, cale essa boca e pelo amor de Deus, troque de roupa. Sua cereja hidrófoba!
Aliviado o estômago, parti para os salgadinhos.


2019/04/11

CURTA ALEGRIA


Segunda-feira chuvosa, úmida, poças d’água nas ruas, grossas gotas caindo das árvores, cães molhados sacudindo-se nos bares e marquises, um friozinho que acalenta uma quente poesia no peito...
Um carro passa, molha-o.
Da poesia ao crime, uma pedra.