Acabado o almoço, sigo pra
cafeteria encontrar alguém para desfrutar o melhor horário do dia. Lá encontro
meu amigo *** (prefiro não declinar-lhe o nome, pois tudo o que escrevo é
baseado em fatos reais), dirijo-me à mesa.
Sentado, soprando a fumaça
da xícara de café, lamentava-se:
- Ainda não consigo
compreender a razão daquele papelzinho com o número do celular que ela me deu...
Para que ela me deu o número do celular se não era para sair comigo?
- Talvez... – Empaquei,
enquanto vagarosamente dissolvia o adoçante de meu café. Entenda, não há talvez
para papéis com número de telefone.
- Sim, vamos, responda.
- Talvez... – Empaquei pela segunda vez, com o
adoçante já dissolvido e o café pronto para ser sorvido. O que eu poderia
responder para ele naquele momento?
- Eu imaginei, digo, afirmo que entendi que
ela queria sair comigo. O que mais poderia ser? Afinal o que significa nesse
mundo de meu Deus um bilhete com um numero de telefone?
- Sim, só poderia ser isso, sem sombra de
dúvida ou talvez... – Empaquei outra vez. Indagava-me, enquanto bebia aquele
café, ser cruel e dizer a verdade ou olhar para o céu atrás de discos voadores?
O céu, lá fora estava azul, seria fácil encontrar algum UFO por lá...
- E o que eu fiz? - ele continuava com a sua peroração, que só
por pura piedade cristã eu fingia que prestava atenção. - Liguei e marquei um
encontro. Às seis horas da tarde fui encontrá-la na saída do trabalho. Fui sem
dinheiro, só com meu vale-refeição, a uma pastelaria. Dei a entender que havia
deixado de almoçar para fazer um lanche mais substancioso com ela. Pedi dois
daqueles chopes de vinho. Olhei dentro dos olhos dela e propus um brinde.
Enquanto ele falava
consegui beber meu café. Estava de olho num doce português, na próxima
oportunidade pediria um...
- E... – indaguei sem muita convicção, sou
fissurado em doces portugueses...
- Ela levantou a taça e brindou: - “À nossa
amizade!”
- Meu Deus! – engasguei-me com o ar respirava.
A garçonete veio acudir-me, aproveite e pedi outro café e um pastelzinho de
Belém.
- Sim! Meu Deus, onde fui
me meter! – ele, dramaticamente levantou as mãos aos céus. - Foi o que me
passou pela cabeça naquele instante. Fiquei mudo e dentro da minha cabeça as
palavras “amizade” ecoavam: - “amizadeamizadeamizadeamizade...”
- E ela? –perguntei agora realmente
interessado no desenrolar do drama do amigo.
- Bebia o chope sofregamente, como que tivesse
uma desculpa para não falar nada. Olha através de mim, além de mim, contava os
ladrilhos das paredes da pastelaria... Pensei com meus botões, se ela olhasse
para o relógio não responderia pelo atos...
- E você?
- Olhava para ela como quem olha para um
acidente de trânsito, um desastre, era o que eu via um desastre, e o acidentado
era eu. Via ali, na mesa, um cadáver. Você já viu um cachorro atropelado numa
estrada?
- Sim. Feio de se ver... – adoçava o café e
repensava a ideia de comer o doce, a imagem do cachorro atropelado mexeu com a
pinha psique.
- Pois é. Era isso o que eu (me) via ali. Um
desastre feio, e o desastre era eu. Ia voltar pra casa a pé, não tinha nem
grana para pegar um ônibus, e por causa dela tinha recusado uma carona pra
casa, tudo para um brinde de amizade...
- Que situação... – encarei o doce.
- Que situação a minha, ali naquela hora. Tudo
congelou. O papo, os planos, o futuro, os filhos, os passeios de mãos dadas ao
por do sol, nossas bodas de ouro no nordeste e tudo o que eu via pela frente
era o caminho que eu faria a pé indo para casa. E ameaça chover, lembra?
- Mas você não tentou nada?
- Tentar o quê? Falar mais o que depois desse brinde
“à nossa amizade”? Minha vontade na hora foi pegar uma arma e matar todos os
meus amigos, para nunca mais precisar pronunciar a palavra “amizade”.
- Obrigado pela parte que
me toca. Matei o café num gole só, para segurar a risada, consegui não me
engasgar de novo.
- Desculpa. Sei que foi
mal... – vi que seu arrependimento de verdade. Relevei.
- Tudo bem, continue. Pedi outro café. O
terceiro até aquele momento. A vida dele indo pro buraco e levando meu estômago
junto.
- Ela bebeu todo o chope de uma vez sem
respirar e pediu outro. Além de acabar com minhas ilusões, acabaria também com o
saldo me meu vale refeição. A miserável! Outro chope e mais um ônibus que eu
deixaria de pegar...
- Então ela era boa de copo? – senti uma
coceira no lado mau-caráter.
- Boa de copo?... Ela era boa de bico. Responda-me:
para que ela me deu o telefone? Qualquer um entenderia que era uma cantada...
Por que só comigo tinha que ser diferente? Onde eu errei na interpretação do
bilhetinho?
- Mulheres! – Argumentei filosoficamente,
mantendo-me assim numa posição ambígua sem me comprometer. Olhava para o prato
onde estivera o meu pastelzinho de Belém, e pedia forças a Deus para não rir.
- Mulheres, mulheres, mulheres! Deveriam todas
ser enviadas para o lado escuro da lua. Se eu pudesse viver sem elas...
- Quem as entende...? – olhava a garçonete que
me trazia o terceiro café. Pediria ou não outro doce? Minhas escolhas também
não eram fáceis...
- Olha aqui. – Tirou do bolso um papelzinho
dobrado e amarfanhado. Veja os números, veja a letra dela. Tem alguma coisa
aqui que dê a entender que ela queria só amizade comigo? Leia, leia, leia!
Para não ter um dos olhos vazados pelo papel,
peguei-o de sua mão. Gravei na memória para depois jogar no bicho, daria,
certamente, vaca ou burro!
- Realmente, - cinicamente olhava o papel –
realmente nada aqui dá a entender que era um bilhete de “amizade”...
- Não precisa ser irônico na pronuncia da
palavra amizade! – Rosnou.
- Quer que eu rasgue essa porcaria? – Ameacei.
Muito café desperta a minha Besta interior...
- Não! - Disse tremendo,
quase gemendo – não rasgue, preciso ler e reler, analisar, estudar esse papel
até entender onde está escrito que ela queria só a minha amizade.
Pegou o papel de minha mão,
olhou-o contra luz e tornou a guardá-lo no bolso.
- Até quando você vai curtir essa decepção? –
esvaziava a terceira xícara de café...
- Essa eu vou levar paro o túmulo, e quando
reencarnar vou me lembrar disso outra vez...
- Carma é uma coisa, isso já está ficando meio
psicótico. – limpava da camisa os farelos do docinho.
- Agora você vai dizer que estou louco,
imaginando coisas, vai dizer que estava patente aqui no bilhete – e outra vez
ele tirou o papelzinho do bolso – que ela queria só a minha amizade?
- Veja – disse olhando para o relógio – está
quase na hora de voltar a trabalhar. Vamos deixar isso prá lá, esqueça; pelo
menos você bebeu um chope e... – fui interrompido.
- Que chope? Antes de pedir o segundo ela
bebeu o meu. Disse que ia esquentar e tomou o copo da minha mão...
- Quer dizer que a noite foi perdida mesmo,
você nem mesmo bebeu? Que...
- Nem pronuncie a palavra, nem pronuncie. Me sinto
assim desde de aquela noite. Maldita mulher, maldito bilhete, maldito mal
entendido, maldito chope caro, maldita vida essa que me leva prá...
- Nem continue! – Disse levantando-me da mesa.
– Deixe um pouco para amanhã. Por hoje chega. Vamos trabalhar.
- Vá indo na frente, tenho
uma coisa a fazer e devo fazer sozinho. – Seus olhos marejados encaravam o
bilhete.
- O que você vai fazer? Não
faça besteira, pense bem, não tem mulher que mereça... – outra vez
interrompido.
- Pode ir em paz. Fique sossegado. Para provar que não vou
fazer nenhuma besteira te prometo ligar mais tarde. Vá, vá.
Saí um pouco mais aliviado, da porta o ouvi
pedir:
- Garçom um chope!
Pensei com meus botões:
- Vai tirar o atraso de
ontem...
De volta ao escritório tive
um acesso de riso.
- Ah! Esses amigos que eu
tenho!