Um marinheiro musculoso, de camiseta azul marinho, ruivos cabelos desgrenhados e olhos vermUm
marinheiro vigoroso, de camiseta azul marinho, cabelos ruivos desgrenhados e
olhos vermelhos injetados, já completamente bêbado, estava sentado à mesa
esperando pelo centésimo copo de cerveja. À sua esquerda, uma viúva histérica
chorava e ria ao mesmo tempo, enquanto entornava copos e copos de uísque; à sua
volta seus parentes mais próximos a acompanhavam bebendo cervejas, enquanto uma
ou outra lançava olhares lúbricos para ele que, a cada gole, olhava aflito para
a porta de entrada da taberna. Parecia aguardar alguém. Alguém que, pela
quantidade copos, estava muito atrasado...
Sobre o
balcão, na falta de um palco, um mágico apresentava espetáculo, anunciando que
seria esse o último de sua carreira, já que completava nesse dia seu
ducentésimo aniversário e se encontrava cansado demais, prometendo a todos que,
após o espetáculo, se aposentaria e sumiria junto com a sua jovem assistente,
uma dinamarquesa de vinte e cinco anos de idade. Jovem sim, embora aparentasse
setenta e dois anos, dez meses, vinte e dois dias, dezessete horas e quinze
segundos...
A dona da
taverna, uma senhora gorda, rosada, simpática, rotunda e levemente assemelhada
a um suíno – que emprestava o nome à taberna -, mais guinchava que ria um riso
agudo e estridente, enquanto atendia a freguesia.
Mas assim
como o marinheiro, ela também não tirava os olhos da porta de entrada, que se
encontrava fechada por causa da chuva fina e fria que assolava a rua.
Duas gêmeas
cobrindo a boca escondiam os dentes encavalados e sujos. Riam das piadas que o
mágico contava entre um truque e outro, mas na verdade esperavam pelo fim do
espetáculo, quando ele iria presentear a assistência com os coelhos que sairiam
da velha cartola.
O ar estava
turvo de fumaça de cigarros, charutos e do cachimbo - de espuma - que o velho
lobo-do-mar pitava entre um gole e outro de cerveja.
As parentes
da velha viúva não tiravam os olhos de cima do marujo e cutucavam-se umas às
outras entre risinhos débeis, comentando que poderia ser impressão delas, mas,
a medida que o marinheiro bebia, as tatuagens moviam-se em seus braços.
Os arpões
atacavam os dragões, o coração de mãe já não sangrava mais, mas juravam que ele
estava soluçando e chorando. Enquanto isso, a loira tatuada no braço esquerdo
tirava a roupa.
- Uma pouca
vergonha! - dizia a mais velha de todas, bebendo mais um cálice de absinto.
Os aplausos
para o prestidigitador espantaram os pombos que, saídos anteriormente de seus
punhos e pousados sobre os caibros, voaram assustados sobre os fregueses. As
gêmeas, numa demonstração de inconcebível agilidade felina, pegaram dois deles
no ar, arrancando suas cabeças...
...e rindo
histericamente, devorando como se fossem duas gárgulas famintas.
No canto
mais escuro da taberna, sob uma escada, um chinês amarelo e enrugado pelo tempo
e pelo vício fumava ópio e mendigava um copo de bebida.
Mais
aplausos ao mago!
Lenços
coloridos.
A
assistente serrada ao meio, que, diga-se de passagem, não voltou mais ao palco,
foi substituída por outra mocinha: uma árabe ruiva que recendia a couro de camelo.
Cartas de
baralho encardidas, dobrões espanhóis que apareciam atrás das orelhas de
velhinhas bêbadas e outros truques baratos entretinham os solitários
frequentadores da taberna.
Lá fora a
chuva engrossava..
As gêmeas
olhavam para o relógio e se perguntavam:
- Quando os
coelhos sairão da cartola? –pergunta a, cinco minutos mais velha.
- Quando os
coelhos sairão da cartola? – repetia a caçula, salivando.
O
marinheiro chegara ao ducentésimo copo de cerveja e começara a ficar tonto.
Suas tatuagens, enjoadas de tanto álcool, saíam de sua pele em direção à porta
dos fundos, alcançando a rua e respirando um pouco de ar puro, correndo o risco
de serem apagadas pela chuva.
A fumaça de
seu cachimbo misturava-se à do cachimbo do chinês, formando imagens de feras e
criaturas fantásticas digladiando-se entre si (muitos frequentadores apostavam
nos dragões do velho chinês!).
Mas a
contenda não foi longe, pois o bater de asas dos pombos, assustados pelo rufar
dos tambores chamando a atenção dos fregueses para o número final do mágico,
espalhou-as no ar.
Rindo e esputando,
as gêmeas esfregavam as mãos encarquilhadas, esperando pelos coelhos que finalmente
sairiam da cartola. Já nem prestavam mais atenção aos columbinos que passaram
em frente à mesa.
Ao fim do
rufar dos tambores, todas as luzes se apagaram e um spot de luz vermelha focou
o mágico. Ele repetiu que este seria seu último show e que, uma vez aposentado,
se retiraria da vida artística, casaria com sua assistente e dedicar-se-ia a
escrever suas vastas memórias.
Então tomou
da cartola e dramaticamente olhou nos olhos de cada pessoa, em cada uma das
mesas. Procurou pelo marinheiro e o viu em sua mesa totalmente bêbado, agora
sem nenhuma tatuagem, olhou nos olhos da viúva, que agora nem ria nem chorava,
parecendo aliviada de todas as dores. Olhou em direção às suas parentes, que
antes choravam como carpideiras e que agora, mesmo alcoolizadas, pareciam mais
sóbrias que antes. Olhou as gêmeas e vislumbrou a fome que as devorava. Olhou
para a dona da taberna cada hora mais e mais rotunda, risonha e rosada. E como
já sentindo saudades, olhou com nostalgia para seus pombos que voavam, tentando
fugir tanto de dentro da taberna como da fome das gêmeas.
O mágico
suspirou, pediu silêncio, olhou dentro da cartola, mostrou à audiência que ela
estava vazia, virou-a de um lado para outro, colocou-a no chão, subiu em uma
cadeira que havia pedido a uma das gêmeas e - espanto geral - pulou dentro dela
e desapareceu para todo sempre com sua jovem assistente!
Epílogo.
Num átimo,
as pombas que ainda revoavam dentro da taverna arremessaram-se para dentro da
cartola seguindo seu mestre. As gêmeas furibundas e famintas entredevoraram-se
aos gritos e maldições recíprocas. A viúva chorando clamava pelo falecido, que,
de volta dos mortos a leva consigo para o além.
O
marinheiro acorda com os gritos, resmunga e grita impropérios ao se ver nu sem
suas tatuagens.
Nesse exato
momento a porta da taberna se abre e da rua surge uma sereia molhada de chuva.
Vendo-a, o marinheiro diz:
- Isso lá
são horas de você aparecer? Olhe isso! – diz apontando para os braços sem
tatuagens. - As outras se cansaram de esperar e foram embora.
Com dificuldade
levanta-se da mesa derrubando as mais de duas centenas de copos no chão. De tão
embriagado, tropeça nas próprias pernas e cai junto com os copos.
- Não sei
por que ele bebe tanto! – desculpa-se a pobre sereia que, arrastando-se com
dificuldade, carrega-o de volta ao seu navio ancorado não muito longe dali.
O chinês lá
no fundo ri de tudo, acendendo outra vez o cachimbo de ópio...