Local: Arquivo
Geral de uma repartição pública.
PERSONAGENS:
Chefe Ney – Tido e havido por avis-rara,
um abnegado e primeiro mártir do serviço público. Não tem nem dá sorte com seus
subordinados.
Agente Mostarda - Típico funcionário público, com agravante
de não tomar banho, não trocar de roupas por meses e meses a fio. Ladrão de
comida, flibusteiro covarde que ataca a cozinha e rouba comida da geladeira e
das mesas dos colegas trabalho, vagabundo, chorão e endividado em todas as
praças. Quando, na falta de que fazer, liga para as ex-mulheres e as xinga,
sempre usando o telefone da repartição(para economizar!). Sua única fraqueza?,
o gerente do Banco do Brasil.
O “Almirante
Inglês*” – Outro funcionário da mesma cepa. Um herói
que enfrenta qualquer empreitada no intuito de fazer nada. Foge do trabalho com
um vampiro foge da luz, o talvez explique e justifique sua cor pálida. Sonha em
ser um novo Agente Mostarda, seu ídolo confesso.
Adinilza** - A Viuvinha Profissional – Especializou-se na sagrada arte de segurar
mãos de moribundos. (e depois tentar receber uma polpuda pensão), um dia há de
conseguir. Ela se esforça!
Josyanderson - Outro tipinho, típico incompetente que
sonha ser chefe de alguma coisa em algum lugar. (E sim, ele chegará.).
Tia do
Café – Pessoa
mais importante de qualquer repartição pública (vide a piada do leão que fugiu
do zoológico) – entra muda e sai calada.
Telefone
– O eterno preterido.
PRIMEIRO E ÚNICO ATO
Telefone toca.
O Agente
Mostarda tem a mesma estratégia do “Almirante
Inglês*” - velho funcionário, com uma longa lista de desserviço ao serviço
público - para não fazer nada, questiona tudo suavemente, interrompe qualquer argumento
e desgasta o sujeito que quer fazer alguma coisa.
Chefe Ney,
passado poucos segundos após sua explanação, por fim, desiste. Sai, vai tomar café,
tentar acalmar-se. Ele veio de uma cidade grande no intuito de moralizar o
serviço nessa repartição, mas sua missão não será fácil.
(alguns tic
tacs depois...)
Chefe Ney volta.
Agora Adinilza
- A Viuvinha Profissional – também está fazendo e seu número para contra o discurso
do Chefe Ney com o uso majestoso de mímica & pantomima. Ela começa com uma
falsa tosse - (não consegue chamar atenção), pigarreia (o mesmo efeito), deixa
a caneta cair ao chão (nada), lentamente começa a choramingar, Chefe Ney dá-lhe
seu lenço e pede-lhe que se dirija ao banheiro para se recompor. Agora ela
começa a chorar de verdade (percebe que seu número, tão ensaiado, falhou) e sai
da sala.
Telefone
continua tocando...
Chefe Ney,
tenso, sai à rua. Resolveu voltar a fumar.
(passam-se
alguns minutos)
Chefe Ney volta.
Telefone
continua tocando...
A conversa é
reiniciada e o tempo vai passando...
Agente Mostarda
olha fixamente (ah! aqueles olhos baços azuis...), como se estivesse
preocupado, balança cabeça de cima para baixo, da direita para a esquerda
negativamente e afirmativamente, levanta o dedo indicador e já começa a
tartamudear, balbuciar e emitir estranhos grunhidos emulando sugerir, aludir ou
citar algo no intuito de confundir, dispara o inexorável:
“- Veja bem!”
...e acaba por ganhar
mais tempo para não fazer nada.
Consegue a
atenção de todos à sua volta.
(mais tempo perdido!)
Sagra-se
vencedor!
(a claque
aplaude histérica!)
Chefe Ney, de
volta ao arquivo encara o Agente Mostarda.
Chefe Ney
pensa:
- Terei dor de
cabeça hoje.
Chefe Ney
percebe que hoje não será resolvido mais nada e coçando a cabeça, pede licença
e sai para tomar outro café, fumar outro cigarro e ir à loja de caça e pesca
praticar uns tiros.
Chefe Ney
retira-se da repartição tocando seus snujs e murmurando seu mantra:
- “Ainda irei
ao Ganges implorar a Ganga para que minh’alma imortal não ressuscite outra
vez, vivo muito cansado de sofrer.” - Chefe Ney é fã ardoroso de George Harrison.
Telefone
continua tocando...
À distância e
nas sombras, o subchefe, e eterno chefe-substituto Josyanderson - O Sub-humano!
- naturalmente, olha como que com sono para tudo isso e não diz nada, pois em
seu intimo pensa:
- Quando o
Chefe Ney cair reinarei soberano e porei essa canalha na linha! – Josyanderson,
o subchefe, saliva!
O tempo passa
e:
Agente Mostarda
voltou para sua pocilga leve como uma libélula soprada pelo vento. Abre a
gaveta e joga migalhas, tiradas do bolso de sua jaqueta, de pão velho para as
moscas que cultiva em cima de folhas de alface.
Ele está
satisfeito, embaralhou tudo e não fez coisa alguma, venceu mais uma vez. Em seu
íntimo ele se vê como o toureiro que matou o miúra, o gladiador que matou leões,
um semi-césar, ele sente-se o Grande Deus do Nada...
Amanhã será
outro dia...
Outra luta.
Telefone
continua tocando...
Agora Agente
Mostarda está sentado em seu trono, olha para o relógio de pulso, com ar falsamente
parvo comenta enquanto puxa do funda de sua gaveta um sanduiche de mortadela:
- Chefe Ney é
um incompetente, fala e fala e não explica nada. - Perdigotos são disparados em
todos os pontos cardeais e colaterais.
Telefone
continua tocando...
A Viuvinha, decana
das viuvinhas de repartição com os olhos mais fundos ainda (muita maquiagem, tá
na cara!), voltando do banheiro onde estivera chorando até agora, comenta com a
tia do café, de passagem no momento:
- Esse cara é
envolvente, sempre sério, parece que está engajado em não produzir nada – seus
olhinhos fundos de viuvinha profissional brilham lúgubres – um vagabundo
fantástico... – Não a toa está galgando uma chefia aqui.
Pegando a tia
do café pelo braço, indaga:
- Ele se
locupleta? É solteiro?
15h23, os
demais funcionários fogem.
(Som
de gongo!)
Telefone
continua tocando...
(Cai
o pano)
*Aqui a modéstia e o medo de
um processo nas costas me impedem de declinar-lhe o nome real
.** Novamente o medo e a
prudência me impedem, outra vez, de declinar-lhe o nome recebido na pia
batismal.