2011/11/29

AS MEMÓRIAS DO PIRATA


Capitão Black, assim me chamam!

Chove.

No céu nuvens cinza escurecem o dia, na minha sala a fumaça de meu cachimbo escurece o ar. O mar está revolto, grandes ondas arrebentam nas pedras, o barulho faz o chão de minha sala tremer. As gaivotas voam atarantadas, hoje não haverá comida para elas...

Capitão Black, assim me chamam!

Não sou um marujo, mas meu sonho sempre foi ser um pirata. O mar me provoca enjôos Homéricos, me chamam assim por conta do tabaco que uso e pelos palavrões que profiro a torto e direito, dizem até que falo mais palavrões que um pirata.

Mais um relâmpago...

Me sirvo de um copo de rum – hábito de velhos marinheiro me dizem os amigos – sento-me em minha poltrona e fico admirando a tempestade se desenrolar. Minha vontade e de ir lá fora e sentir o vento e água na pele, mas essa tosse – segundo uns carolas culpa do hábito de fumar – poderia piorar muito...

- Sabina...

Preciso terminar de escrever minhas memórias antes que elas se tornem vagas lembranças... Não encontro minhas anotações, meus papeis, onde terei largado meus papeis?

Preciso de mais um copo de rum -“ho-ho-ho” - um copo de rum, uma perna de pau faria um som melhor nesse assoalho...

O mar está encrespando ainda mais, a maré vai subir até aqui perto de casa... Isso me lembra Veneza...

- Sabina...

Os dias são mais lindos, para mim, assim, chuva, raios, trovões, maré alta! Só assim me sinto vivo, da minha janela me sinto na proa de um navio enfrentando os mares todos os..., meu Deus quantos são os mares? Preciso beber mais, pois vejo que morrerei sem escrever minhas memórias, nem tudo está perdido, pois ainda lembro de beber e fumar...

- Sabina...

O sino da Igreja, o vento está badalando o sino da igreja, agora o clima vai incomodar os pombos do campanário... Padre, aqui estou pecador, peco e peço perdão, peco e peço perdão!

Pessoa dizia: - Navegar é preciso...

Minhas memórias, nunca serão escritas, onde deixei meu copo? A água está subindo rápido...

- Sabina...

Anoitece.

Agora sim à luz do lampião minhas lembranças aflorarão, memórias aos borbotões, poderei tocar o passado, sentarei com meus fantasmas à volta da mesa e beberemos, riremos, choraremos, falaremos mal dos ausentes, ho-ho-ho uma garrafa de rum!

- Alto lá! Quem me espreita pela janela? Vamos cobarde, apareça! Hahhahaha, velho tolo... Devagar com o rum, velho, velho, esse é seu reflexo na janela... Venham raios, venham relâmpagos! Esse velho lobo do mar não teme nada, venham e vos enfrentarei com minha espad..., ô diabo!, onde está minha espada..., venham que vos enfrentarei com uma garrafa de vazia de rum, venham...

- Sabina...

Esse vento! Com o badalar incessante do sino da igreja não consigo saber que horas são... As gaivotas sumiram da minha vista... Acho que o vento as levou para longe... Minha mesa está cheia de garrafas de rum e nenhum fantasma apareceu, estou abandonado pelos vivos e pelos mortos...

Essa chuva! Nunca fui a Veneza, mas pelo jeito logo terei uma a meus pés, a maré não para de subir...

- Sabina, que você estivesse aqui para ver isso... Pelo menos terias uma boa lembrança ao meu lado. Sabina, essa âncora não para de coçar, acho que a tatuagem inflamou...

Não sou um pirata, sou uma piada, bebo rum, e tropeço nas garrafas espalhadas pelo chão. Com minha luneta vasculho o mar à espera de meu navio, mas começo a me conformar em com meu exílio nessa praia que a chuva e a maré vão lambendo aos poucos. Quem chegará ao fim primeiro? Minhas recordações ou essa ilha?

- Sabina...

Minhas memórias se resumirão a:

- “O vento badalava os sinos da igreja incessantemente...”

Capitão Black, pirata e escritor assim me chamam! Bah!, sou uma piada de mau gosto exilado no fim do mundo...

- Sabina, bem fizestes em me deixar, sequer consegui ser um “mal pirata” e me sai pior como escritor!

Se alguma coisa agradeço a Deus? Somente os meus vícios e nada mais!

Capitão Black, assim me chamam...

MAIS UMA DE NATAL

Vem chegando aquele dia.
Olho para folhinha chego bem perto para poder focar aqueles numerozinhos, para ter certeza que aquele dia está chegando.

Dia 25 de dezembro, mais um maldito Natal, mais uma noite com ceia, gente em volta, presentes sem graça, gente sem graça, gente chata depois de poucos minutos, gente bêbada depois de poucas horas, eu suicida logo em seguida...

O que mais poderá acontecer nesse Natal?

O quê?

Ainda tenho as gravatas do ano passado, as meias do ano retrasado, não tiro os olhos das manchas na parede, uma de cada maldito Natal aqui na minha casa.

O bar está cheio de bebidas importadas, cervejas inglesas e alemãs, que amanhã mesmo vou retirar e esconder em algum lugar onde os cunhados (sim, a gora é plural) não possam farejá-las. Já comprei o que há de pior para ser servido aos convidados, convidados eu disse? Mas eu não convido ninguém para vir em casa, eles é que aparecem, assim como mosquitos no verão, mortes e doenças nas guerras...

Mas o que posso fazer?

Fugir, dizer que vou viajar com a mulher e as crianças?

Não!

Eles seriam capazes de irem juntos...

Uma vez comentaram que seria “ótimo” fazermos, todos juntos, uma viagem de navio. Já me via escondido nos barcos salva-vidas, ou pulando em alto-mar e nadando de volta à praia como um rato que abandona o navio antes de ele afundar (sendo realmente uma pena mergulhar numa água gelada e NÃO ver o navio afundar)...

Logo bati a mão na mesa e disse, quase gritando, um não! Pensando em ficar isolado do mundo junto com eles, preferi tê-los em minha casa, de onde eu sempre poderia fugir pela porta da frente.

Olhando ainda para a folhinha, procuro o telefone da gráfica que a imprimiu, será que possível que eles tenham errado as datas? Antes de ligar, vou contar todos os dias ali impressos...

Droga.

O maldito calendário está certo.

O Natal está se aproximando, cada segundo que perco olhando para esse monte de números com fundo de paisagens e bichinhos...

- Argh! – essa dor no peito outra vez.

Minha mulher diz é síndrome de pânico, mas eu acho que é só o pânico mesmo. Já sinto os tapas nas costas dos – meu Deus, é agora é no plural – meus cunhados. Já sinto a textura dos papeis de presentes vagabundos com os presentes não menos vagabundos com que eles me presentearão.

Na igreja, o padre já me avisou para não doar nada do que eu ganho, não tem saída e fica ocupando todo o espaço reservado aos trabalhos pastorais. Além de me fazerem sofrer, ainda atrapalham na catequização dos infiéis.

- Bando de demônios! – grito, seguido de outra pontada no peito. Com o rosto pálido e com falta de ar, sorrio murmurando comigo mesmo:

- Morro antes do Natal e ferro com a alegria deles...

Mas por um átimo penso:

- E se eles ficarem felizes com a minha morte?

Olhando o calendário, procuro onde minha mulher anotou o número do meu cardiologista.

2011/11/22

SIMONE CHEGA EM CASA

Ela nem bem entrou em casa e ele veio para cima dela.
Primeiro ficou encarando-a por uns segundos, depois aproximou-se desconfiado, olhando para os olhos dela.
Simone já lhe falara diversas vezes para não fazer isso, se não confiava nela que fosse embora, outro como ele se achava aos montes pelas ruas. Parada na porta Simone sustentava-lhe o olhar, assim ficaram mais alguns segundos.
Simone por fim entrou, passou a chave na porta, passou por ele e foi para a cozinha. Ele a seguiu, e ficou disfarçadamente tentando sentir algum cheiro estranho, alguma prova de sua traição, algo que provasse seu passo em falso, a prova definitiva de que ela tinha outro.
Nada conseguiu além de quase levar com o saco de verduras na cabeça. Ele se retirou para a sala, deitou-se no sofá esperando pelo almoço, pois já estava em cima da hora e se ela se atrasasse mais uns minutos ele comeria até os seus sapatos.
Da cozinha vinha o cheiro da comida, o vapor das carnes. Simone o chamou para comer, mas magoado, desconfiado, enciumado, fez que não ouviu e continuou fingindo que dormia.
Simone chamou uma segunda vez, dessa vez quase gritando, ele sabia que quando ela falava assim a coisa iria desandar. Espreguiçando-se, dirigiu-se à cozinha e cabisbaixo começou a comer, a princípio de má vontade, mas a refeição estava tão boa que acabou comendo tudo e repetiu.

- Desgraçada, tinha que cozinhar tão bem? - pensava enquanto devorava o segundo prato.

Quando acabou de comer, olhou para Simone, seus olhos agora brilhavam satisfação.

- Como poderia ter desconfiado dela? Como?

Simone, como que lendo seus pensamentos, aproximou-se dele e começou a fazer-lhe carinho na cabeça, beijou-o, e falou-lhe bem baixinho:

- Seu bobo! Nunca vou trocar você por outro cachorro! Tonto!

Deixando Toby abanando o rabo feliz da vida, foi tomar banho.

EU NÃO SOU EU

Começou assim: estava tomando banho, então estiquei o braço e encostei a mão esquerda na parede. Quando olhei para ela deu-me uma sensação de estranhamento. Que mão era aquela? Gorda, com dedos rechonchudos e curtos, o braço fino..., então olhei os pés inchados, as unhas roídas e pensei: esse corpo é meu? Mas rapidamente a sensação passou e logo esqueci, ou assim pensei. Mas não, a impressão continuou latente dentro de mim. Depois disso passei a não me reconhecer nos reflexos. Ora estranhava o cabelo, ora as orelhas, alguma coisa não estava certa em mim. Aquele sujeito refletido ali na minha frente não era totalmente eu... Lembro agora que sempre brinquei com meus amigos dizendo que eu era um gordo nervoso, por, na verdade, ser um magro aprisionado mundo corpo obeso. Todos riam menos eu. Hoje acho que tenho razão no que digo. Compro roupas de magro, que depois tenho que trocar, sapatos de número menor em que meus pés se recusam a entrar, trombo em paredes, em batentes de portas, esbarro em pessoas, tudo por causa dessa disfunção. Ando nas ruas de cabeça baixa, achando que as pessoas também não me reconhecem. Debalde, todos que passam por mim chamam-me pelo nome, elas vêem em mim um eu que eu mesmo desconheço. Como podem? Não percebem elas que eu não sou eu, que dentro desse corpo vive uma outra entidade? Outro indivíduo que acordou aqui dentro? Pensa que sou louco? Veja o meu reflexo nessa colher. Você acha que eu me vejo assim? Esses dentes, essa barba. Só reconheço nesse corpo os meus olhos, esses olhos são eu, o resto... o resto... À noite me seguro para não ir ao banheiro, temo minha reação. Ainda sonado, o que posso fazer se me assustar com o reflexo do estranho no espelho? Cada dia que passa mais me afasto de mim e dos amigos desse corpo. O que será de mim, o que será de mim no futuro?

- Hummm...

- É só isso que você tem a me dizer? Diante de toda essa angústia, você só diz hummmm?

- Vamos pedir mais um café então.

- Garçom, mais três cafés...

2011/11/21

CLARINHA

Clarinha ficava à porta do hotel, branca, quase translúcida, cabelos negros e escorridos, olhos fundos, quase nunca falava, e quando o fazia era com uma voz tão baixa, um sussurro, um suspiro, que era impossível ouvi-la. Penso que intuía o seu pedido de socorro.
Qual seria a sua idade? Não sei. Parecia uma menina, parecia uma mulher, parecia uma princesa encantada de mármore, tão branca e tão fria...
No alto do primeiro lance de quarenta e seis degraus fica Machadinho, o guarda-costas de Carla Sandra, sentado em sua cadeira de madeira apoiada à parede, de modo que conseguia ver o que acontecia na calçada e no andar superior. Todos, inclusive eu, achavam que Machadinho estava morto e empalhado. Os seus olhos sempre arregalados, fora das órbitas, a baba grossa escorrendo do lado esquerdo do lábio inferior, e a mão direita segurando uma faca.
Clarinha trabalhava para Carla Sandra, que a explorava assim como a outras tantas meninas. Clarinha ficava toda a noite na porta do hotel que, como um camaleão, mudava de cor de acordo com a luz de néon da porta. Ela não arrumava nada, a ninguém chamava a atenção, ficava como que mumificada à porta com chuva ou frio.
Pouco faltava para expirar...
É aí que eu entro. Procurava-a todas as noites, conversava, ou assim pensava, com ela. Pedia-lhe que largasse aquela vida enquanto ainda havia tempo, em vão.
Minhas palavras não encontravam asilo em Clarinha, ela tornara-se impermeável a tudo, ou a quase tudo...
Carla Sandra não suportava a minha presença, segundo ela, perniciosa, e me fazia ameaças e mais ameaças, e da porta do hotel ela gritava para que Machadinho viesse me dar uma lição para nunca mais esquecer.
Machadinho nada dizia e nada fazia, nem piscava, o que me levava a crer mesmo que ele estava morto e empalhado. De Carla Sandra eu esperava tudo, inclusive isso. Embora Machadinho, morto, não se movesse, outros clientes de Carla Sandra desciam os dois lances de quarenta e seis degraus para me pegar.
E como todas as noites, eu corria em disparada para salvar a minha vida e voltar na noite seguinte. Corria ladeira acima, metia-me na rua do mercado, que funcionava a noite toda numa mistura de baile popular e restaurante a céu aberto, onde se encontrava de tudo. Enfiava-me na rua dos avicultores e voava feito um cometa entre as galinhas, pavões, perus, patos, marrecos, deixando para trás uma barafunda de penas e grasnados alucinados. Assim fugia para voltar amanhã.
Chegava em casa com o coração saindo pela boca, trancava a porta com duas voltas da chave, pega-ladrão, tetra-chave, encostava na parede e respirava fundo até conseguir fazer o coração voltar à sua pulsação normal.
Clarinha tornou-se a donzela que eu havia cismado de salvar, e Carla Sandra, o dragão da maldade que eu iria eliminar desse mundo.

- Não consegui nada hoje, mas amanhã à noite volto a tentar...

Noite escura, lá estou eu na porta do hotel. Clarinha, alva e multicolorida, em pé à portaria, esperava, não por mim, não por algum freguês, ela esperava por Carla Sandra, pela sua poçãozinha mágica, era esse o seu pagamento, a mágica alquimia que Carla Sandra lhe dava todas as noites, noite após noite. Esse era o segredo de sua figura diáfana, sua morte a prestações...
Fui a ela como um apóstolo que leva a palavra, fui a ela como um amigo, como um filho, fui como seu anjo da guarda, mas ela, ela não me rejeitou, ela simplesmente não me via, não me ouvia, não me sentia, ela já quase não era mais desse mundo. Pobre Clarinha...
Do alto da escadaria onde Machadinho tudo via, via mesmo?, a voz metálica e cruel de Carla Sandra mais um vez incitava sua clientela contra mim. Fugi como fujo todas as noites, na certeza de que algum dia eu salvaria Clarinha ou então eles se cansariam de me perseguir.
Fugi como fujo todas as noites pela rua do mercado, entro pela rua da avicultura, deixei o meu rastro de penas e grasnados, virei à direita e toquei para casa. Mas hoje, enquanto corria esbaforido para minha casa, encontrei-me com Ishmael - pobre Ishmael que nunca havia lido o Moby Dick -, negro como a noite, sempre encurvado como se carregasse todo o peso do mundo às costas, grandes amendoados olhos amarelos, assim como as palmas das mãos e as longas unhas. Falou-me:

- Irmãozinho, essa branquinha ainda vai te matar, deixe isso pra trás, irmãozinho...

- Clarinha, o nome dela é Clarinha - respondi-lhe irritado, quase rosnando.

Ele tentou segurar-me para conversar, mas o medo de ser pego pelos freqüentadores do hotel me fez escapar do seu abraço e fugir, correr, me esconder em casa.
Como todas as madrugadas, entrei em casa, tranquei a porta com duas voltas da chave, o pega-ladrão, e a tetra-chave. Na cama chorava de frustração.
Mas amanhã haveria de ser outro dia, e minha Clarinha, mesmo sem saber, estaria esperando por mim.

- Ishmael não sabe o que diz... – murmurei entre as lágrimas amargas que desciam pelo meu rosto. - Ishmael é um tolo, Clarinha só me faz bem, ela precisa de mim, ela é o meu Norte.

Eu sabia que precisava me esforçar mais, pois não tardaria o dia em que a magia de Carla Sandra conseguiria diluir de vez a tênue existência de Clarinha e, por conseguinte também a minha.

2011/11/17

PARA VOCÊS MOCINHAS

Essa é para você mocinha, jovem adolescente, que está agora abrindo os olhos para vida. Que está dando os primeiros passos no pantanoso terreno do amor, plena de ilusões, peitos, digo, peito cheio de coragem, preparada para lutar pelo ente querido, aquele ser que não sai de sua cabeça e pulsa no mesmo ritmo que o seu coração.
Sim, minha querida, esse texto, essas humildes letras são para você, só e exclusivamente para você.
Preparada para lê-lo? Está com tempo e paciência?
Sim, paciência, sei o quanto é rara essa mercadoria nessa idade.
Se você respondeu SIM para todas as questões acima, vamos lá, ao interessa.
Dia desses - todos tão iguais ultimamente (desculpem-me, às vezes divago demais) - recebi, se bem conheço quem o enviou, de sacanagem, o endereço de um orkut.
Entrei e sambei.
Não entendo desse negócio, mal e mal tive um blog. Tive que telefonar ao amigo que me enviou o endereço e perguntar como funcionava o negócio.
Explicado, lá fui eu navegar pela página.
Logo entendi a razão de estar lá vendo o que estava vendo.
Era uma moça (há quanto tempo não leio essa palavra!) se declarando a outra moça (!).
Gente, eu não trago cá no peito muitos preconceitos, não. Vocês viram que eu não disse: “Não trago cá no peito nenhum preconceito”?
Não sou perfeito, nem tenho essa tara, afinal, esse é o meu tempero.
Divago de novo...
O que mais me espantou não foram as “juras de amor eterno" - aliás num dado momento uma das amantes até diz: “Não digo que te amo para sempre, porque o sempre, sempre acaba” - muito original, não é? - O verdadeiro incômodo estava nas transgressões, ora gramaticais, ora de concatenação de idéias. Fora, é claro, o modo como esse pessoal se comunica (?). Não consegui ler uma frase completa, foi um inferno tentar compreender.
Que pobreza! Que idéias!
Chafurdam-se num pântano de lugares-comuns, afundam-se na mediocridade das declarações. Juro que não vi naquilo nada mais que a vontade de serem “transgressoras”, “rebeldes”, “mudernas”. Francamente, nem refrão de pagode poderia ser mais pobre e vulgar.
Queridas mocinhas, se vocês querem impressionar alguém, preocupem-se em impressionar o ser amado, não se preocupem com os que estão à sua volta. Impressionem o objeto de seus amores com coisas belas, belas palavras e, por favor, palavras que contenham sentido.
Dar-lhes-ei um exemplo de declaração de amor entre iguais, de autoria de Safo*, poetiza grega. Leiam, apreendam e, se possível for, aprendam:



A Lua Já Se Pôs

A lua já se pôs
As Plêiades também:
Meia-noite: foge o tempo,
E eu estou deitada sozinha.


Outra só para vocês terem um gostinho, e não mais:


A Amada
Ventura, que iguala aos deuses,
Em meu conceito, desfruta
Quem, junto de ti sentada,
As doces falas te escuta,
Goza teu mago sorrir
Quando imagino em tal gosto
É minha alma um labirinto;
Expira-me a voz nos lábios;
Nas veias um fogo sinto;
Sinto os ouvidos zunir
Gelado suor me inunda;
O corpo se me arrepia;
Fogem-me as cores do rosto,
Como ao vir da quadra fria
Entra a folha a desmaiar.
Respiro a custo, e já cuido
Que se esvai a doce vida!
Arrisquemos-nos a tudo...
Contra um angústia insofrida
Tudo se deve tentar.



Por favor, minhas jovens, aprendam a declarar vosso (não ouso dizer o nome**) amor com inteligência e, se não for pedir muito, com delicadeza. Ser sapata não que dizer ser “caminhoneira”, que me desculpem os/as representantes de tão nobre profissão!










*Safo, poetisa nascida em Mitilene, na ilha de Lesbos, por volta do século VII a.C

** Leiam Oscar Wilde

2011/11/16

SOBRE A CULPA E OUTRAS BESTEIRAS


Culpa.
Discutia isso com o Rodrigo hoje. Culpas de haveres e culpas de quereres.
Por que nos culpamos? Por que nos pegaram? Por que nos viram? Por que nossos olhos nos acusam diante do espelho?
Culpa.
Pecamos por pensamentos, atos e palavras.
Ah! Essa minha cultura judaico-cristã. Mas que atire a primeira pedra quem nunca pecou.
(Fico sossegado nessas horas por não possuir ações de pedreiras. Pelo visto ninguém atirou nenhuma pedra, certo?).
Quero crer que a minha meia-dúzia de leitores é honesta, pelo menos consigo mesma.
Culpa.
Nos culpamos por tantas coisas bestas, e nos escusamos de outras realmente condenáveis.
Mas discutíamos outra forma de culpa.
O pensamento, esse monstro indomável que trazemos dentro de nós, e que, por inexplicável que seja, é muito maior que nós.
Quantas vezes nos pegamos pensando em algo inominável, algo que conscientemente nunca faríamos, que condenaríamos veementemente no próximo?
Um exemplo besta, mas um exemplo: vivo fazendo regime, mas não posso ver um doce que chego a babar.

- Pecadilho! - dirão vocês.

Concordo plenamente. Mas, e se vemos uma mulher bonita, uma jovem atraente. E se porventura ela dá com o nosso olhar, sorri, mexe o cabelo daquele jeito, sorri um sorriso de fazer covinhas...? Uma torrente de pensamentos libidinosos nos assola. Por um segundo vivemos uma vida de venturas mil, imaginamos as maiores besteiras. Largar a família, deixar o emprego, começar vida nova na Argentina, quem sabe vendendo pulseiras e outras quinquilharias, ir para a Bahia e morar na praia vivendo de amor eterno...
Um segundo, um mísero e desgraçado segundo, destruímos toda uma vida. Largamos a mulher com quem vivemos os tempos duros, os filhos que às duras penas tentamos educar dentro dos valores (ai, ai, ai) cristãos/ocidentais, e afundamos na lama da maledicência um bom nome construído com muito suor, muita lágrima e sangue.
Culpa = Arrependimento.
Tivemos toda a juventude para errar. E erramos até na hora de errar. Agora o mal já está feito. Não adianta chorar sobre o leite derramado.
Para terminar a conversa, o Rodrigo me enviou esse poema do Olavo Bilac:


Remorso
Às vezes uma dor me desespera...
Nestas ânsias e dúvidas em que ando,
Cismo e padeço, neste outono, quando
Calculo o que perdi na primavera.
Versos e amores sufoquei calando,
Sem os gozar numa explosão sincera...
Ah! Mais cem vidas! com que ardor quisera
Mais viver, mais penar e amar cantando!
Sinto o que desperdicei na juventude;
Choro neste começo de velhice,
Mártir da hipocrisia ou da virtude.
Os beijos que não tive por tolice,
Por timidez o que sofrer não pude,
E por pudor os versos que não disse!

A propósito, aquela mocinha não sorriu para você, foi para aquele rapaz musculoso e cheio de tatuagens que estava encostado no balcão do bar bebendo cerveja...
Positivamente, a vida não presta.

2011/11/11

UM ESTRANHO NA CIDADE

Uns diziam que ele havia chegado às seis horas da manhã, com um capotão grosso de lã, chapéu preto de abas largas – parecia até um corvo – dizia Dircinha do Feijó; botas sete léguas e cara de mau, muito mau mesmo.

Já outros – sempre tem “os outros” – diziam que ele chegou de carro – que marca? – e alguém aqui nesse fim de mundo entende de marca de carro?, basta não ter uma mula, cavalo ou burro puxando, que vira carro na língua desse povinho – vermelho, vermelho pecado - olha ai outra vez as expressões que essa gentinha usa – e passou voando pela praça levantando uma poeira danada – como se fosse preciso passar alguma coisa voando prá levantar poeira aqui...

A verdade é que ninguém entendeu o que foi que aconteceu mesmo. Sabe-se somente que um estranho passou pela cidade, se a pé, lombo de burro ou carro, sabe-se que ele passou por aqui. A poeira no ar não prova muita coisa, até galinha ciscando aqui levanta pó da rua.

O estranho, além de um estranho aqui na vila, foi o sujeito estar usando um capote daquele de lã com um calorão desses. Imagine, até as árvores estão se desfolhando por causa da canícula...
Seu Jorginho da Ceição, acha que ele estava carregando uma arma dentro da roupa, e começou a contar pela milionésima vez o único filme (que era de gângster) que ele assistiu na vida num cinema na capital, e lembra até hoje aquela comida branca e salgada que comeu lá. Apostava que era uma “vingester”, nem sabia pronuncia “winchester” e pôs-se a falar, falar e falar até que Ceição o mandou prá dentro lavar as roupas que precisavam ser entregues amanhã. – Esse homem não para de falar nesse filme há trinta e dois anos, trinta e dois anos ouvindo isso – e olhando pros lados disse:



- Vô lhe contar um segredo, tô guardando dinheiro pra levar ele no cinema da capital no Natal, tomara que ele mude o “disco” depois disso.


Na rua em frente ao Bar do Tadeu, o povinho se reunia e acrescentava mais histórias sem sentido nesse acontecimento mundano.

Houve quem dissesse que o eclipse tinha sido culpa do estranho, seu Mundinho Meloso (Raimundo pra patroa quando ele chega bêbado em casa) reclamou que o sujeito tinha roubado a sua aposentadoria quando tudo ficou escuro. Todos riram. O velho Meloso, nunca via a cor da aposentaria, que ia direto pro bolso de Dona Lindoca, e chorava essa velha história na ilusão de convencer alguém a lhe pagar outra birita.

Antes que o senhor se pergunte desse eclipse já lhe respondo. Nada entendo das vontades do “Grande Arquiteto” – li isso nas “Seleções” na barbearia do Astolfo Alemão - se Ele resolveu apagar o dia por uns minutos, Ele deveria ter lá suas razões, fosse por economia de sol, fosse prá assustar seu Mundinho Meloso, tudo que posso afirmar é que realmente houve um eclipse, mas que ninguém, eu posso jurar com a mão sobre a bíblia, que ninguém foi roubado pelo estranho, até porque, verdade seja dita, quem não estava no Bar do Tadeu, correu pra se abrigar na Igreja...

Quando o sol voltou e o céu ficou azul de novo, as galinhas acordaram pela segunda vez nesse dia e começaram a ciscar e cacarejar como se nada tivesse acontecido – como esses bichos tem coisas a nos ensinar! – Aí os sinos tocaram como se anunciassem um novo mundo, as velhas corocas, - com exceção de Dona Marciana, cada dia mais linda, que acordando àquela hora, não se apercebeu de nada e perguntou se tinha se levantado muito cedo para acordar com os sinos da Igreja – correram de volta à rua.

- Como? Acho que não entendi a pergunta de Vossa Autoridade. O que foi que aconteceu com o estranho? Sei não. Foi tanto alvoroço, tanto diz-que-me-diz, que o homem entrou e saiu da cidade sem ninguém saber quem ele era, mas na minha opinião, se é que o eu posso dar a minha opinião, eu acho que o estranho entrou na bifurcação errada, à esquerda, e veio parar nesse fim de mundo por engano...

As vezes isso acontece, até me lembro que em mil novecentos e setenta e cinco...

2011/11/08

TOMANDO CAFÉ, EDMUNDO PENSA



Sobre a mesa uma xícara de café quente. Dela, uma fumaça sobe e espalha o seu aroma. Sentado à mesa, Edmundo, desligado, de olhar vago, mexe e remexe a colher na xícara, o sachê de açúcar está intocado, e sobre o pãozinho torrado na chapa começam a pousar moscas.

Mexe, mexe, mexe e o café começa a esfriar.

O bar esvazia, as pessoas vão-se, umas trabalhar, outras passear, outras, quem sabe?

O café já esfriou. Na parede os ponteiros do relógio vão marcar mais uma hora e Edmundo nem se apercebe disso.

- Ontem a noite aconteceu de novo... - Ele murmura. O garçom se aproxima na esperança de dar-lhe a conta e enfim despachá-lo. Mas que nada!

Ele ignora o garçom e continua a girar a colher na xícara de café. O tempo continua a passar indiferente a Edmundo e a aflição do garçom.

Edmundo baixa a cabeça e olha para a calça.

- Ontem aconteceu outra vez, meu Deus, outra vez...

O garçom não se abala a desencostar-se do balcão, olha para o relógio da parede, confere a hora com o seu relógio de pulso e balança a cabeça ao ver o velho falando sozinho e mexendo a colher na xícara.

- Pobre velho, se eu tiver que ficar assim prefiro morrer. - Fala para si mesmo enquanto procura alguma coisa no bolso da calça.

O som da xícara quebrando-se no chão chama-lhe a atenção e ele corre para a mesa do velho que com olhar estático olha para a calça manchada do café que ainda escorre da mesa.

- Ontem à noite urinei nas calças, hoje me sujo de café... Constrangendo o garçom, ele começa a soluçar...
E se não fosse a chuva

O frio
(mais na alma que no corpo)
Se não fosse a vontade de um dia claro de céu azul sem calor, sem moscas, sem minhocas na cabeça, sem telefonemas, sem contas a pagar, sem tristezas, sem ninguém para compartilhar o pouco, o muito, o quase que tenho, tive ou quem sabe, terei.
Se não fosse a solidão
De olhar da janela o mundo
As pessoas sorrindo
As crianças correndo
Os cachorros latindo
Se não fosse o estar sozinho a andar de ônibus
Aquela chuvinha chata nos vidros, e
Não ter ninguém ao meu lado
Não fosse
Não tivesse sido
Não houvesse jamais
Não...
Tantos nãos
Tantas possibilidades perdidas
Se não fosse tanta incompreensão
Tantas comparações
Se não fosse
Se não fosse
Se não fossem essas tantas coisas
Não estaria agora escrevendo isso.
- Antes só, só, só, só...


(o eco não a deixou completar a frase)

2011/11/07

TRAGO

Trago sim
No bolso o cigarro
Nos pulmões a fumaça
Trago sim
Sempre
Trago

HOJE ACORDEI SEDENTO DE SANGUE

Acordei, estranhamente, sedento de sangue.
Fui à cozinha, bebi um copo d’água, que imediatamente cuspi, não consegui engoli-la. Realmente a sede era de sangue. Descobri que sou uma vitima do sentido figurado.
Sedento de sangue, estou com sede de sangue...
Como resolver isso?
O sol nasceu, abri as cortinas preocupado, trêmulo, medroso - e se o sol me queimasse?
Claro que ele não me queimou, afinal não sou um vampiro - daqui vejo meu reflexo no espelho! -, sou só uma pessoa normal que, sabe-se lá por que, hoje acordou sedento de sangue.
O dia prometia ser quente, e na TV anunciava chuva para o fim da tarde.
Troquei-me, e saí a trabalhar ainda sedento de sangue e em jejum, nem mesmo a geléia de goiaba me atraiu....
Ao chegar ao escritório deparo com minha mesa cheia de papéis, espanto-me e fico indignado, pois ao sair ontem ela estava limpa.
Alguém fez serão e deixou o resto para mim!
Estou sedento de sangue quente e espesso e alguém me confunde com um abutre comedor de carniça!
Sento-me à mesa, meço a quantidade de papéis sobre ela, meus dentes rangem e, juro, sinto meus caninos crescerem...
Acordei sedento de sangue e estou começando a gostar disso.
Toca o interfone, e pelo calafrio na espinha, é a Dona Regina, minha chefe, chamando-me à sua sala. Sinto a sede aumentar seguida de um antegozo sobrenatural e uma saciedade pronta a realizar-se.
Levanto-me, olho o reflexo de meu rosto no cromado do grampeador e, sorrindo, percebo que meus caninos cresceram mesmo. Sigo em direção à sala da Dona Regina, faço toc-toc só de sacanagem, pois ela detesta isso, gosta de ser anunciada pela sua estagiária. Abro a porta antes que ela responda, encosto-me no batente e digo:

-Hoje acordei sedento de sangue...

AS HÁRPIAS*


(Coisas da repartição II)


Pensam os incautos que as harpias não existem mais (se é que já existiram) mas estão redondamente equivocados. Elas existem sim, trabalham ao meu lado. Sua voz é aguda como uma lâmina, quando elas falam, as plantas ( mesmas de plásticos) fenecem, morrem. Os pombos nas janelas voam para longe e voltam somente muito e muitos dias depois, normalmente para morrer.
Elas, as harpias, não falam como nós os humanos, elas praguejam, amaldiçoam, caçoam daqueles que se encontram ausentes.
O ar à sua volta fica pestilento, a ponto de eu ter que sair da repartição para respirar. Quando elas riem, tenho certeza que os mortos, em qualquer cemitério, se reviram em seus túmulos.
A guisa de asas, ela possuem cabelos armados com todos os tipos de produtos químicos cancerígenos (que aposto também destroem a camada de ozônio), em lugar de penas, umas roupas feitas sobre medida (afinal são extremamente gordas) que mais parecem destaque de escola de samba.
A ladainha diária é sobre dietas, e como num ritual pagão, elas gritam entre si e para si:

- Olhem como eu emagreci de ontem para hoje!

Posso lhes garantir que é impossível ver qualquer diferença, por mínima que seja. Lêem Caras e discutem aos berros e em altos brados o capítulo de ontem da novela.
Qual?
Qualquer uma, pois me parece que elas possuem vários aparelhos espalhados pela casa.
Sim é terrível trabalhar aqui, várias vezes pedi transferência para qualquer outro lugar, mas não consegui.
Mas pelo menos uma certeza trago em meu peito:

- O inferno É aqui, e em morrendo, vou para o céu.





*Harpia do Lat. harpeja < Gr. hárpyia, ave fabulosa de garras aduncas

s. f., Mit., monstro alado, com rosto de mulher e corpo de ave de rapina;

por ext. pessoa ávida e usuária;mulher de má índole e agressiva;





2011/11/03

TRANSAÇÃO

Se o que deixei ficou
Largado
Se o que plantei
Murchou
Se o que achei que tinha valor
Nem prestou nem ao penhor
Se tudo que dei
Nada valia
Se tudo que disse
Foi logo esquecido
Se tudo
Virou nada
De quem será
A culpa?
Quem me culpa?
Quem me julga?
Quem se acha meu igual
Para tal?
Serei assim tão nada?
Será o outro
Assim tão mais que eu?
Porque me comparas
Porque me medes?
Sou acaso assim tão vil objeto?
Nada fui?
Sou só presente sem passado?
Vejo que sim
E sem futuro
No presente perco na comparação
No passado perco feio para esquecimento
Mas o que fiz para merecer tudo isso?
Me julgas
Me comparas
Mas quando vejo o outro
(O objeto da comparação)
Tão abjeto e ganancioso...
Me pergunto o que vi em ti
Que miragem iludia meus olhos
Ao achar que merecias alguém assim
Feito eu
Mas na voragem do ter mais
Te enganas e
Te iludes com as migalhas que te oferecem hoje
(assemelhas-te a um cão faminto)
Tolo daquele que ambiciona mais do que merece ter
Do pode carregar
Tolo o que se ilude adulações
Te vendes por tão pouco
E muito pouco te sobrará ao
Fim de tão espúria transação
Nada valho, dizes e repete e repete e repete e repete
Nada tenho, afirmas
Quase gritas que
Em mim nada há a ser roubado
Nada em mim que se ambicionem
Tens razão
Tens razão
Pois que
Conclua-se a transação
Vende-te
Sei ao certo
Que pagarão por ti
Bem mais do que vales
Seja então e por fim

Feliz!

2011/11/01

CAFÉ DEMAIS NÃO FAZ BEM



É claro que ela reparou em você quando entramos, ela até te desejou uma boa tarde. Como ela é uma fútil que diz isso prá todos? Há formas e formas de se desejar uma boa tarde a alguém. Para você ela foi mais gentil, carinhosa, e aquele sorriso não me parecia um sorriso profissional, mais parecia uma sorriso de alegria de ter visto você aqui. Agora tente sentar-se à mesa sem chamar a atenção de ninguém, e por favor, por favor, peça o seu café que eu peço o meu.

Sossega, para de tremer e enxugar o suor das mãos nas pernas das calças. Repita comigo: está tudo bem, está tudo sobre controle, sou o senhor absoluto de mim mesmo e nada pode me abalar, vamos repita! Ora, deixe de ser chorão, é claro que você consegue memorizar isso tudo, vamos lá, repita. Diabo, fale baixo, repita só prá você, como se estivesse rezando.

- Olá! Mais um café, por favor. Se gosto do café daqui? Tenho certeza de que esse é o melhor café deste lado da existência... Se sou pastor, religioso ou filósofo? Não, isso foi só uma brincadeira da minha parte. O que ele tem? Nada. Acho que está com alguma coisa grudada na palma da mão. Sim, vou tomar o café com adoçante, obrigado. Se ele vai tomar café também? Não sei. Talvez ele queira antes ir ao toalete tirar seja lá o que for que o está incomodando antes de pedir alguma coisa. Isso, então depois você vem aqui na mesa outra vez.

Ela estava sorrindo para você, mas quando viu essas mãos se movimentando debaixo da mesa, acho que se assustou. O que foi que te falei sobre esse tique nervoso de ficar secando as mãos nas calças? Assim você não vai conseguir nada mesmo, e me faça o favor de parar de engolir em seco, me dá aflição esse pomo-de-adão subindo e descendo...

- Olá outra vez...! Sim, vou aceitar mais café. Nossa isso está parecendo aqueles filmes americanos em que a garçonete aparece servindo café nas mesas, só falta uma torta de maçã. Não, não, não só estou falando no sentido figurado, não gosto de tortas, muito menos gosto de maçãs. Onde está o meu amigo? Ele foi ao toalete tentar tirar alguma coisa que estava grudada em suas mãos. Ah! Sim, sim, ele encostou numa parede vindo para cá e alguma coisa colou em suas mãos. Nossa, que suspiro mais profundo esse. Alívio? Por que alívio? Ok vamos deixar isso para lá então. Olhe, ele já está vindo.

Não começa com isso, não faça cena, segura essas lágrimas, e não esfregue as mãos nas calças. Ela não fugiu quando você chegou, ela só foi buscar outro café para mim. Claro que eu não agüento mais tomar tanto café assim. Ainda vou ter um enfarto na minha gastrite. Sentido figurado, não existe enfarto em gastrites! Olha, ela está vindo ai. Peça um café, chocolate, cerveja; eu sei que você não bebe cerveja – se eu tiver que repetir a palavra “sentido figurado” outra vez, vou matar um, e não fique balançando a cabeça e dando sinal para eu falar baixo, porque eu estou falando baixo. Pare de tremer!

- Olá. Não, não me canso de dizer olá, acho olá uma palavra tão simpática, aliás, em matéria de simpatia, olá, só perde para você. Sim, é claro que eu vou tomar outra xícara de café. Meu estômago? Ora, estômago forte é o meu. O quê? Não, onde você ouviu falar nisso? Enfarto de estômago não existe, não existe. Sim, é por isso que me enveneno, digo, bebo tanto café assim. Ô rapaz, responde prá moça, você quer uma xícara de café ou não? Que tosse é essa? Cara, você está ficando vermelho, acho melhor você voltar ao toalete e passar uma água no rosto. Vá lá, vá lá.

- Olá você! Achou isso engraçado? Acho que ouvi essa besteira na TV, não tenho cá muita certeza. Como?, se meu amigo está melhor? Está sim. Ele quase não se machucou com o tropeção na mesa. Quê? Uns cacos de louças? Aquilo não é nada para ele... Sangue, que sangue? Besteira. Ele sangra muito mais que isso quando se barbeia... Não! Graças a Deus ele não é hemofílico... Você acha mesmo que ele está demorando tanto assim no toalete? Ok, então vou aceitar mais uma xicrinha de cafezinho com leitinho.

Se eu tomar mais uma xícara de café, eu morro. Preste bem atenção ao que vou te falar: pára de tremer, não interessa se ela está vindo ai, não me interessa se ela está te olhando de um jeito esquisito, não me interessa se ela está ao meu lado colocando mais uma xícara daquele amaldiçoado café na minha mesa, não me venha com a desculpa de que ela está aterrorizada, não me interessa se minhas mãos em seu pescoço estão te deixando sem ar. Pare de tossir e preste bem atenção ao que eu vou te dizer, vamos olhe para mim e pare de esbugalhar os olhos, ou você se declara para ela agora ou nunca mais vai tomar café comigo. Entendeu? Entendeu? Me diga logo se entendeu. Vamos, pisque duas vezes para sim e três para não!

Interlúdio.

Como ela teve a coragem de te dizer isso? Eu que sempre fui tão gentil e educado. Eu que dizia olá toda vez que ela surgia feito uma aparição na minha frente com aquela bandeja cheia de xícaras e xícaras de café...? Como você pôde ouvir tudo e não me defender? Como você deixou que ela dissesse que eu sou violento? Ora, não me venha com “essas marcas de dedos que eu deixei no seu pescoço”. Ela disse isso? Ela disse que o meu vício por café vai me levar a cometer um crime e que a vítima ainda será você? Você falou para ela que eu ia à cafeteria por sua causa? E que você ia à cafeteria por causa dela? E que por causa de vocês dois eu bebia tanto café? Você falou isso para ela, falou? Para de balançar a cabeça! Que veia saltada, que veia saltada? Já te falei que não existe enfarto de estômago, não existe...

Interlúdio II

- Alô. Sim aqui é o Dr. Vadinho, veterinário. Não, acho que o senhor ligou para o número errado, e antes que eu me esqueça, não existe enfarto do estômago. Quem foi que disse uma besteira dessas? Quem? Sua namorada? Ela é formada em medicina? O quê? Ela é o quê? Ora meu senhor, tenha uma boa tarde e passe bem... – desligando o telefone – É cada coisa que eu tenho que ouvir. E depois não sabem por que eu bebo desse jeito.