2012/12/28

RÉVEILLON





Na espuma vertical

No pipocar da rolha

No champanha no chão

Nos fogos do céu

Nas sete ondas do mar

Tanto tempo se perde

E o ano velho se (es)vai...

E o outro entra

Tal e qual o que se foi...



FIM




A cada palavra lida naquela carta ele sentia-se menor, ao fim e ao cabo da leitura (leu e releu), percebeu que viveria feliz da vida morando dentro daquele envelope. A bandida nem se deu ao trabalho de perfumar ou marcar com batom a folha em que se despedia...


2012/12/19

AREIAS




Das arábias

Num tapete

Para trás ficaram

As areias

Os camelos

As mulheres

Os mistérios

Hoje olhos vagos

Perdidos no horizonte

De concreto e fios elétricos

Só param de sonhar

Quando "a breguês"

Entra “no lojinha”




2012/12/17

NATAL, OUTRO NATAL DO RANZINZA



Me enganei, me iludi, tentei cobrir o sol com peneira, ousei ter esperanças, que furada! Nada muda nesse mundo imutável, duro de pedra. As coisas são como são e tolo é aquele (eu, por exemplo) que pensa que alguma coisa pode mudar...

Bestamente achei que esse ano (crendo talvez no fim do mundo? Pode ser!) o Natal, aquela data para sempre e sempre amaldiçoada, seria diferente.

Mas não, ela (a data) provou-se ser igual às outras passadas (e pelo que vejo futuras) será igual.

Ontem, domingo, no Café, um grupo musical cantava músicas Natalinas e eu lá me embevecia ouvindo-as acompanhando algumas cantando outras assoviando.

Feliz com aquilo, sorrindo, sorvia meu cafezinho.

Até que lá pelas tantas cantaram “Boas Festas” de Assis Valente, quando chegou a vez do:

Mas o meu Papai Noel não vem

Com certeza já morreu

Ou então felicidade

É brinquedo que não tem


Veio-me uma pontada tão aguda no coração que quase verti lágrimas. Respirei fundo, mantive a pose, a dignidade, mas com que inveja via as famílias abraçadas cantando todos juntos e desafinados aquela música!

Deus! Anos e anos de vida, mais de meio século e nunca tive um Natal que se dignasse a ser lembrado com alguma alegria, júbilo, contentamento.

Em retrospectiva meus natais são dignos de Charles Dickens. Só faltam a fome e a neve.

Nunca fui feliz nessa data, nunca ninguém ao meu lado. Sempre só, sempre me remoendo de raiva, sempre frustrado.

Se arranjasse um “bico” nessa data juro que trabalharia com prazer, faria o turno da noite.

Após o Café fui a uma Igreja ouvir mais cânticos, me sentia como um miserável diante de uma vitrine de doces ou de brinquedos vendo o que jamais teria...

Me pergunto se em minha infância meus pais enviaram mesmo minhas inocentes cartinhas para o “bom velhinho” ou se simplesmente as jogaram no lixo!

Logo esse ano se acaba e o outro começa igualzinho, igualzinho a esse que se vai. Meu fim se aproxima cada dia mais e nada de chegar a ter um feliz de Natal. Depois me perguntam por que olho atravessado para papais noeis e tenho vontade homicida de chutar pedintes, queimar árvores, enfeites e tudo mais.

Vou me entupir de programas repetidos TV, evitarei as retrospectivas, não atender telefone (como se alguém fosse realmente ligar), comer alguma bobagem aquecida no micro-ondas e dormir cedo enfiando a cabeça sob os travesseiros para não ouvir os fogos.

Antes de morrer totalmente sozinho, amargurado e com um cachorro magro e famélico amarrado no quintal, ainda mudo meu nome para Scrooge!

- Que venham meus fantasmas!

Juro que o primeiro que me desejar um “Feliz Natal” eu mato.





2012/12/12

“AQUELA DATA” OUTRA VEZ



Feliz é o Rodrigo, longe de todos e possivelmente com neve.

Nem parece que “aquela” data está chegando!

Estou anormalmente calmo, desestressado, sem rompantes, afável, agradável. Olho as vitrines enfeitadas sem engulhos ou calafrios. Não penso em dar rasteira nas velhinhas com sacolas, até cumprimento um ou outro nas ruas.

Ando sorrindo, mas percebo que assusto aqueles à minha volta. Mas compreendo que deve ser mesmo assustador essa cena.

Ok, o calor me incomoda e me enerva, mas ainda não é culpa “daquela” data.

Já comprei até alguns presentes, besteiras, umas lembrancinhas para não deixar essa data passar batida...

Para quem não me conhece, nem imagina a evolução que é isso. Uns dirão que a minha provecta idade está me amolecendo, não os contrariarei!

Vejam só, não vou contrariá-los!

Deve ser o sinal dos tempos. Ou minha esperança no fatídico fim do mundo antes daquela data. Sei lá.

Lá fora (estou trabalhando agora) o foguetório estourou possivelmente vitória do Corinthians. Conferi n e ganhou de 1 x 0.

Isso deve alegrar a patuleia e incomodar à hora do almoço, mas seguirei fleumático e superior, nada há de me abalar até o fim do ano ou fim do mundo, o que vier primeiro.

Até agora nada de convites, fugi de todos os amigos secretos do serviço, não fui à confraternização, nada de almoçar com colegas do escritório. Não quero me arriscar.

Preservo-me de aborrecimentos. Essa luta, nesse ano, não há de ser inglória como em anos passados.

Não chutarei os velhos fantasiados gritando os eternos e indefectíveis:

- Ho ho ho ho!

Não olharei para eles com sanha assassina, mas não me pouparei de desejar-lhes uma leve desidratação (ainda há um pouco do velho EU dentro de mim).

Se estou mais light não quer dizer que entreguei os pontos, que vou me irmanar com o próximo, nada de abraços, beijos e tapinhas nas costas. Não, não vou não.

Resumindo, ainda continuo o velho amargo de sempre.

Não se iludam e nem se arrisquem.


2012/12/05

COMO É EMOCIONANTE SER EU


(fragmento de uma carta)




Voltava para casa ontem à tarde quando na rua alguém chama meu nome, olho em direção de onde veio a voz e vejo “J”, notório alcoólatra. Antes que falasse meu nome outra vez fui a ele, que sentado a uma mesa de metal enferrujado, mostrava que há muito estava já bebendo. Acho que nunca o vi sóbrio, aliás², podendo evito-o.

Perguntou-me se estava tudo bem comigo.

Medi-o de alto a baixo e olhando profundamente em seus olhos vermelhos e ejetados respondi que:

- Sim.

Nada mais lhe disse ou dei oportunidade de dizer e virando-me fui embora.

Veja como é emocionante ser eu!

2012/11/27

DE LICENÇA EM CASA*



Estou em casa, de licença.
Precisei me afastar, reavaliar meus conceitos e curtir uma dor de corno. Preciso mudar de vida, achar meu Norte, me encontrar.
Sempre quis ser detetive particular, quando moleque assistia ao Columbo, muita elucubração e pouca violência...
Sou um intelectual, meu cérebro funciona a mil por hora, aposto que seria capaz e desvendar um crime sem sair da minha mesa de trabalho. Processaria as pistas fumando um cachimbo como o Inspetor Maigret.
Prenderia os bandidos, criminosos, traficantes sem um murro, uma rasteira, de mãos limpas usando só meu velho cérebro.
Mas sei que nunca serei como meus heróis. Não nasci para ser um herói... Outro dia no bar do Alemão, celebrando minha licença com meus amigos, dois sujeitos que discutiam futebol, começaram a falar alto, gritar, quando começaram a brigar um jogou uma garrafa de cerveja em direção ao outro e a dita garrafa arrebentou em minha cabeça. Fui levado para casa semi-inconsiente, passei dois dias com enxaqueca. Nem consigo lembrar a cara dos indivíduos...
Positivamente, ser detetive está fora de meu currículo.
Olho a folhinha, logo terei de voltar ao serviço, à velha mesa, minha cor está desbotando, adeus bronzeado. Só eu mesmo, queimo no serviço e desboto em casa.
Sou um total fracassado.
Procuro o que ler, mas só encontro pilhas de D.O., hoje vejo que fiz mal em me livrar de meus livros de detetives...
Tinha uma gata chamada Agatha, mas o vizinho a levou quando se mudou do bairro.
Para minha desgraça, só mais uma na minha vida, só mais uma, a vizinha da frente colocou cortina na sala dela. Sei, no fundo me minh’alma sei que a culpa é minha. Ela deu a entender que estava a fim, mas a minha fidelidade ao meu amor platônico pôs tudo a perder, outra vez.
Computando, vejo que só perco desde que comecei a anotar os meus ganhos e perdas, só tem X na coluna de perdas...
O meu mal é ser organizado assim, até na desgraça tenho tudo descriminado, analisado, medido, assim não consigo por a culpa em ninguém, fica claro que o culpado de tudo o que me acontece sou eu.
Sobre a mesa da sala, esperando entrar dinheiro para pagar, a conta de uma quantidade absurda de borboletas azuis que comprei. Serei lembrado no futuro (a quem quero enganar?) pelas minhas idiotices...
O telefone está tocando desde que acordei.
Não o atenderei que liguem pro meu celular. Não tenho celular, hahahahahahahahaha.
Deus, estou ficando louco, me assustei com minha própria voz...
Quinze dias, quinze dias de licença-prêmio! Não aguentarei isso!
Preciso fazer alguma coisa, beber está descartado, ainda sou motivo de risos no bar, o “grande detetive abatido”...
Sou uma piada, só eu não rio dela, será autocritica, ou serei sem graça mesmo? Bosta de detetive eu seria...
Certo, fiz bem em me livrar daqueles livros! Eles estavam a envenenar a minha cabeça...
Mais tarde lerei um Diário Oficial para passar o tempo.
Seguro-me para não telefonar para a repartição.
Não ligarei de jeito nenhum!
Ligarei daqui a pouco, logo será a hora do cafezinho lá.
Não ligarei, não ligarei, não ligarei, não me entregarei a essa tentação. Sou senhor de meu destino, nenhum desejo há de me fazer sucumbir.
Pronto, estou decido, ligarei quando eu quiser, não agora, mas quando eu quiser, quem sabe daqui a uns cinco minutos?
O telefone continua tocando...
Não deveria ter jogado fora o meu cachimbo...
Preciso tomar uma decisão, logo, já, rápido, urgente, imediata, preciso dar um passo á frente, preciso sair desse marasmo.
A vizinha agora fechou a janela...
Minhas alegrias estão se reduzindo a olhos vistos, olhos que nada veem através da janela.
Quando o telefone parar de tocar, ligo pro serviço e peço prá voltar.









*Para entender, click aqui



2012/11/05

COMO ALGUNS ME VÊEM

(e sem controvérsias...)





O” imbecil residente
O” cretino de plantão
O” inimigo atrás da porta




2012/10/09

DOMINGO




A primavera acabou, chegamos ao verão. O calor começa a reinar e derreter.

Recolho-me à sombra de minha casa, digo apartamento, terceiro andar, fundos. Domingo à tarde, o pior pedaço da semana, o dia que se arrasta em direção à segunda-feira. Torço para ninguém aparecer em casa, para o telefone não tocar, e se tocar não atenderei. Almoço e depois vou descansar, dormir mesmo, afinal, o resto do dia será a agonia do fim, será só estertores, aflição.

Deito, fecho as janelas, a escuridão me da a falsa impressão de frescor, o quarto torna-se minha caverna. Abraço o travesseiro e começo a adormecer.

Afundo no colchão e modorra. Lá fora, bem-te-vis e sanhaços fazem sua festa barulhenta e irresponsável...

De olhos fechados, ouço com estranha alegria essa balburdia, e vou aos pouco escutando vozes que vem do andar térreo, são crianças de seus três, quatro anos, elas brincam, gritam, correm, caem ao chão, chamam pelo pai que, calmamente, antes que elas comecem a chorar, diz que está tudo bem, não foi nada, vai passar.

Nunca fui muito fã de crianças e congêneres. Mas que coisa deliciosa de se ouvir, os sons e ruídos de uma família reunida, reunida e feliz. As vozes misturavam-se durante o que me pareceu ser um jogo de futebol entre pai e filhos.

A confiança das crianças no pai, a segurança que ele transmitia aos miúdos, como diriam os portugueses. Caíam e não choravam, marcavam gol contra e não reclamavam. Isso durou mais de meia hora, só interrompido quando a avó deles chamou para o almoço.

Antes de dormir de vez imaginei a mesa, os pratos, e a avó diligente e amorosa servindo a todos.

Pensei que isso sim era amor.

Dormi roído pela inveja.

O Domingo acabava bem para eles...

 


2012/10/08

O FIM



E tudo acabou tão rápido como uma onda batendo nas pedras, levando tudo e não deixando sequer espumas...

2012/10/03

BILHETE



Querido amigo sei que havia te prometido um Grifo aqui da Europa Oriental, mas Grifos não há mais, então te mando uma chave inglesa.
Sei que não é mesma coisa, mas em todo caso poderás consertar as torneiras que ai pingam sem parar.
Abraços fraternos desse seu eterno caçador de dragões!

2012/09/21

CÍRCULO VICIOSO




Ao limpar o velho apartamento encontrou perdido entres tantas coisas também perdidas por lá, o relógio de Higino José Dias Baptista. Ela chorou, e a saudade a levou de volta ao tempo em viviam juntos. E nessa nova chance de vida, ela tornou a cometer os mesmo erros que levaram Higino José Dias Baptista ao suicídio.


2012/09/18

CRÔNICA DE ENCOMENDA



Esvazio a segunda garrafa de rum e brinco com uma pérola fazendo-a rolar na palma da mão. Estou começando a nublar a minha mente, aos poucos as imagens daquela festa começarão a se dissipar. Logo esquecerei os rostos, as vozes, as conversas, as músicas, as risadas...
***

Na sala, cantavam o indefectível parabéns a você, nessa data querida, aí começa tudo. Data querida? Querida para quem? A velha senhora estava alheia à sua própria festa, parecia ela mais com um enfeite do que com a aniversariante. Os convidados serviam-se do bolo, dos doces, andavam pela casa da velha, mexiam em suas traquitanas, revolviam suas gavetas, quando ouvi alguém perguntar:

- Quando ela morre?

Não ouvi qualquer resposta, pois uma gargalhada preencheu o ambiente. Saí à varanda para fumar, queria ir embora, mas uma fagulha miserável de curiosidade me prendia ao lugar.
Fumei e comecei a beber.
Voltei à sala, a velha fora posta num canto onde não atrapalharia ninguém, onde pessoa alguma poderia tropeçar nela, onde não incomodaria quem quisesse circular pela sala em paz pudesse fazê-lo. Ela olha tudo à sua volta com olhos opacos, secos, olhos que olhavam, mas nada viam. Pensei que isso lhe seria benéfico. Quem suportaria testemunhar aquilo em sã consciência? Quantos anos a velha fazia? Pensei em perguntar a alguém da família, mas outra pessoa fez isso por mim e desgraçadamente ouvi a resposta:

- Mais que o necessário, ela já passou da hora.

Segurei meu copo com força e o completei com alguma coisa que saiu da primeira garrafa que vi pela frente. Continuei circulando pela casa e acabei indo ao jardim. Ar puro! Pensei erroneamente. Lá havia muito mais abutres ainda. As crianças, provavelmente bisnetas da velha, conferiam entre si o saque do seu porta-joias. Pelo visto, daquela família não escapava ninguém – pequenos abutres! Cuspi parte da bebida no chão, e como urubus sobre a carniça, elas não se abalaram com a minha presença e começaram a discutir como dividiriam o colar de pérola da bisavó. Concordaram em arrebentá-lo e dividi-lo pérola por pérola...
Pensei que no Velho Testamento, por menos que isto, a Justiça Divina já teria se manifestado.
Voltei para dentro, aquela cena me repugnara. Precisava beber e procurar a pessoa que havia me convidado para essa festa.
Fui convidado para fazer justamente o que estou fazendo, circular, recolher apontamentos e entregar depois uma crônica sobre essa reunião. Mas aposto que o amigo que me convidou, assim como eu, não tinha ideia do que iria acontecer aqui... Fui à cozinha, entrei pelos fundos, assim seria menor a chance de encontrar mais desses urubus de black-tie.
Servi-me de uns frios e uns uísques. Bebi e comi lentamente, o que eu vira e ouvira no jardim ainda me embrulhava o estômago. Após a frugal refeição voltei à sala à procura de meu amigo. Precisava encontrá-lo, desfazer o negócio e ir embora, isso não era o que eu esperava, nem estava ganhando para isso, vim para fazer-lhe um favor, seria a minha crônica seu presente para a velha senhora!

- Que presente! – pensei em voz alta.

À entrada da sala o garçom serviu-me mais bebida, não recusei. Emborquei dois ou três copos de uísque de uma vez! Precisava ser duro comigo mesmo para continuar com isso. Trôpego segui em frente.
Tropecei numa mesa com uns doces e salgadinhos que foram ao chão, as meninas que vinham do jardim correndo, pisaram neles e acabaram deixando manchas indeléveis no tapete. Ainda as vi voltando ao quarto da bisavó, imaginei que iam terminar o butim. Pequenas flibusteiras temo pela sua prole...

- O futuro corre perigo! – Gritei segurando o copo de uísque, que acabou indo de encontro ao tapete empastelado de brigadeiros e empadinhas...

Havia na sala um carrilhão de laca preta, muito antigo e consequentemente muito caro, e dois genros da velha discutiam o seu valor, quando um terceiro mais jovem chegou-se aos dois primeiros e comentou que “se essa velharia caísse em suas mãos, venderia imediatamente, pois na sua casa não entraria jamais uma porcaria velha daquelas, aquilo era um lixo anacrônico”, o que ele queria mesmo era o velho relógio de pulso, de ouro, do falecido, aquilo sim valeria uma boa grana! Riram e concordaram, nada de levar os entulhos daquela velha, o que valia mesmo eram as joias. Nesse momento as meninas passam correndo com as mãos cheias de joias em direção ao jardim.

- Outro butim. – Gritei como se fosse um brinde. Segui atrás das crianças e sentei-me num dos bancos do jardim. Continuei bebendo e por lá adormeci.

Acordei em casa, creio que meu amigo levou-me, e desde que despertei continuo bebendo para esquecer tudo isso que testemunhei.
Nada escreverei para ele, nada de crônica, continuarei a beber até que consiga esquecer tudo isso, tudo isso, tudo isso...

2012/09/17

AQUELA SEMANA SINISTRA



Dia primeiro

Uma segunda-feira clara, fresca e azul, ela entrou na sala. Todos lhe deram boas-vindas, tapinhas nas costas - tudo falsidade, tudo falsidade, eu sei, eu sinto, eu vejo, eu sinto o cheiro – mostraram-lhe a sua mesa, o serviço que faria, onde ficava o café, mas lógico que tudo isso seria para amanhã, pois hoje seria só festa. Ela nem olhou para mim, pois eu estava no canto da sala, canto direito onde batia o sol da manhã e o da tarde, as duas janelas sem persianas, o que explica o meu eterno bronzeado de janeiro a dezembro. Ignorado como estava, e sempre estive, deixei que meu coração disparasse a bater, batia um tum-tum louco e desenfreado, não fossem os colegas de sala tão ignorantes teriam a impressão de estarem a ouvir os acordes finais da Abertura 1812, onde sinos badalam e os canhões disparam e comemoram a vitória do exército russo sobre o exército de Napoleão Bonaparte... Mas guardei para mim toda essa impressão e segui batendo meus carimbos, escrevendo meus memorandos, minhas cartas, recortando trechos aleatórios do D.O. Mantive a minha eterna fleuma britânica, mas foi nesse dia que me apaixonei perdidamente por ela. Foi ai que começou meu inferno interior...



Segundo dia.

Cheguei mais cedo, tinha que ter certeza que a faxineira iria limpar bem a mesa dela, queria um serviço impecável, trouxe de casa um desinfetante importado, perfumadíssimo. Isso lhe causaria uma boa impressão da repartição. Fechei as janelas, impedi assim que o mau cheiro da rua maculasse o ambiente. Liguei meu rádio, uma música suave preencheu todos os cantos da sala, quem resiste a um Frank (ah! aqueles olhos azuis!) Sinatra cantando FLY ME TO THE MOON? Ah, mas o melhor, o melhor mesmo, o fantástico, o fabuloso, o incrível, o kafkiano em último grau, eu deixei para quando ela viesse me cumprimentar aqui no meu cantinho ensolarado. Às oito e trinta cinco – segundo dia e já se deixando levar pelo mau-exemplo dessas víboras da sala, pobre alma inocente! – ela chegou sorridente distribuindo bons-dias e tudo-bens a todos, mas no caminho em direção ao meu cantinho ensolarado ela foi pega pelo braço pela rainha das víboras – a substituta da sub-chefe - e levada à copa. Volta uma hora e quinze minutos depois, sentando-se em sua mesa somente para ligar o computador e entrar no facebook. Fiquei entre chateado com sua indiferença por mim e triste pela surpresa que eu iria fazer-lhe, aliás, mais preocupado com o bem estar da surpresa em si. Mas aguardei tomando sol que já me pegava pelas duas janelas de canto. Levantei-me para ir ao banheiro, era hora de renovar o protetor solar e falsamente displicente passei pela mesa dela e dei-lhe o meu mais falsamente seco e indiferente “bom dia”. Mas acho que interpretei tão bem que ela me ignorou. Alguma coisa em mim sempre me dizia que eu estava me perdendo no serviço público. Agora ela deve achar que sou antipático, um arrogante, uma besta ou quem sabe, deve achar que sou pior que aquele Déspota do RH, aquele monstro insensível! Esses pensamentos me acompanharam ao banheiro e diante do espelho vi lágrimas em meus olhos, deve se a poeira, só poderia ser... Apliquei o creme protetor fator 200 que espalhei pelo rosto e principalmente no pescoço que pegaria agora todo sol forte da tarde. Suspirei, lavei as mãos e voltei para o meu cantinho no fundo da minha sala. Abro a porta e sou violentado. O que ouvem meus ouvidos? Onde antes se ouvia Frank Sinatra, agora tocavam pagode, pagode, pagode! Pobrezinha, pensei, que má-impressão terá de nós. Como me preocupava com ela... Respirei fundo outra vez e fingindo indiferença entrei na sala, passei por sua mesa e perguntei irônico se estava gostando da “música” – (acho que consegui fazê-la ver as aspas) – e batucando com um lápis no copinho de café, respondeu-me que sim. Baixei minha cabeça, sentei-me à mesa e me afundei no trabalho até a hora do almoço. Não voltei à tarde.


Terceiro dia.

Entrei na repartição com renovadas esperanças. Mas eu era mesmo um estúpido. A pobrezinha estava tentando enturmar-se, como poderia ela, recém-chegada dizer àquelas víboras que gostava de boa música, que Frank Sinatra tocava fundo o seu coração? Sim ela teve que fingir (e a que preço?) que gostava de pagode. Acho agora, em retrospectiva, que ela estava batucando no copinho até bem descompassada... Paguei à faxineira para usar mais daquele meu desinfetante especial importado na sala. Anonimamente mandei entregar-lhes rosas, vermelho-sangue, vermelho-paixão, vermelho quase negro. Isso deveria causar-lhe uma muito boa impressão e despertar-lhe a curiosidade de querer saber quem enviara tais flores... As oito e cinquenta cinco ela chegou, mais tarde ainda. Ah! a má-influência, Ah! a má-influência... Jogou a bolsa sobre a mesa e foi à copa. Quando voltou, rindo muito e ajeitando os cabelos já passava das dez horas e enquanto ela entrava na sala eu saia para ir ao banheiro passar o protetor solar - em fevereiro aquelas janelas são um inferno – quando voltei as flores já haviam sido entregues, e as víboras ciciavam. Perguntavam histéricas quem era o admirador secreto, que a ela declinasse logo o nome do pretendente. Não fizesse “mistério” Nada de segredo entre elas, que contasse logo e contasse tudo. Percebi que ela sorria um sorriso de mistério, de cumplicidade, será que ela sabia que eu era o remetente? Passei como que invisível por todas elas. Desforrei minha frustração sobre o D.O. Fiz dele um saco de confetes. Telefonei ao Déspota do RH e o chamei para fumar- sou fumante passivo – e subi ao quinto andar, de lá eu jogaria minhas frustrações em forma de minúsculos fragmentos de papel... Quando volto à minha sala, ao passar pelas mesas das víboras escuto comentários sobre o mau-cheiro do meu cigarro e que é uma vergonha alguém ainda fumar nos dias de hoje. Ela olhou-me num misto de pena e nojo. Demorou muito a dar a hora do almoço. Coloquei meus fones de ouvido e me entreguei ao Frank Sinatra. Almocei e não voltei outra vez. No dia seguinte era só assinar o ponto, pois eu era realmente invisível naquela repartição.



Quarto dia.

Cheguei vinte para as oito. Adiantei-me para encontrar o Déspota do RH na rua e fumar passivamente um cigarro, estava tenso demais. Logrei encontrá-lo e desfrutei do seu cigarro. Antes de entrar na minha sala pedi à faxineira que me devolvesse o desinfetante especial importado - minha mãe dera pela falta! Que ela usasse o que o Estado compra e já estava muito bom! Sentei-me à minha mesa, abri o D.O. e com o estilete pus-me a cortar qualquer coisa com mais de dez linhas, o resto picotei com minha mãos, rasguei, piquei, eviscerei o periódico e com as mão sujas de tinta comecei a rir e jogar tudo para cima. Parei quando a faxineira entrou na sala. Dei a ela dez reais e pedi-lhe que fosse discreta e limpasse tudo direitinho. Telefonei ao Déspota do RH e fomos ao quinto andar fumar. Essa situação estava me fazendo fumar demais, daí para começar a beber era questão de tempo, de bem pouco tempo. Fumei e me acalmei. Arrependo-me do apelido que dei ao Déspota do RH! Tudo por causa desses meus nervos! Mas acho que ele não liga muito para isso, sorte minha! Antes de voltar à minha sala fui ao banheiro passar o protetor solar, fevereiro parece que não vai acabar nunca! Nove horas, nove horas ela chegou, e ainda assim antes das outras víboras, deu-me um bom dia e vendo-se sozinha na sala, dignou-se a vir conhecer meu cafofo, digo, minha mesa. Sorri com muita polidez, embora por dentro estivesse pulando, gritando agitando a bandeira do São Paulo Futebol Clube, soltando fogos e chorando de emoção. Ela chegou-se a mim e perguntou se alguém havia telefonado e avisado que chegaria tarde hoje. Suspirei e – para não despertar nela nenhum sentimento de misericórdia por mim, omiti o fato de que ninguém me liga, nunca - e respondi-lhe que não, que ninguém me ligou, e expliquei-lhe a contragosto que esse era o funcionamento normal da repartição, ninguém chegava na hora aqui. Ela riu e comentou que “se esforçava muito para cumprir horário, e já que o negócio funcionava assim...” Não entendi a reticência, mas sabia que dali não viria nada que prestasse. Senti ganas de ligar ao Déspota do RH, mas pensei comigo mesmo, que se não conseguiria um dia deixar de fumar de vez, que ao menos me controlasse um pouco. Fui à rua comprar um jornal para rasgar, hoje não tinha D.O. O resto do dia passei com o Frank Sinatra, só levantei da mesa para ir ao banheiro passar protetor solar no rosto e no pescoço. Assoviando baixinho esperei pelo fim do mundo ou do dia, o que viesse primeiro.



Quinto dia.

Sexta-feira. Metade das víboras não vieram pela manhã e seguindo o padrão, a outra metade desaparecerá à tarde. Hoje descubro o caráter dela! Dez e vinte e cinco ela chegou! Mal me cumprimentou com um bom dia ligeiro e superficial, pegou o telefone e pediu café da manhã no bar em frente – isso é sinal de noite ruim e dia pior, reconheço esses sinais de longe - e foi ao banheiro maquiar-se, e essa foi a primeira e única vez que vi a de cara limpa. Para mim ainda era linda, mesmo sendo invisível a ela, ela ainda era linda para mim, emocionado e trêmulo com essa epifania liguei para o RH:

– Estou subindo! – e fui para o quinto andar.

Na volta, a caminho de minha sala no corredor, escutei choro vindo da copa, era ela, não poderia ser coisa boa e certamente ela não chorava por mim... Intui que passaria o dia sozinho na sala entre Frank Sinatra e telefones tocando sem parar. O vigia da manhã me trouxe a pilha de D.O.s de ontem – o passado não me dá folga. Agora minha sanha homicida será saciada, procuro pela minha tesoura – onde ela está? - não quero cortar papeis com estilete, quando estou com ele na mão sinto que não respondo por mim, preciso da tesoura, e quando abro a terceira gaveta para pegá-la saem de lá as esquecidas e ainda vivas borboletas azuis, a minha surpresa kafkiana para ela que até eu mesmo tinha esquecido. Elas começaram a voar atarantadas pela sala tentando sair pelas janelas fechadas e prestes a serem trucidadas pelos ventiladores, e então os telefones começaram a tocar, os trens começaram a apitar e os caminhões a buzinar para os mesmos trens saírem de sua frente, e a faxineira que tinha entrado na sala para me devolver o desinfetante importado, começou a gritar assustada com as borboletas. Nesse momento, numa lucidez que há muito não vivenciava telefonei ao Déspota do RH:

– Tô subindo! Lá em cima entre uma tragada e outra lhe segredei - Cara, o amor não presta! Acho que vou entrar com meu pedido de licença-prêmio ainda hoje...

2012/09/06

REFEIÇÃO


No pedaço de pão duro, esmolado, tudo o que acompanhou de recheio foi o nojo, o asco, a má vontade e nada de manteiga ou, sonho distante e impossível uma fatia de mortadela. O pé descalço, duro feito casco, seguiu pela rua carregando aquele corpo andrajoso e faminto. O pão na mão poderia ser alimento, e de tão duro, uma pedra, uma arma.
No bolso, uma bituca de cigarro guardada para depois de um almoço...
Ah! Essas piadas sem graça que a vida nos faz!

MACAU


(OU NEM TODAS AS PATACAS DO MUNDO)



A princípio, para a sua alegria de eterno endividado um dia começou a receber de Macau envelopes recheados com verdes notas de dólares, muitas.
Depois, começaram a vir com instruções para investimentos, todas desconsideradas e ignoradas, afinal se não sabia quem as enviava, pouco importavam a recomendações.
Quando as cartas pararam de chegar, sua alegria e alívio foram enormes. Já havia mobiliado o apartamento, trocado de carro arrumado, uma amante, acabado com a barriga, e largado do emprego.
Mas...
Um dia, começou a receber telefonemas às altas horas – fuso horário, pois na Ásia era bem cedinho - com cobranças e sérias ameaças...
Hoje sua rotina diária começa com a mesma indagação:

- Quem em Macau me conhece, quem?

E termina seu dia tendo pesadelos com uma tal Madame Ching Yih Saoa

2012/09/05

DEPOIS É TARDE



Fumante por mais de cinquenta anos, uma noite acordou com um acesso violento de tosse, tanto tossiu que começou a vomitar sangue e enquanto agonizava, a mulher entre histérica e vingativa gritava:

- Foi o cigarro, foi o cigarro!

Na necropsia provou-se que ela estava enganada. Pena o morto não poder ter tido a última palavra!

2012/09/03

OS MENTIROSOS





As ideias dela eram tão podres que o cérebro apodreceu. Só o câncer para evoluir na mente de uma alma tão suja. Os filhos, justificando anos de vassalagem às cafajestadas da velha, contam na vizinhança que a mãezinha era boazinha, só tinha desvio de caráter porque já era doentinha, coitadinha. Os netos só passam vergonha.





2012/08/31

PROJETO DIÁLOGOS

PAPO DE CAFETERIA #001

Religiosamente os dois sentavam todos os dias no café, a mesma mesa, o mesmo pedido, o mesmo garçom. Só mudava mesmo era a conversa, nunca repetiam uma conversa, nunca deixavam em aberto o assunto do dia, e naquele dia o assunto era: a política das cotas do governo para jóqueis canhotos nas corridas de cavalo. E assim, Melo disparou seu comentário:

- Absurdo esse tipo de coisa, o governo devia investir em outros tipos de cotas.

- Absurdo mesmo será fabricarem as rédeas para esses cotistas. Imagine só quanto o governo vai gastar de verbas públicas com isso?!?! Aposto que tem a mão do nobre deputado metida nisso, ah, se tem!!! Esse café já esfriou!

- Não, não, não acho que isso vá resolver o problema. A coisa é muito mais política do que econômica.

- Nem uma coisa nem outra, isso é falta de respeito com a população e mais uma forma de roubar a gente. E esse café? Não vão mandar um quente??

- Sem sombra de dúvida. Mas você não acha que o Fernando Planct deveria ser o ministro nessa caso?

- Sem sombra mesmo, café frio eu não aguento! Ora esse Ministro! Esse ai é do mesmo naipe daquele outro da Pesca, que nunca pôs uma minhoca num anzol! Me empresta teu celular, acabou o crédito do meu, vou pedir um café ali na outra cafeteria...

- Hahahahah...tá de brincadeira. E como ficam as medidas provisórias que já estão em vigor?

- Acha que estou de brincadeira? Me dá daqui o celular e você vai ver!!! Como você bem o disse, são provisórias, mas aposto que mundam as regras no meio do jogo, digo, da corrida, e ainda vão botar a culpa no cavalo... Espere um pouco, está chamando. Com ou sem leite?

- Não havia pensado por este ponto de vista. Sem.

- Sim, eu sempre penso no pior. Pobre do cavalo...

- Tá, ok! Vamos dizer que isso seja verdade. E nós dois, então, o que seria de nós se não tivéssemos a nossa cota do governo para apreciadores de café preto, nascidos entre 1963 e 1972?

- Isso não é problema meu, sempre digo isso, afinal nasci em 1961. Vão entregar em quinze minutos... Vai chegar frio!!!

- Definitivamente, acho que você deveria dar a última palavra nisso! Então cancela.

- Tem razão. Me dá o celular, vou cancelar o café!

Levantaram-se, com a certeza de que mais um assunto foi exaustivamente debatido, porque o amanhã chegará com mais um cafezinho e um novo assunto!

2012/08/30

MEIA-NOITE



A meia-noite o tocou com um arrepio nas costas e doze badaladas, simples assim, mas que sustou ele levou...

2012/08/29

PEQUENA ODE AO MEU CIGARRO



Sou só
Vivo só
Ando só
E tenho só
E somente
Por companhia nessa
Solidão o meu cigarro
Ele me acompanha
Pelas ruas
Ele está comigo quando reflito
Sobre a minha condição
(ou seria minha solidão?)
Ele é o meu bom dia
E minha boa noite
Ele seca minhas lágrimas
E encobre meus soluços
Ele não me cobra nada
Nada exige
Não me confronta
Ele está aqui disponível
Bem no bolso da camisa
Sobre meu coração
Estou conformado e sei que
Minha solidão há de me matar
Antes da fumaça de meu cigarro...

2012/08/28

TENSO



O medo vinha à noite, no bater do vento nas janelas, no latido distante do cachorro, no grito anônimo na rua escura, no telefone que toca às altas horas, na insônia cheia de fantasmas e sirenes apitando loucamente...

E o amanhã como será?


2012/08/23

O MEDO ASSOLA A CIDADE



Invadiram a casa pelo telhado.
Não quebram nada, as telhas seguem inteiras, nenhum barulho, o gato que dormia no sofá, não acordou. Nada foi roubado, tudo estava na mais perfeita ordem quando os policiais - telefonema anônimo - chegaram no dia seguinte.
Os proprietários estão sumidos até hoje. Há boatos, muitos - sussurram a boca pequena - que os bandidos comeram o casal de idosos, nem osso sobrou.
O medo assola a cidade.


2012/08/22

DECISÃO ADIADA



Pôs o uísque no copo, duas pedras de gelo, umas gotas de veneno, girou com o dedo  indicador, por força do hábito lambeu-o depois.  Achou a mistura tão amarga que jogou a bebida fora, iria pensar noutra forma de por fim à própria vida.
.

FOLCLORE



Minha garrafa de vidro quebrou e o saci fugiu.

Se tivesse comprado aquela em Taubaté numa garrafa pet...

2012/08/21

LAR



A casa é humilde
As galinhas pelo quintal
O coelho a correr por todos os cantos
Crianças brincando
O sol claro
Céu azul
Pessoas rindo
E celebrando o encontro
Acho que isso é um lar de verdade

2012/08/17

AH! QUE AMOR...



Seu amor era mais que puro, mais que divino, mais que celestial, ela o amava com todas as forças de sua culpa no cartório.

2012/08/16

REPARTIÇÃO




Da janela, costumava ver o céu e suas várias cores no decorrer do dia, as aves, os barcos que entravam e saiam do cais, as pessoas passando pela rua, descendo dos barcos, os trens, caminhões, lentamente começava a ver cunhados pedindo favores, logo seguido de dragões, fadas, duendes, gigantes famintos e anões armados até os dentes, bestas horríveis, feras medonhas, criaturas assustadores, seres saídos dos piores pesadelos, ouvia sons aterrados, davam-lhe tanto medo que ele se refugiava sob a mesa de trabalho e antes de entrar em choque acabava sempre por escutar uma voz distante que gritava à beira do mais bárbaro histerismo:

- Passou o efeito do lexotan dele, mediquem esse homem pelo amor de Deus!

...e a escuridão o abraçava.

ERA UMA VEZ UM SUJEITO, VAMOS CHAMA-LO DE SÍLVIO OU VLADIMIR OU ROBERTO, QUE DIARIAMENTE FAZIA A MESMA A COISA...


- Ser louco furioso, pintar uma obra de arte, cortar fora uma orelha, dar fim à própria vida, ah, isso e fácil, quero ver ser funcionário público por trinta e tantos anos e não cometer nenhum desatino! Isso eu quero ver, quero ver! – bateu o cartão de ponto e foi para a sua sala mastigando a velha dentadura frouxa...



2012/08/15

COMO SE AQUI FOSSE A RÚSSIA...




Cultíssima e deprimidíssima, citando Ana Karênina, contou lentamente até três e pulou de baixo do trem.
O seu “Vrosnki”, que tomava cachaça num bar, só tomou conhecimento do drama mais tarde naquela noite, mas tão bebado estava que dormiu durante todo o velório.

Fim.

ENCONTRO NO MAR




Sentado à beira-mar, as ondas molhando seus pés cansados, o velho marinheiro fumava seu cachimbo e de quando em quando olhava ansioso para o relógio. Tão longos e distantes um tic-tac do outro...
Baforada após baforada o tempo escorria como a água que voltava ao mar a cada onda.

- Ela está atrasada! Resmungou enquanto enchia o fornilho com mais tabaco – Capitan Black - pela cara ela não vem mais hoje, é isso que eu ganho por acreditar em sereias. E foi-se embora triste, e nem passou-lhe pela cabeça ver as redes ainda largadas no mar...

MAS AGORA JÁ ERA TARDE DEMAIS



Acharam primeiro a garrafa - dentro uma mensagem – e somente meses depois encontraram os ossos do remetente entre os destroços. Mas o céu estava de azul sem igual...

LUA NOVA




Em meio a um gigantesco apagão, à meia-noite, Milton abre os olhos e grita:

- Meu Deus, estou cego!

O Vizinho histérico berra mais alto ainda:

- Meu Deus, isso é contagioso!

2012/08/14

ESTAÇÃO





Aqui nessa estação
Não passa mais nada
Só o tempo
Mas passa tão lentamente
Que faz doerem as lembranças
Dos trens que passavam por aqui
O tempo que passa
Leva pouco a pouco
A memória da gente
E as paredes, e os trilhos
Da fumaça que um dia saiu
Das chaminés
Nem as manchas sobraram
Pois não há mais nada que lembre
Que aqui um dia passaram trens
E aquela moça que esperava na estação?
Foi de taxi, de ônibus ou avião
O tempo urge e não se importa
Com sonhadores...



2012/08/10

PESADELO




Os passos estão ecoando pelas paredes, cubro minha cabeça com o travesseiro, mas não deixo de ouvir seus passos, meus olhos abertos ardem, não consigo dormir, pois os passos, os passos, ouço-os na escada, meu Deus, eles pararam na porta do meu quarto, mas não é possível, não é possível, é totalmente impossível, Jesus, a porta está abrindo, ouço o primeiro passo, isso não pode estar acontecendo, não pode não, esses passos, o som do salto o sapato no chão, não pode ser, estou sonhando de olhos arregalados, estou empapado de suor de tanto medo, não me mexo, não me movo, nem respiro, agora os passos estão ao pé da minha cama, estão puxando as cobertas, meu coração vai sair pela boca, minha cabeça está sendo descoberta, não, não quero acabar do mesmo jeito que...

2012/08/09

SONHOS DE UMA NOITE


As crianças estão dormindo
Veja, parece que sonham
O cachorro do vizinho parou de latir
Enfim sossego
Na TV nada que preste
Já desliguei
A noite só estrelas
Logo a lua cheia sairá
Uma noite perfeita
Só falta, por via das dúvidas,
Tirar o...

- E o maldito telefone tocou antes!!!



CAMA



O outro lado da cama parecia vazio, mas na verdade estava cheio de culpas, arrependimentos e palavras duras...

2012/08/08

MALDITO PRESENTE!



O tio presenteou-o com o um livro, grosso, muitas páginas, capa dura, ilustrações feitas a bico de pena, detalhes em dourado.
Havia muitas histórias de cavaleiros, dragões, batalhas, armas, sangue, intrigas, uma pitada ou outra de romance – mas pouca coisa, nada que distraísse muito. Mágicas, magos poderosos, gigantes, anões, calabouços, chuvas violentas, fogos, gritos, ais de mocinhas, gritos de soldados, era um grande épico - como se houvesse pequenos épicos! Aventuras de mãos cheias!

- Aposto que você nem vai dormir enquanto não acabar de lê-lo – disse lhe o tio orgulhoso.

A criança segurou o livro e correu para seu quarto.
Horas depois a mãe o encontrou prostrado na cama, chorando baixinho.
Aos soluços explicou:

- O que será de mim se nunca mais dormir por causa do livro?

Jogando o livro pela janela a mãe resmungou:

- Seu tio e essas porcarias de livros. Eu disse a ele, dê uma bola ao menino, mas não...

A criança assim dormiu e acordou tão ignorante como sempre foi.


A VISÃO


(para ler rápido, de um só fôlego)



Rosinha assustada entra em casa esbaforida.
Olhos arregalados, afogada no medo com o coração a sair-lhe pela boca, suas finas pernas tremem – ela não as depila - apoia-se numa cadeira, abana-se com o jornal de ontem - que estava reservado para embrulhar as escamas do peixe do jantar. Longos minutos passam antes que possa proferir palavras, palavras essas que abalarão os pilares daquele lar cristão e conservador – o pai é da TFP e a mãe da renovação carismática...
No quarto dos pais há uma foto do Papa Bento XVI.
Rosinha fita o quadro da Santa Ceia na parede sobre a mesa do jantar e com as mãos tremulas (suas unhas não tem esmalte) faz o sinal da cruz.
Sua mãe acorre a ajuda-la.
E antes de, por fim, desmaiar profere as palavras:

- Eu vi o Magrão!

- Aquele demônio, suspira a mãe apertando contra o colo a medalhinha de São Bento.



Cai o pano!


CLASSE DOMINANTE


(ou nosso lugar na cadeia alimentar)

O jantar fora servido sobe a mesa do almoço e o café da manhã, assim como o jantar do dia anterior. Na mesa farta, a comida está se estragando e os comensais, todos mortos há muito tempo, seriam servidos até o fim dos tempos. Os empregados à medida que fossem aposentados seriam trocados por outros novos, gerações e gerações de serviçais a atenderem os patrões decompostos.

- Os mortos são insaciáveis! – Murmura a criadagem.

Na cozinha mais pratos são preparados, os abutres há muito desistiram desses cadáveres e partiram para outras plagas, em algum decente haveriam de encontrar melhores mortos para se alimentarem...


2012/08/06

O FIO



As paredes fazem ângulos retos
Os corredores são estreitos
O caminho longo
Tudo tão escuro
E à frente
Mugidos assustadores
Meus passos são curtos e medrosos
Tateio feito cego
Para onde vou
Não sei
Mas também não sei mais
Como voltar
Ando
Ando
Ando
Meu medo
Vira pânico
Quando me dou conta
Que perdi o fio...



CASTIGO



Ao ouvir o estranho som, uma mistura de grunhidos e com mastigação de ossos, ele acreditou no Bicho-Papão. Mas de nada adiantou chorar e pedir desculpas à mãe, pois a porta já estava trancada à chave e a luz do quarto apagada...

2012/08/02

CAMINHOS




Ando na linha
Do bonde
Dos trens
Na faixa dos pedestres
Ando pelas ruas e
Avenidas dessa cidade-ilha
Tempo perdido andar tanto assim
Por maiores que sejam meus caminhos
Acabo por andar sempre em círculos...

PENSAMENTOS, PENSAMENTOS E NENHUMA RESPOSTA



Na rua pela manhã um mulher praticamente joga-se sob meu carro, por pouco, muito pouco não a atropelei.
Ela segue sua travessia suicida em diagonal pela avenida. Carros buzinando e desviando-se dela que seguia feito uma kamikaze empurrando um carrinho com um bebe a bordo.
Fosse esse mundo justo...

2012/08/01

TÃO TRISTE


estou tão triste

que dói respirar

quanto mais

suspirar

TRABALHO


Os livros são empilhados desordenadamente num canto do salão só para serem removidos no dia seguinte, o sol começa a se por e a luz do farol, intermitente, já ilumina o seu quarto.
Ora de sonhar, amanhã começa tudo outra vez. E Sísifo sonha com seu trabalho infinito.

2012/07/31

PLAFT



A manhã começou muito estranha, muito estranha...
Saiu a toca, não cama, espreguiçou as patinhas - tantas – não as pernas e braços, saiu arrastando-se pelo chão e não andando como um homem, e quando percebeu as anteninhas na cabeça um chinelo extinguiu-lhe a vida – tão breve e desconhecida!
Nem todos tem por destino virar um livro famoso...



2012/07/30

CAFÉ & CHUVA




Caminhando na rua sob a chuva, sapato escorregando nas calçadas, o blazer fechado, me protegendo do vento frio, deixei meus pés me levaram ao Café.


Minha mesa lá estava lá e o local praticamente vazio, rápido atendimento. Ele quentinho na xícara, o aroma, a fumaça subindo em direção ao meu nariz gelado, ah se eu pudesse fumar ali dentro...

Próximo a mim as caixas de som tocavam Dianna Krall. Meu Deus jazz, chuva e um Café vazio, isso dói.

Sorvi o divino líquido pensando nos amigos que tempos atrás se sentavam ali comigo...

Sei lá, mas esse tempo húmido, as mesas vazias à minha volta, eu ali sozinho, tudo isso numa segunda-feira, me deixa numa melancolia do diabo¹.

Da minha mesa, perto da porta, mas atrás de um pilar que me deixa ver a rua sem ser visto por ninguém lá, mesmo só ainda escolho quem quero ver, essa dicotomia ainda me mata. Por um segundo, por um mísero segundo quase mudei de lugar.

Quase...

Pedi outra xícara, nem demorou muito e fui logo servido.

Lentamente o adocei, fiquei girando a colherzinha distraído e distante, ao lado o jornal do dia, mas por azar não levei os óculos de leitura. Mexendo o café continuei pensando nos amigos ausentes, lá fora chuva caindo, meus pés molhados, os cabelos desgrenhados e eu sozinho no Café.

Poucos minutos que me pareceram uma eternidade. Levantei-me, fui ao caixa, paguei os cafés e fui embora.

A chuva me pareceu mais fria e o caminho de volta ao trabalho ficou mais longo, acendi o cigarro e segui em frente...



 
 
[1] Quem disse que o Diabo é melancólico? Ora, o Magrão que responda isso!
 
 
 
 
 
 

2012/07/27

ESPERANDO RESPOSTA



Queria perguntar
              Indagar
              Inquirir
              Saber
              Perquirir
              Perscrutar
              Averiguar
              Verificar
              Saber mesmo
Assim – assim meio cheio de dedos...
Pisando em ovos
Se você gostaria
Se interessaria
Quiçá mesmo pro futuro
(nada muito distante, afinal os anos andam passando tão rápido ultimamente...)
Se estaria em seus planos
Se não estiver muito ocupado
Coisa assim de estudar com aprofundamento
Um lance de extensas reflexões
Um dia
Não muito longe
(vide 15º linha)
Distante
Remoto
Voltar a ser meu amigo...

PLANOS



Na mão direita a carta de demissão
na jaqueta um poema de amor que jamais seria entregue
no bolso da calça um par de alianças que...
amanhã, se der sorte, manchete de jornal




2012/07/26

FATO


As moscas pousam
(uma mancha negra)
Na cabeça
Da criança morta
Apoiada no colo da mãe
Magra e faminta
Ninguém faz nada mais
Além de fotografar
A miséria é feia ao vivo
Mas vende
Jornais e revista
Deixemos tudo como está
Assim é esse mundo
Pois se ela (a mãe) precisa comer
Suas migalhas
Eu também preciso
Da minha lagosta e caviar
Assim é a vida
Uns tem outros não
Essas são as regras do jogo
Clic clic clic
Veja ali naquela esquina
Um morto de crack
Clic clic clic
O mundo é cruel concordo
Mas faço a minha parte
Te mostro
O que tu finges que não vê
Sou cínico?
Talvez
Mas os outros (que não eu, não eu)
São os assassinos
Somente te mostro
O que tu finges que não vê
Assim é esse mundo
Somente te mostro
O que tu finges que não vê

CRIAÇÃO


Enquanto a poesia não vem
A caneta vai prá lá e prá cá
Riscando
Rabiscando
Esperando
Pela inspiração..

MISSIVA



Completamente sozinha comemorou suas suas bodas de ouro tomando cicuta numa taça de cristal da Boêmia.
Esperando pela morte, escreveu sua última carta de amor si mesmo. Mas não teve tempo de selá-la...



A corda
- afinada em dó -
Sustentou bem o corpo
Mas o pescoço
Quebrou...

O CIRCO DA VIDA


A dor de corno do engolidor de fogo fez da matinê de domingo um espetáculo ardente, o mágico só ficou sabendo do incêndio, à noite, pela televisão no motel onde estava com amante.

2012/07/25

RINGUE


estrelas cadentes
coriscos
raios de luz
a vertigem
a lona branca
(o beijo fatal)
o tudo preto
o nocaute

2012/07/24

VIDA DURA



Levava sua vida de cão tão a sério que antes de dormir (e apanhar do marido) sempre enchia um potinho com ração e outro com lágrimas.
E assim ia levando a vida à espera da carrocinha que um dia a libertaria.

2012/07/23

FOTO FANTÁSTICA



Gritei ao velho na janela:

- sorria!

e ao fazer cairam-lhe os dentes...



ODE AO TEMPO PASSADO


onde os bares de antanho
as conversas
os planos e projetos
as discussões filosóficas
os banhos de água mineral
nas mesas de bares
as cervejas ruins
o Ivan se metendo nas conversas
os pés-sujos cinco baratas
cachaças com patcholi
aranhas e escorpiões
onde a juventude meu deus
teu amigo petista roxo
sempre um passo atrás de nós
a lata de tinta azul-royal
(francamente!)
os ensaios
aquele monólogo para duas pessoas
os palcos
a plateia
aquela feijoada tarde da noite
(quando não alta madrugada)
o Lalá e sua indigestão
cadê tudo isso
cadê a Caxuxa
não, não me responda...
o “relativo”
o luso da “baca”
os balcões, tantos
o Terraço Itália...
(ok, choveu naquele dia...)
o mundo era nosso!
os anos passaram tão rápido
veja quanto ficou para trás
e nós seguimos em frente
e veja só Vadinho
num momento de distração
ficamos com barriga
sem cabelos
e nos perdemos numa encruzilhada qualquer


2012/07/20

O PIOR


Após o telefonema, anônimo, correu para casa esperando pior, o pior. Abriu a porta silenciosamente, segurando a respiração, olhos fechado - espera vê-la - com o outro, mas qual não foi a sua surpresa em ver o apartamento vazio. O outro levou sua esposa e todos os móveis.

- Esperar o pior não falha - suspirou

INVERNO


Dia frio
Céu azul
E dedos roxos

2012/07/16

PERGUNTA


Nas areias brancas
Sem fim
Um barco jaz encalhado
De que mar teria vindo?
Será que ainda o esperam em algum porto?
O vento sopra
E grão a grão
Esse barco singra
Em direção ao esquecimento

2012/07/15

ALMOÇO DE NEGÓCIO

O pimenteiro e o saleiro ali na sua frente, o sal, a pimenta, a conversa fiada, o falar muito, não dizer nada, o sal e a pimenta à sua frente, o cardápio com comidas impronunciáveis, sabores desconhecidos, o sal e a pimenta à sua frente, tomou um gole de vinho, quis esvazia a taça, mas o vinho era muito seco, a pessoa à sua frente falandofalandofalandofalando, tomou outro gole, tão ruim era o vinho que não conseguiria embebedar-se para suportar tal lengalenga, o cardápio não o atraia, a conversa tirara-lhe todo o apetite, o vinho lhe embrulhara o estômago, mas o sal e a pimenta no seu campo de visão o impedia, em parte de olhar para o seu interlocutor que não parava de falar, agora vinha com suas digressões sobre política, sua sempre bem colocada opinião sobre tudo, sobre todos, sobre economia, saúde, educação, religião, tudo estava no seu campo de conhecimento, nada. As horas passavam – seriam dias? - , a fome se foi, a sede insaciada e o sal e a pimenta à sua frente, as horas arrastavam-se, e ao menos pudesse acender um cigarro...

Olhou para o relógio, somente meia hora havia se passado!

2012/07/11

AMANTES


Naquele beco escuro
Um lugar comum
Amantes ordinários
Encontravam-se furtivamente
Para trocarem, como celerados,
Beijos roubados

MARGARIDA



Pétala a pétala
Uma a uma
Uma sim
Uma não
Pétala a pétala
Uma a uma
Sim
Não
Descobriu-se
Não amada
E o chão
Manchado de
Amarelo e lágrimas

FIM DE JOGO


- Vamos por as cartas na mesa!
Ele jogou quatro azes e um curinga
Ela, as cartas do Adolfo, seu amante.

2012/07/06

SONHOS NEM SEMPRE SONHOS SÃO

Alimentando-se de sonhos
Um dia engasgou-se com um pesadelo
E morreu engasgada

BENTO

Religiosamente ele aspergia de sua água benta. Um gole de cachaça
E uma cuspida no chão

PENSAMENTOS


Pensar no mar é lindo
Se está no deserto
Pensar na terra é maravilhoso
Quando estamos a nos afogar
Menu é literatura na Etiópia
E besteira quando a barriga está cheia
Assim somos...
Mas isso não quer dizer que me conformo, não, não, não
Pobre do Compañero Castro

                                                                                                                                                                                       (diz ai Silvio!)

FIM DE NOITE


Cigarro na bituca
Os copos largados sobe a mesa
Os pratos sujos, que logo o garçom vem buscar
A lua feito besta no céu
Positivamente a noite está no fim
Mas ainda tem conversa
Ainda tem casos
Causos
E tantas historias e mentiras prá se contar
(Né mesmo Vadinho?)
Só nos resta uma solução
                                                                           - Garçom, tudo de novo outra vez!
As garrafas chegam
Os copos se enchem
O céu vai ficando vermelho
Logo trocaremos as últimas cervejas
Pelo primeiro café...

2012/07/05

DESPEDIDA


Não vejam aqui nesse caixão o morto que estou
Mas o vivo que fui um dia
Não chorem sobre o corpo
Mas riam como riamos em volta dos copos
Não pensem
- Ele se foi!
Mas assim:
- Nos aguarde, vamos logo!

ESTRANHAMENTO


Ao entrar na casa me surpreendi em reconhecê-la por completo, mas havia um elemento dissonante lá, aquele quadro ali na parede, aquelas pessoas não eram da minha família, e juro, o patriarca na foto olhava para mim com olhos graves e reprovadores. Mas a mobília e tudo mais me eram tão familiares...
Então tocou a campainha!

2012/07/04

DUREZA


Ao cair duro e morto
Deixou em casa a família
Dura, faminta e endividada
Ninguém chora por ele
Mas choram diariamente
Para o gerente do banco

2012/07/03

CARINHO

Aliso tua coxa
Ela é lisa como uma seda
Se de cima para baixo
Mas de baixo para cima
- Que peixe és!
Só escama...

2012/06/29

2012/06/27

SONHOS DESFEITOS


Feriu a corda
E alcançou um dó
Cantou o primeiro verso
E conseguiu uma vaia
Ali acabou seu sonho...
Acordou para vida batendo carimbo numa repartição!

CORDA



Na corda o corpo balançava
(tic-tac tic-tac)
Lembrando-nos como a vida pode ser breve
(quando queremos)

PENÉLOPE

Tricota e desfaz, tricota e desfaz, tricota e desfaz
- Essa criança não para de engordar!
Tricota e desfaz...



FÉ(ZES)!


O brâmane fiel
Faz suas orações e atira-se ao Ganges

Já aqui, depois de tanto orar
Só resta pular no Tiete



2012/06/26

DECISÃO


Peguei a tesoura e pensei em cortar
Todas as cartas que havia te escrito
Mas pesei bem o que iria fazer
Afinal eram tantas as cartas
Que achei mais fácil
Com a tesoura
Trespassar teu coração



TESTEMUNHA


Eu vi com esses olhos que a terra há de comer!
- de mãos dadas eles se afastaram de costas para mim
Para onde?
Pouco me importa essa era cena final e eu tinha pressa em sair do cinema

2012/06/25

O ÚLTIMO ADEUS

(ou como pensam os ratos)

Visionário como um rato de bordo
Que vê o mar encrespar
O horizonte escurecer
O céu tomar cor de chumbo
Ao perceber que o balanço do mar está mais forte
Que carga já saiu do lugar mais vezes que o normal.
Preso a um pedaço de pau
Salto no mar, e
De longe vejo o navio afundar.
E equilibrado em tão frágil prancha
Penso:

-Vão-se os anéis e ficam os dedos.

SÃO JOÃO


As estrelas atrevidas brilham no céu
Aqui na terra
Nada de soltar balões

2012/06/21

VELHO SURDO



Meu capitão, antes esses gatos miavam, agora só abrem a boca...

ESPECTRO



A assombração sempre repetia assim
Sou uma alma penada
Um fantasma cansado de arrastar correntes
Não quero mais atravessar paredes
Tudo o que quero
É uma vela, uma oração e partir
Para o meu descanso final
E sumia mergulhando no assoalho velho e carcomido
...a cortina esvoaçava na janela

INFELIZ



Bateu a mão no balcão e gritou:
- Me de dá uma dose
foi servido
bebeu de um gole só
saiu mais triste que entrou
pobre infeliz
só tinha dinheiro para uma dose
teria de encarar a realidade sóbrio

CÁLCULO


Pensou muito antes de pular do décimo andar
Olhou pela janela
Calculou as possibilidades
E por fim desceu de elevador
Ia dar outra chance à vida

MISÉRIA


Tamanha miséria nunca vi
Em lugar de uma mão pedindo
Um cotoco trêmulo e frágil
Que mal segurava uma moeda

GAVETAS



Suspirou profundamente
                                        - Triste meu porvir...
Ao constatar que havia
Nas gavetas mais passado que futuro



COISAS INTERNAS QUE NINGUÉM VÊ


Todos comentavam a sua calma
Ninguém sabia de suas tempestades interna
Até aquele dia fatídico

2012/06/18

BILHETE


cuide bem da mamãe
vou até ali pular da ponte
acho que não volto mais

LIXO


Na lata de lixo
até que havia o que comer
                      o que vestir
                      o que calçar
mas nada ali supriria a sua falta de dignidade

MORTE


O triste não é morte dos entes queridos
Mas a morte lenta deles
Em nossas memórias
Assim sendo, eles acabam por
Morrer duas vezes

2012/06/12

MÚSICA


Chet Baker toca
                     (no escuro)
E
                     (no escuro)
Tudo acaba num baque surdo

MARESIA


Um cheio de mar invade a minha casa
Mas essa maresia é outra
Vem da barraca de peixes
Da feira lá na esquina

2012/06/06

CHUVA N°2

O que me consola
Nos dias de chuva
É ver os pombos
Encharcados...


HONESTIDADE



Sempre fiquei ao lado dos fracos
Defendi os oprimidos
Nunca beijei a bota dos poderosos
Jamais me aliei ao mais forte
Sempre fui fiel à verdade
Essa é então a minha história
Agora que você já sabe
Tudo isso sobre mim
Seja bondoso
E me pague um café com pão!

2012/06/05

TORTURA



A mesa cheia
O estômago vazio
E as mãos amaradas às costas

CHUVA



A chuva não lava
o cinza do céu
A chuva leva
O que vem pela frente
Leva casas
Leva árvores
Leva os bens
Dos que nada tem

2012/06/04

TRISTE CENA



O palhaço triste
Num banco
Alimenta pombos
O mestre de cerimônias feliz
Assim engorda gatos

homem criado por mãe e irmã é assim



homem criado por mãe e irmã é assim
delicado
educado
entende de ciclo menstrual
sempre carrega um absorvente no bolso
anda com passos curtos e nervosos
(e nas pontas dos pés)
tem a mão hidratada
unhas aparadas e limpas
lenço sempre perfumado
só bebe licor de menta
sensível
chora à toa...

2012/05/31

GATO

Na lua nova
Um gato preto
Se alimenta
Na via-láctea

CIGARRO

Pela manhã acendi meu cigarro
Que doce a sensação de liberdade
Ninguém à minha volta
Expirei a fumaça
Doce e azul
E meu dia começou feliz

2012/05/25

PONTE


Não atravesso essa ponte
Pois já vi aqui dessa margem
Que a paisagem lá é igual a daqui

CARINHO DEMAIS


Quando ele saiu da sala
Ela cheirou tão desesperadamente o casaco dele
Que acabou com dois botões dentro do nariz

2012/05/23

MOCINHA ROMÂNICA

Naquele momento
O chão estremeceu
Ela imaginou o clímax
Mas era mesmo um terremoto

CAFÉ


Na mesa preta
Sob um céu azul
Numa xícara branca
Meu fumegante café
Lá fora o dia ficava em stand-by