2010/08/31

SOBRE ONTEM À NOITE NO CAFÉ DA MANHÃ DE HOJE

Agora se pode dizer que aniversaria duas vezes por ano.
Conta-se o dia em que nasceu, aquele da certidão de nascimento, e o dia em que
virou um Homem, com H maiúsculo, ontem
.




Via-se a diferença no seu olhar logo pela manhã, muito mais natural que o seu normal, fingia que ainda estava com sono, fingia que não entendia o que se falava com ele, culpa do sono, repetia.

Mas, macaco-velho que sou , digo, estou, percebi algo de muito raro nele, um olhar não mais distraído, mas, como dizer, um olhar em que tudo era-lhe novo e velho ao mesmo tempo, um olhar em que faltava-lhe a ingenuidade de até ontem.

Olhei-o nos olhos, desviou, ai tem! Falei mais para ele que para mim – claro – o quê? Perguntou-me como que por acaso, - sim senhor, ai atem – repeti mastigando uma torrada.

- Você está falando comigo? – perguntou com casualidade cínica.

- E há mais alguém à mesa? – respondi procurando outras pessoas tomando café conosco.

Sem me encarar voltou à sua xícara de chocolate. Bebia o chocolate, mas pela sua ausência, poderia estar sorvendo cicuta, veneno ou aço derretido.

- E então?

- Então o quê?

Aquilo estava começando a me irritar, e vejam, eu só estava acordado a bem poucos minutos...

- Dormiu tarde ontem?

- Hum?

- Dormiu tarde ontem? Inquiri fortemente, enquanto passava manteiga na torrada.

- Nem reparei...

- Estranho o que não falta nessa casa são relógios. Falava e apontava os relógios, um sobre a lareira, outro na varanda, mais um na piscina – nem se perguntem a razão disso – outro ali na cozinha, sem contar o seu relógio de pulso, e aquele que aparece a cada cinco minutos na tela da TV.

- Hu-hu. – resmungou.

Deixei o silêncio pousar entre nós enquanto preparava outra torrada e me servia de outra xícara de café.

- Me passa a manteiga! Enfim quebrei o silêncio.

- O quê! Assustou-se.

- A man-tei-ga. Aquele pote vermelho com uma pasta gordurosa e amarela dentro.

- Eu sei o que é uma manteiga.

- Então, pode fazer-me o favor de passá-la para mim. Fui grosso e cínico. Mas estava me divertindo com aquilo.

Passou-me a manteiga, lentamente lambuzei a torrada e bebi meu café. Ele não me olhava, digo até que seus olhos estavam tentando perfurar a mesa, tão fixo olhava para baixo.

Mas estava gostando de ser tão cruel assim.

Por mim o café se estenderia por horas a fio, mas eu sabia que teria de dar um fim ao drama do moleque. Olhava para ele e segurava a risada que já aflorava em meus lábios, mas ainda havia um pedaço de bolo na mesa, e achei que seria uma dose a mais de crueldade se eu estendesse nosso breakfast mais um pouco – ok, arderei no inferno por isso, mas estava muito divertida a agonia dele.

Comi o bolo, de chocolate, lentamente, catando cada migalha, len-ta-men-te, fazendo bolinho, juntado, somando os pedacinhos e fazendo um pedaço maior e levando à boca.

O coitado já começava a transpirar, gotas brotavam em sua testa. Por dentro minhas tripas se enrolavam de tanto engolir o riso.

Como de hábito, ao acabar de comer, bati com as mãos na mesa e disse:

- Vou fumar e levar comida pras galinhas.

Ele respirou aliviado, foi quando de chofre perguntei-lhe:

- Afinal, ontem à noite rolou, ou não rolou?

- Hã? – tossiu, engasgou-se com aquela torrada já mole e fria.

- Comeu ou não comeu?

2010/08/24

MUITO ESTRANHO



Não me lembro de muita coisa. Gente indo e vindo, pessoas estranhas, outras conhecidas que me cumprimentavam, outras que eu pensava em conhecer. Imagens, capas de revistas, manchetes de jornais, tudo muito vago, quase um borrão. Musicas que eu ouvia sem atenção. No ar aromas e cheiros algumas vezes conhecidos, outros não. Vozes, muitas vozes que não me diziam nada.

Acho que não prestei muita atenção quando me chamaram, aliás, se me perguntassem meu nome àquela hora - qual era meu nome? - teria que procurar na minha carteira de documentos... Tem horas que nem sei se me lembro a que espécie pertenço... Nem a que reino, se animal, vegetal ou mineral, embora algumas vezes me sinta um pé de alface, outra um peso de papel. Se me sentisse uma sombra ou ectoplasma, onde me classificaria? Quando ando dormindo, devo ser rotulado como um zumbi ou somente sonâmbulo?

Mesmo agora diante de vocês, não sei se estou realmente aqui ou se estou em casa sonhando dopado por algum sonífero, num bar bêbado com o Vadinho, ou sendo rascunhado por algum escritor medíocre.

Acordei uma noite e em vez de ver meu quarto – ou o que penso que deveria ser meu quarto – me vi perdido em um imenso branco, branco sem fim, branco infinito e claustrofóbico, um branco sem saída, um branco a ser preenchido ou rasgado feito papel – entende o que quero dizer? - assustado, corri de volta onde deveria estar a minha cama, cobri-me, fechei os olhos e trêmulo pedi a Deus para dormir outra vez ou acordar logo. Pela manhã tudo havia voltado ao normal, meu quarto estava lá com meu velho guarda-roupa, minha cômoda, meus livros – a única constante, somente alterando estilo e autores - espalhados pelo chão, o espelho trincado onde me vejo e me reconheço cada vez menos todas as manhãs, tudo estava lá, mas eu não acreditava mais na existência dele, duvidando cada vez mais de mim refletido naquele espelho.

Por favor, não me perguntem há quanto tempo venho passando por isso. Não sei. Não tenho um calendário marcando isso, nenhuma agenda marcando dia e hora. Mas vendo em perspectiva..., acho que minha vida foi sempre assim... Não tenho memórias de infância, nenhuma lembrança de escola, festas de aniversário, a única memória, quase uma foto, não, uma pintura impressionista!, é uma mesa de bar onde eu e –será essa uma memória plantada? – e Vadinho, não me perguntem quem é ele, somente o nome me vem à mente – bebendo até cair. A isso se reduz minhas lembranças, e tenho cá um fígado perfeito que desmente qualquer vício em álcool. Nome de pai e mãe? Claro, só um segundo para eu pegar meus documentos na carteira...

Não é possível! Os senhores hão de concordar comigo, isso não é normal, onde já se viu alguém procurar nome de pai e mãe nos documentos, essa é uma resposta automática, todo mundo sabe o nome dos pais, ou pelo menos da mãe...

Cada vez mais vejo que minha vida é uma fraude, uma mentira, uma ficção, Mas é claro que não sou e nem estou louco. Sou uma pessoa normal num mundo cada minuto mais anormal, mais confuso, mais bizarro. Vejam os senhores, meu dia começou, ou pelo menos me tornei ciente dele, com essa conversa:

”Não me lembro de muita coisa. Gente indo e vindo, pessoas estranhas, outras conhecidas que me cumprimentavam, outras que eu pensava em conhecer. Imagens, capas de revistas, manchetes de jornais. Musicas que eu ouvia sem atenção. No ar aromas e cheiros. Vozes, muitas vozes.”

Podem os senhores me explicar a razão de eu estar aqui diante de vocês prestando esse depoimento? O que eu fiz? Qual é a acusação? Cometi algum crime? Sou acusado de quê. Por quem? Como vim para aqui? Como? Os senhores não sabem de nada? Não foram os senhores que me chamaram aqui? Tão-pouco sabem como surgi aqui? Sim aceito um copo d’água.
Vejam senhores o que é a minha vida...

Onde trabalho? À essa altura creio que não trabalho em lugar nenhum, pois creio, nenhum patrão seria tão paciente para com minha situação, creio também ser solteiro e nem ter filhos, cachorro, gatos, papagaio ou mesmo baratas correndo pelas paredes de minha casa, apartamento, toca, buraco, ou seja, lá qual for o lugar que habito. Respondam-me os senhores, como lhes pareço? Sou branco, negro, asiático, loiro, careca? Alto? Baixo, gordo, magro, corcunda, gambeta?

A cada dia amanheço diferente do dia anterior, minhas roupas nunca cabem em mim quando um novo dia amanhece; meus pés vivem machucados, pois cada novo dia é um calo novo, um sapato com um número diferente do dia anterior. Essa é a razão de meu espelho estar quebrado, pois minha raiva matinal é dirigida a ele a cada novo amanhecer, a cada nova estranheza, a cada novo desconhecimento de meu novo eu.

Os senhores acham que sou um caso terminal de esquizofrenia? Por favor, antes de emitirem um juízo de valor sobre mim, tragam um espelho aqui. Agora peço que cada um de vocês se olhe nesse reflexo e me digam se são ainda os mesmo que estão me interrogando desde que cheguei aqui? Por favor, contenham seu espanto, é assim que me sinto, pois pela vossa reação vejo que já não mais se reconhecem, não são mais, pelo menos no aspecto físico, as mesmas pessoas.

Como? O senhor era uma vendedora de batatas ontem? Parabéns, pelo menos hoje o senhor é um delegado de polícia, já eu acordo o mesmo – ou outro, tanto faz – estranho todo santo dia... Nada muda na minha mutação diária.

Mas, agora junto aos senhores, me sinto mais aliviado. Vejo que a minha triste condição não é mais única, embora não nos reconheçamos mais amanhã, saberemos em nosso íntimo, que não estamos sós nesse estranho mundo.

Que Deus faria isso a seus filhos?


2010/08/19

O SORRISO


Chovia quando cheguei à rua, o seu sorriso ainda estava marcado em minhas retinas, e sua voz ecoava em minha cabeça. A água da chuva entrava pelo colarinho da camisa e me causava calafrios.

Seria uma longa caminhada até minha casa, longa e úmida caminhada. Apertava o passo para chegar logo. A escuridão não me abrigava, somente me escondia.

Os relâmpagos estendiam minha sombra nas ruas molhadas, emprestando a mim um aspecto monstruoso e assustador. Ri comigo mesmo - assustador e monstruoso...

Seu sorriso, seu sorriso, eu poderia ainda vê-lo mesmo com os olhos fechados, com a rua escura, mesmo com a chuva molhando meus olhos, seu sorriso...

Seu sorriso foi a primeira coisa que surgiu à porta quando toquei a campainha, aqueles dentes brancos e perfeitos, como se fossem um colar de pérolas... Seu sorriso desarmava qualquer pessoa, qualquer maldade, seu sorriso seria capaz de apaziguar até essa tempestade...

Quando toquei a campainha de seu apartamento estava preparado para tudo, para qualquer circunstância, estava com o coração duro, e nada, nada haveria de demover-me de meu intento.

Toquei apenas uma vez, - dim-dom - uma única vez e como se estivesse a me esperar ela logo atendeu, sorrindo, olhando-me nos olhos, e aquele olhar me desarmou. Eu não estava preparado para ser desarmado, eu estava pronto para tudo, menos para ser desarmado pelo seu sorriso.

Fiquei parado na entrada, não sorria, só olhava-a bem dentro de seus olhos, eu queimava por dentro, eu ardia de ódio por mim, não estava preparado para ser desarmado por ela, não daquele jeito, não com aquele seu sorriso.

- Seu frouxo. – Ouvi-me dizer para mim mesmo – com asco.

Me senti fraco, tão fraco como agora me sinto encharcado.

Então senti medo, medo de não ser tão forte como esperava, como contava ser. Fraquejei quando ela sorriu, fraquejei e me execrei por isso. Me odiei quando senti a fraqueza chegar às minhas pernas - pensei que fosse desfalecer - sucumbir, cair no chão.

Penso que por um segundo eu estremeci, perdi o ar, tentei me apoiar no batente da porta, mas o que consegui foi – horrorizo-me agora em lembrar! - pegar seu pescoço, branco, fino, frágil, tão frágil, que partiu-se entre meus dedos...

Mesmo agora enquanto fujo pelas ruas iluminadas pelos relâmpagos, ainda ouço sua voz ecoando aqui dentro...

Seu grito, impotente, seus olhos virando para cima, seu sorriso sumindo – quase com se fosse fumaça - seu corpo caindo, a chuva me molhando, os relâmpagos, os buracos das ruas cheios d’água, o caminho pra casa que não consigo encontrar, seu sorriso parece estar se transformando num esgar, seu sorriso perdendo a beleza, a graça, tornado-se um riso de escárnio, não consigo mais reconhecer essas ruas, sua voz na minha cabeça dita-me outras direções a tomar, sua voz gargalha aqui dentro da minha cabeça e não me deixa pensar, não sei mais para onde estou indo, se ao menos essa chuva parasse, se, se, se...

A CARTA

Sentado em sua poltrona em frente à escrivaninha Oswaldo abre um envelope, vê curioso o carimbo do selo, tira de dentro uma folha, uma única e simples folha, nela lê:

“Cheguei a Veneza ontem à noite, a chuva continua e faz frio.
Sei que você deve estar se perguntando por que enviei uma carta em vez de um e-mail, é que assim aumento sua curiosidade, sem o imediatismo do correio eletrônico. Quantos dias essa carta demorou a chegar ai? Uma semana? Dez dias, quinze dias? Saiba que enquanto você lê essas linhas já estarei em outro país. França? Espanha? Você só saberá na próxima carta, se próxima carta houver...
Você sentiu a textura do papel, as linhas, a cor da tinta? Como foi a experiência de desdobrar uma folha de papel? Você abriu ou rasgou o envelope? Reconheceu meu perfume nele? Escrevi essa carta fumando, agora posso fumar em paz sem você me recriminando, fumo, trago e solto longamente essa deliciosa fumaça azulada...
Pense nisso tudo e lembre-se que nunca mais vai me ver outra vez. Talvez eu te escreva, talvez não.
Até nunca mais.
Isaura.”

Oswaldo diligentemente amassou a folha de papel, fez uma bola e a deixou no tampo da mesa, depois gritou:

- Joana!

Joana entrou na sala limpando as mãos no avental sujo de comida. Calmamente ela dirigiu-se à secretária, pegou a carta amassada que era refletida no vidro do portar-retrato de Isaura, e olhando para Oswaldo, leu e releu a missiva, depois, guardou-a no do bolso da calça.

Antes de sair da sala perguntou:

- Oswaldo...

- Não diga nada, saia daqui e faça o que deve ser feito – ordenou.

- Vou terminar o almoço.

- Já disse faça o que dever ser feito – respondeu despedindo-se da empregada.

Um cigarro depois Oswaldo pega em outra gaveta um bloco de papel, uma caneta de tinta cor roxa, e expirando a fumaça da última tragada, começa a escrever com a mão esquerda uma carta.

Serve-se de uma dose de conhaque Napoleon, ri e começa a escrever:

“Oswaldo, cheguei a Paris, estou tomando um café, fumando, lendo Hemingway, e comendo um croissant, espero que você veja as manchas de gorduras e a casquinha de folhado - que faço questão de não limpar do papel.
Guarde com carinho essa carta, pois será a última, estou resolvida a cortar de vez você de minha vida.
Chega, seja feliz como vivia me dizendo que seria quando eu me fosse. “Espero que a Joana te trate bem! – Embora duvide muito, pois ela segredou-me que o dia que eu saísse de casa ela se demitiria.”

Oswaldo leu a carta duas vezes, tomou outro gole de conhaque, pegou um croissant e o comeu gulosamente fazendo questão de manchar o papel. Olhou para a estante e cuspiu na cara de Hemingway na capa de um livro.

- Joana! – Gritou enquanto colava as abas do envelope. Depois que alimentar a Isaura no porão, mande essa carta pro Wilson, ele embarca hoje à noite.

2010/08/18

CENAS FORTES

I

Frederick von Fitzgerald entra em casa, cinqüenta e dois avos de segundos depois sua mulher Mary Ann Helen Fitzgerald pergunta o que ele quer para o jantar.

Frederick von Fitzgerald lentamente começa a colocar sua pasta na poltrona, e antes que ele soltasse a alça, sua mulher Mary Ann Helen Fitzgerald pergunta-lhe pela segunda vez o que ele deseja para o jantar. Frederick von Fitzgerald enfim deixa a pasta sobre a poltrona, olha para a mulher que, tomando fôlego outra vez, pergunta-lhe sobre o que ele gostaria de comer no jantar.

Frederick von Fitzgerald começa a tirar o nó da gravata e dirige-se à sua esposa Mary Ann Helen Fitzgerald. Enquanto ouve-lhe a voz perguntando que deseja para o jantar.

Mary Ann Helen Fitzgerald mal consegue perguntar pela quinta vez o que Frederick von Fitzgerald deseja jantar quando a gravata envolve-lhe o pescoço.

Mary Ann Helen Fitzgerald balbucia algo, Frederick von Fitzgerald não entende, mas intui que ela ainda quer saber o que ele quer jantar essa noite.

II

Frederick von Fitzgerald senta-se à cabeceira da mesa, como faz a vinte sete anos, dez meses, quatro semanas e cinco dias, ele numa ponta e Mary Ann Helen Fitzgerald na outra.

Mary Ann Helen Fitzgerald sorri-lhe e pergunta como foi seu dia, Frederick von Fitzgerald suspira, mastiga o hambúrguer com fritas que Mary Ann Helen Fitzgerald serve-lhe a vinte sete anos, dez meses, quatro semanas e cinco dias.

Frederick von Fitzgerald limpa o sangue de Mary Ann Helen Fitzgerald no guardanapo, joga o hambúrguer e as fritas no lixo, liga o gás, acende uma vela e sai para fumar.

- Normal – responde Frederick von Fitzgerald mastigando sem vontade o hambúrguer e as fritas, agora frias e engorduradas.

- Nada de anormal no escritório hoje? – Pergunta Mary Ann Helen Fitzgerald, enquanto mastiga prazerosamente seu hambúrguer de tofú – ela não come fritas, muita gordura poliinsaturada!

- Nada de anormal, nada! - Grita Frederick von Fitzgerald enquanto coloca a cabeça de Mary Ann Helen Fitzgerald no forno e liga o gás, e põe para tocar um CD de Cauby Peixoto - Frederick von Fitzgerald odeia Cauby Peixoto e Mary Ann Helen Fitzgerald.
- Cafézinho? – Oferece Mary Ann Helen Fitzgerald recolhendo as louças e os talheres do jantar.
- Não! Responde Frederick von Fitzgerald, cortando os pulsos.

III

Na sala de estar em frente à TV, Frederick von Fitzgerald tentar se inteirar das notícias do dia, esforçando-se para não ouvir a voz de Mary Ann Helen Fitzgerald que insiste em contar como seu dia foi ditoso e emocionante, contando com riqueza de detalhes as compras no supermercado, a conversa com as amigas, o trabalho que deu estender o edredom no varal, sobre a lâmpada da cozinha que queimou, e que ela (Mary Ann Helen Fitzgerald) quase caiu de cima da mesa...

Na TV o repórter mostrava um corpo estirado no chão da cozinha de uma casa de classe média. Frederick von Fitzgerald sorriu ao reconhecer ali o cadáver de Mary Ann Helen Fitzgerald.

- Veja Mary Ann, você morreu! - Gritou numa incontida alegria Frederick von Fitzgerald.

- Não seja bobo Frederick, eu estou viva aqui na cozinha lavando a louça...

Frederick von Fitzgerald, engoliu a alegria junto com o café sem açúcar, e chateado mudou de canal.

IV

- Boa noite Frederick, até amanhã. – Sussurrou-lhe Mary Ann Helen Fitzgerald.

- Não se eu puder evitar. – Rosnou-lhe Frederick von Fitzgerald já quase dormindo e sonhando com o crime perfeito.

OVO

ovo
gema cercada por clara
clara dentro duma casca
como algo assim tão simples
torna-se tão transcendental?
ovo
um mistério
uma crença
um dogma
cegamente crêem
não discutem com não-iniciados
ovo
antes um alimento simples
básico
natural
agora
com seguidores
herméticos
que se reúnem em câmaras escuras
em labirintos sem ariadnes
ovo
que precedia o pinto
ovo
que precedia o frango
ovo
que se quebrava
fritava
ovo
ovo
ovo
os claricianos morrerão de fome
ante a terrível
hipótese de se devorar um
ovo
seguem em busca da explicação
do entendimento
atrás de luzes
de verdades
iluminação
ovo
cuja a única confusão era
explicá-lo
um palíndromo
pobre ovo
de comida de pobre
a mote de intelectuais
ovo
fruto da humilde galinha
ovo
embala noites de queijo, vinho e
discussões

Texto carinhosamente dedicado aos Claricianos:
Rita,
Ana Maria,
Alexandre Costa,
Marilda e
Geraldo


AMOR GRANDE

um poema mirmecológico

sois tão grande aos meus olhos
tua presença apaga o sol
eclipsa o céu
e teus olhos tornam-se para mim
duas luas
tu és meu continente
onde, explorador que sou
caminho e me perco
nesse mundo
imenso
que és tu
beijo cada pedaço de tua pele
entro em cada reentrância
e perdido em ti
esqueço de mim
quando chegas
a terra treme
eu estremeço
meu desejo por ti é enorme
mas ainda assim
sim, tu és maior que ele
tu és minha maya
e minha mara
sonho e pesadelo
sofro por desejar-te tanto e
dessa forma
sofro pela ironia de nosso amor
sofro
sofro e sofro
e na dor indago-me:
por que uma formiga
(tão minúscula e de coração tão grande)
se apaixonaria assim
por uma elefanta?

DETETIVE

Tudo começou assim:

- Detalhes! Detalhes, minúcias, ca-da de-ta-lhe sór-di-do, quero ver o vermelho do sangue correndo pelas suas palavras!

- Sorvi – não – engoli de uma só vez o “sórdido” vermelho do “sórdido” vinho que ele me serviu. Um arrepio de arrependimento e nojo subiu-me pela espinha e arrepiou-me os cabelos da nuca, fiquei triste, houve um tempo em que todos os meus cabelos se arrepiavam... Tossi, fiz um certo charme – quis tornar cara as minhas informações. Mas da parte de meu interlocutor, insensível, ouvi somente:

- Vamos, tempo é dinheiro e não espere que eu lhe ofereça outra taça de vinho!
Agradecendo a sorte de não ser envenenado outra vez com aquele tóxico rubro, comecei a falar.

- Tudo o que sabemos é que ele embarcou numa terça-feira, saiu do escritório na segunda à noite, deu “boa-noite e até amanhã” a todos, passou no bar tomou a cervejinha de sempre, pendurou-a como sempre e foi para casa.

- Até aí temos total conhecimento, o quê você tem de novidade para mim?

Olhei para o relógio que continuava mostrando a mesma hora de quinze dias atrás, na minha frente a taça com aquilo rubro dentro – mais da metade – , pigarreei sentindo que havia engolido uma das minhas amígdalas, e disse:

- Parece-me que ele fugiu para o Mato-Grosso.

- O que aquele duro foi fazer em Mato Grosso? Por acaso ele tem família lá? Amigos? Alguém que possa emprestar-lhe dinheiro para me pagar o que deve?

Duvido muito que ele fosse buscar dinheiro para pagar alguma coisa a alguém, pensei cá com meus botões – embora estivesse usando uma blusa com zíper - mas nada falei, afinal, estava sendo pago para encontrá-lo e na minha profissão, quanto menos informações, mais dias de trabalho é mais dinheiro.

- Estou vendo isso. Nesse momento meus auxiliares – entendam uma certa mocinha de um Call-Center que ando cantando está vendo isso para mim. Minto-lhe que sou agente secreto e sempre a presenteio com minha coleção de livros de espionagem que minha senhoria ameaça jogar fora.

– Muito em breve devo ter uma resposta concreta para lhe dar.

- Como ninguém percebeu que ele estava fugindo? Quero que você confirme onde ele está até às cinco horas de hoje.

Por sorte meu relógio estava quebrado, senão eu teria caído fulminado ali mesmo, pois meu cebolão marcava exatamente dezesseis e cinqüenta e cinco com o ponteiro dos segundos correndo desenfreadamente. Contava com o dinheiro desse serviço para dar entrada num novo...

- Sim senhor, vou sair agora mesmo...

Já me levantava da mesa quando fui bruscamente segurado pelas gigantescas mãos de primata de meu contratador.

- Não pense que sou rico! Beba o vinho. Não gosto de desperdiçar nada. Beba!

Fiz das tripas coração, e encarando aqueles caninos de carnívoro emborquei o resto daquele veneno vermelho. Sabia que atrasaria meu trabalho, pois o líquido descia fazendo estrago. Senti uma câimbra violenta no fígado, dois espasmos no estômago e minha visão ficou turva por mais de quarenta minutos. Se meu empregador fazia isso a si mesmo, o que faria com o devedor foragido? Mas isso não era problema meu, me pagam e eu procuro, sejam gatinhos desaparecidos, mulheres adúlteras com amantes, documentos perdidos, me pagam e eu encontro. Sempre trabalho durante o dia, por uma questão genética (conheço um sujeito que diz: Genético de família) sofro de cegueira noturna, o que atrapalha muito em minha profissão, por isso tenho de aproveitar bem a luz do dia.

Saí à rua, mais tateando que enxergando e pensando em ir para casa, que não posso chamar de escritório nem de minha, pois vivo de aluguel onde minha senhoria exercita seu mau-hábito de viver me cobrando o aluguel quinze minutos após o vencimento para ter a certeza de que será a primeira a ver a cor do meu dinheiro.

Não me envergonho do que faço – da profissão que exerço nem da menina do call-center – mas se tem alguma coisa que me dá um nó nas tripas é procurar devedores, sou sensível e acabo me envolvendo emocionalmente nesses casos. Passo na relojoaria para ver as horas e aproveito para namorar o modelo que um dia - se tiver sorte ou um bom caso, o que vier primeiro – hei de comprar. Ele é de plástico, azul e digital com apenas dois pinos para acertar as horas, o dia do mês, da semana e o ano. Com os olhos marejados, não sei se de desejo por ele ou por causa do vinho, segui em frente, afinal, ainda tinha que trabalhar. No caminho passei num bar para pedir uma garrafa de água e ir ao banheiro, o vinho continuava a me torturar. Quando devolvi a chave do mictório perguntei ao português se poderia usar seu telefone, ele disse “não”, voltei á rua.

- A caça continua! Falei de mim para mim, tentando me encorajar, já que ficaria muito mal dar tapinhas nas minhas costas, três quarteirões depois me lembrei que tinha pago pela garrafa de água e a havia esquecido por lá, voltei ao bar, e ao perguntar pela minha água o português falou alguma coisa em sua língua que eu não entendi direito – e nesse momento lembrei que meus poucos amigos, dois ou três, dependendo do dia do mês, vivem me dizendo que o português é a minha segunda língua – saí de lá com sede, a língua parecendo uma lixa de parede, o vinho ainda cobrando seu tributo, e chateado, pois havia gasto um dinheiro que não seria reembolsado, mas lado bom de tudo isso era que com essa caminhada a minha visão estava começando a desembaçar.

Fui ao escritório de um colega para ver se lá poderia usar seu telefone, estava na hora do café da minha “namorada” do call-center, precisava saber se ela havia conseguido alguma coisa.

Bom amigo. Com o juramento – mão sobre a Bíblia, pois é um católico fanático e conhecedor de toda a história das cruzadas – de que lhe pagaria as cervejas que lhe devia e mais os sanduíches de mortadela – minhas únicas refeições nos últimos meses – ele me permitiu vinte segundos de ligação. Cronometrados em “seu” relógio, pois ele sabe que os segundos do meu não são confiáveis...

Mas valeu, ela me mandou procurar o judeu da loja de penhores em frente ao açougue ao lado do shopping da praça central. Era só perguntar a ele qual era o item mais bizarro dos últimos dias.

Estava ficando muito estranho esse serviço, quase se parecia com os livros que eu a estava presenteando.

Dez minutos, eu acho que foram dez, mas poderia ter sido vinte ou uma hora, afinal vocês já estão fartos dos meus problemas cronológicos criados por esse relógio quebrado.

Com a visão agora em ordem entrei na lojinha de penhor. Dizem que o universo é vasto, mas os que repetem isso nunca entraram numa lojinha de penhor, nunca. Lá havia “de um tudo”, roupas, sapatos, próteses de todos os tipos, pernas de pau, olhos de vidro, e ah!, relógios de pulso, de parede, despertadores, de bolso, móveis, livros, muitos livros, enciclopédias, romances, livros de medicina, técnicos em eletrônica e uns livros policiais em que reconheci meu nome rabiscado nas segundas páginas. Depois vou ter que perguntar para minha “namorada” como eles foram parar lá, pois sem que ela soubesse eu a presenteava com o intuito de salvá-los da sanha louca de minha senhoria, pois no meu íntimo eu pressentia que viria o dia em que ela os tomaria como reféns para o caso de um atraso maior de meu aluguel.

- Mais uma rasteira da vida! – resmunguei.

O velho proprietário vendo-me folhear emocionado os tomos perguntou-me se estava interessado em comprá-los.

- Outra vez não, obrigado!

Aproveitei o gancho para entabular conversa, perguntei-lhe sobre o preço dos relógios – estavam mais baratos ainda na relojoaria – e sobre alguma coisa estranha penhorada nos últimos dias. Ele empalideceu, eu me excitei, senti que estava perto de alguma coisa grande, um trunfo estava ali estampado em seu rosto enrugado feito um pergaminho amarelado. Olhei-o com firmeza, senti que fraquejou – meu segundo trunfo era somente outra câimbra no fígado, o vinho agora estava jogando a meu favor.

Mostrei a ele minha funcional comprada na Praça da Sé, e que com a pouca luz do ambiente não reconheceu a falsificação nem a foto, que não era minha.

- Vamos, conte-me! Quase gritei com a outra câimbra, e nesse momento percebi que para continuar nessa profissão precisaria de um bom estoque desse maldito vinho. Ele “afinou”, hesitante, pegou-me pelo braço e levou-me ao fundo ainda mais escuro daquele mafuá. Não nego que senti um receio misturado com o mais primitivo pavor subir-me pelas pernas quando vi ratos nas minhas calças, logo espantados pelas palavras gritadas em hebraico pela velha múmia. Lá nos intestinos da loja vi estocado objetos que o velho jamais exporia nas vitrines, eram caixões recém usados, ossos humanos, um maravilhoso carrilhão de laca preta “fun-ci-o-nan-do” ainda. Aquele ancestral de velhas múmias ainda segurando meu braço me puxava para um cantinho ainda mais escuro, e numa parede descascada, que era só tijolo com dois ou menos centímetros quadrados de reboco mostrou-me o que havia sido penhorado!

***

Já na rua, esbaforido, branco feito cera, tremendo, completamente descrente da humanidade, abanava-me a procura de ar. Levei muito tempo para me recuperar, tentava me recompor, tentava olhar para o meu próximo sem asco, sem nojo, sem vergonha, mas não conseguia, nunca mais conseguiria, nunca mais eu seria o mesmo homem. Ali naquela loja de penhor vi a que ponto um homem pode chegar. Trôpego, me arrastei até um restaurante, lá entrei, almocei umas lagostas com champanhe Cristal, bebi do melhor vinho, passei na relojoaria, comprei um Patek Phillipe, pus em meu pulso, e tomando um taxi segui em direção ao aeroporto, onde comprei uma passagem, em cash, para Mato-Grosso, na certeza de nunca mais voltar. Não terminaria meu caso, bom até aí não haveria qualquer problema, pois não me lembro de ter encerrado nenhum antes. Deixei na caixa do correio uma carta me despedindo de minha senhoria com uma boa soma de dinheiro para compensar os eternos atrasos nos alugueres e fui-me incompleto e coberto de infâmia. Para minha namorada, nada, ela que fosse feliz com o dinheiro ganho com meus livros policiais.

***

Enquanto olhava pela janela do avião, lembrava e assim lembraria para o resto da minha vida do diálogo que tive com o velho, e o que havia visto pendurado no prego daquela parede.

- Isso é o que estou pensando que é? – Gaguejava e temia enquanto perguntava o óbvio.
- Sim, é. - Riu o velho. E apontando com aquele dedo fino, branco, encarquilhado de unhas imundas de tanto contar dinheiro completou:

- Veja, há outros pregos, estou aberto a negócios.

- Então vamos conversar. – Nesse momento senti que havia perdido a minha alma.

Após alguns balanços que fizeram os passageiros gritarem e vomitarem, desci no aeroporto, tomei outro taxi me e perdi na cidade.

Hoje tenho dinheiro, um relógio que não atrasa nem adianta, mulheres que só encontro à noite, pois morro de vergonha de dizer o que penhorei, como o sujeito que procurava para meu empregador, que à essas horas já deve ter contratado um detetive para me encontrar, e que também penhorei meu cú para fugir daquela vida de merda que levava...

Dúvidas, dúvidas...


PENSAMENTO DO DIA - SOBRE TRANSPORTE COLETIVO


A MEMÓRIA É UMA DROGA

A memória é uma droga mesmo!

Ouço a Billie, meu clichê, meu lugar comum. Tem um sujeito que desde que o conheci, aos meus dezenove anos, vivia repetindo: - “Você é responsável por quem cativa...” – Por causa dele, passei a ver Saint-Exupéry com certo aborrecimento, outros vivem repetindo feito papagaios: - “O Universo conspira a seu favor!” Ah! Maldita New Age em que vivemos... -“ Maktub!” Berram os leitores de.., vamos deixar isso prá lá!, e segue por aí os lugares-comuns de cada pessoa. Assim sendo não considero ouvir Billie nenhum elitismo, nem nada de mais, é só mais um simples clichê, que bem me serviu para começar o primeiro parágrafo.

Não me lembro bem onde estava quando ouvi as primeiras frases de Billie, mas devia ser dentro do universo de meu apartamento, pois duvido muito que fosse ouvi-la nas ruas. E aquela voz chorosa, imediatamente, remeteu-me ao passado, minha adolescência. Minha juventude, fase penosa da vida, quando nada sabemos, mas mantemos a obstinação dos que se fartam de tanto saber, das espinhas na cara, dos amores eternos, intempestivos e passageiros. Pulamos de amores assim como os beija-flores pulam de flor em flor, somos fúteis, inconseqüentes, superficiais e tolos a não poder mais – mas não se enganem, sofremos.

Pois Billie cantava e as lembranças, como pedras, desmoronaram sobre mim!

Com os versos de Billie as lembranças me vêm fragmentadas, cenas esparsas e sem ordem cronológica, começa assim:

“Estou no banco de trás dum carro, quando vou descer ela me puxa o braço e me beija, beija na boca, um beijo quente, gostoso, bom, um beijo que esperei por muito, muito tempo, e que me veio assim de surpresa, quando já não mais esperava, quando tudo o que seria, se chegasse a ser, seria um beijo no rosto seguido de um: - Feliz Nataaaaaaalllll!

Por uns longos e infindáveis segundos fiquei em estado de graça, sem sentir o chão, o carro, sem parar de pensar em tudo o que seria de nós a partir daquele momento, satisfeito, bestamente feliz, com os lábios dela nos meus, esquecido do pessoal nos esperando na calçada, esquecido da festa, da bagunça que faríamos, pensando num “nós” dali por diante, pensando...
Mas após o beijo ela me empurrou para fora do carro e seguimos atrás do pessoal.

Não consegui me aproximar dela pelo resto da noite sem que alguém se achegasse a nós ou ela simplesmente escapasse de mim. À meia-noite saímos a cantar pelas ruas, todos abraçados, gritando, cantando músicas natalinas, dançando, felizes, mas eu mesmo cantando não tirava aquele beijo da minha cabeça. Por que ela havia me beijado? Tinha enfim reparado em minha insignificância? Depois de tanto me declarar tinha enfim se rendido a meus encantos? Não, encantos eu não os possuía tantos assim, cantava e pensava na ceia, na casa dela não comi quase nada, não queria arriscar perder o gosto dos lábios dela, em volta da mesa procurei várias vezes os seus olhos por trás daqueles óculos de armação fina de metal, mas ela olhava para todos menos para mim. Estaria me evitando ou não dando chance de ninguém perceber nada? Mas se estava disfarçando assim era por descrição ou vergonha? E se fosse vergonha? Fui despertado desse emaranhado de pensamentos por um: - Não vai comer nada? Assim a comida vai esfriar. – vindo da ponta da mesa onde a mãe dela estava.

- Acho que ele está apaixonado. Falou alguém do outro lado da mesa. Acho que devo ter ficado vermelho, se estivesse comendo alguma coisa teria engasgado, tossido, e com um pouco de sorte – a quem estou tentando enganar falando em sorte? – morrido sufocado pela comida. Mas tudo o que consegui foi mesmo continuar vermelho feito um pimentão. Procurei meio desesperado os olhos dela, mas ela estava se atracando uma coxa de peru e nem deu por mim. Para suportar aquela situação comecei a beber, e bebi até a hora de irmos para a rua.

Lá fora, cantando, gritando e tonto, não de dançar, mas de tanto beber, tentava encontrar os olhos dela, queria deles a resposta, saber o porquê daquele beijo, por que eu? Se ela estava somente com vontade beijar alguém que segurasse o braço de outro, que outro – não eu – fosse beijado. Àquela hora nada mais me interessava, tudo que queria era voltar para minha casa, tomar um banho e dormir – sem sonhar – e esquecer tudo isso. Uns poucos segundos acabaram com minha festa de Natal, minha vontade de cantar, minha vontade de viver, com meus sonhos.”

Pela cara acho que consegui esquecer tudo isso, pois foi somente hoje mais de trinta anos depois e ouvindo a Billie que essas lembranças me vieram à mente e enquanto escrevo essas linhas finais, o CD muda de faixa e Billie começa a cantar YOU GO TO MY HEAD...

Resumindo: Melhor sofrer ouvindo Billie Holiday que ouvindo pagode.


MENINAS

Foi um sentimento agudo no peito, uma pontada, fisgada, coisa rápida, de segundos. Logo passou, mas para Fialho, Antonio Fialho da Silva, era o aviso. Voltou para dentro de casa e dirigiu-se a seu escritório, lá ele sentou-se em sua poltrona de couro e ficou fitando o telefone. Ligaria? Esperaria que o aparelho tocasse? Olhou para a garrafa de uísque, pegou o copo de cristal, mas resolveu que não beberia dessa vez. Fizesse o que tivesse que fazer, faria sóbrio. Passados minutos, poucos minutos, resolveu ligar.

- Alô? – atendeu uma voz feminina do outro lado.

-Sou eu... – falou reticente –, você também sentiu? Coisa de meia hora atrás?

- Sim, mas dessa vez esperei que você me ligasse. Por mais que isso me aconteça, não vou me acostumar jamais – disse num misto de tristeza e certa mágoa. – Minha situação aqui está insuportável... – queixou-se chorosa.

- Mas o que você espera que eu possa fazer? Acha que eu tenho algum controle sobre isso? Pensa que faço isso de propósito? Que quero de alguma forma me vingar ou te prejudicar?

- Como faremos? – ela perguntou friamente, como se essa fosse uma mera transação comercial. Acha que será primeiro comigo ou com você?

- Não sei, não sei o que acontecerá... – desculpou-se em vez de responder. Vamos esperar.
- Está certo. Vou preparar um quarto e meu espírito para ter que explicar tudo isso outra vez. Não sei como isso pode acontecer a alguém, muito menos quatro vezes, quatro vezes. – Desligou o telefone sem dar outra chance de ouvir as desculpas de Fialho, o velho, desde sempre velho, Fialho.

Uma hora e meia depois um toque de campainha fez Mariana lembrar-se do “compromisso” forçado para o dia de hoje. Desde o telefonema de Fialho passara o resto da tarde preparando um bolo e biscoitos, pois seria uma tarde muito longa para conversar de estômago vazio e garganta seca. Por via das dúvidas, caso a conversa se prolongasse muito, sempre haveria uma garrafa de Porto para socorrê-la. Deixando os pensamentos de lado foi atender a porta.

Respirou fundo e preparou-se para o “choque anunciado”.

Arrumou os cabelos precocemente – segundo ela - brancos num coque, beliscou as bochechas e abriu, por fim, a porta. E lá estava uma mulher de seus trinta anos, magra alta, longos cabelos negros e – surpresa entre as surpresas – trazia no colo uma criança de uns três ou quatro meses...

- Seus delírios não têm limites... – quase gritou num espanto.

Sentadas, xícara de chá nas mãos, as mulheres se encaram, e esperavam o tempo correr para quebrar o gelo e começarem a entabular uma conversa com um mínimo se sentido e nexo.
Várias xícaras foram servidas...

Foi preciso que a criança acordasse com fome para que enfim começassem a falar.
- Qual o nome dele? – perguntou a Velha Mariana sem jeito e quase sem ânimo.

- Antonio Fialho da Silva Neto – e completou – como o avô! – e riu.

- Sem dúvida ele se superou, ele foi além do imaginável, do bom-senso, ele enlouqueceu de vez. – Mariana falava e deixava a xícara de chá partir-se no piso frio da sala.

Com o grito da Velha a criança voltou a chorar.

- Mãe, você poderia me explicar o que está acontecendo?

Ao ser chamada de mãe, Mariana começou soluçar e resolveu socorrer-se com o Porto. Serviu-se generosamente sem oferecer à outra, e tomando as rédeas da situação começou a contar a sua história.

- Antes de começarmos a conversar permita-me somente dar um telefonema.

Sem esperar qualquer anuência da parte da outra ela começou a discar, errou três vezes o número, quando por fim quando começou a chamar, pareceu uma eternidade até que atendessem do outro lado.

- Mariana? – a voz denotava apreensão.

- A...? Como é seu nome mesmo? – lembrou-se então de perguntar à visita.

- Elisabeth – respondeu secamente a mulher que nervosamente chacoalhava o nenê.

- A Elisabeth chegou, é melhor você vir aqui. Desligou bruscamente, como costumava fazer quando falava com Fialho.

Cruzando as mãos Mariana começou a falar.

- Elisabeth..., pelo menos esse nome foi bem escolhido dessa vez, essa história começou a mais de quarenta anos, e como estou tão farta dela, serei o mais breve, sucinta, concisa possível. Poupe-se de me pedir detalhes! Eu era muito jovem quando conheci o homem que hoje você conhecerá como seu pai. Foi uma paixão dessas de mocidade que não deveria ter maiores conseqüências, não fosse eu ter conhecido o Fialho e ele ter se apaixonado por mim de uma forma que o mundo nunca viu, e espero que nunca mais venha a ver, pois isso poderia abalar as estruturas da sociedade. Mas acho estou indo longe de mais em minhas divagações, esqueça o que eu disse sobre abalar as estruturas da sociedade, à vezes esse assunto mais o Porto me deixam assim. Em outros tempos, no começo de tudo isso, eu me emocionava e chorava, agora teço teorias calamitosas...

Elisabeth pigarreia e Mariana volta ao assunto.

- “Pois bem, me apaixonei pelo Fialho, na época um poeta parnasiano-tardio – que mais tarde enveredaria pelo concretismo sem sucesso também - mas nosso romance não tinha futuro, até porque eu não tinha pretensões de nada sério, minha inclinação sempre foi religiosa e por fim, pouco tempo depois ingressei numa ordem religiosa e esperava que minha história se acabasse por lá, longe de tudo, do mundo e assim terminar minha vida em contemplação sem complicações. Até que um dia, quinze anos atrás, apareceu a sua primeira irmã, na verdade a caçula...

Elisabeth engasgou-se com o biscoitinho.

-“Não me faça perder tempo com tapinhas nas costas – rosna. Preste bem atenção, pois não consigo mais contar essa história sem-cabeça sem acabar o dia com uma enxaqueca.
“Um dia batem à porta do Convento procurando por mim, era uma moça, bem mais nova que você – afinal ela nasceu caçula, coisas de seu pai – contou-me que simplesmente havia dado por si ali, em frente àquela porta, sabendo que eu era a sua mãe e que precisava falar comigo. Imagine a minha surpresa, eu virgem velha – bem menos àquele tempo, claro – e com uma filha que eu desconhecia me procurando. Imagine o escândalo, e como foi minha expulsão.

“Não me peça detalhes, aliás, nada me peça. Depois de Clara, sim, Clara é o nome de sua irmã caçula, veio a Laura, a segunda, ela vem logo depois de você e a terceira é a Leonora. Mas para eu conseguir entender tudo isso foi preciso passar muito tempo, até que eu conseguisse encontrar e entrar em contato com Fialho. Resumindo, antes que eu esvazie meu Porto, seu pai me contou que nunca me esqueceu e sempre imaginou como teria sido a nossa vida, como teria sido a nossa família, e de tanto imaginar, ele estragou a minha vida, digo, criou vocês, fora de ordem, pois ele nunca foi organizado em nenhum ponto de sua vida...
“Hoje vivo da pensão alimentícia que ele me paga e só agüento mesmo essa situação graças às garrafas de Porto que ele me envia semanalmente. Não é nada pessoal, mas espero que você seja a nossa “última” filha, pois não nasci para a maternidade – olhando agudamente para a criança que agora dorme no canto do sofá –, tampouco para ser avó.”

Mariana emborca o resto do Porto, agora direto da garrafa, olha para o relógio, e diz:
- Logo seu pai chegará – suspira com forte hálito de vinho – junto com as suas irmãs. Por favor, segure o choro, senão começo a chorar junto, e não, não se engane, pois minhas lágrimas serão de desgosto, pois tudo o que eu queria era acabar meus dias no meu convento.

A campaninha toca e um cachorro late.

- Ah!Não! Cachorro, não Fialho!