Agora se pode dizer que aniversaria duas vezes por ano.
Conta-se o dia em que nasceu, aquele da certidão de nascimento, e o dia em que
virou um Homem, com H maiúsculo, ontem.
Conta-se o dia em que nasceu, aquele da certidão de nascimento, e o dia em que
virou um Homem, com H maiúsculo, ontem.
Via-se a diferença no seu olhar logo pela manhã, muito mais natural que o seu normal, fingia que ainda estava com sono, fingia que não entendia o que se falava com ele, culpa do sono, repetia.
Mas, macaco-velho que sou , digo, estou, percebi algo de muito raro nele, um olhar não mais distraído, mas, como dizer, um olhar em que tudo era-lhe novo e velho ao mesmo tempo, um olhar em que faltava-lhe a ingenuidade de até ontem.
Olhei-o nos olhos, desviou, ai tem! Falei mais para ele que para mim – claro – o quê? Perguntou-me como que por acaso, - sim senhor, ai atem – repeti mastigando uma torrada.
- Você está falando comigo? – perguntou com casualidade cínica.
- E há mais alguém à mesa? – respondi procurando outras pessoas tomando café conosco.
Sem me encarar voltou à sua xícara de chocolate. Bebia o chocolate, mas pela sua ausência, poderia estar sorvendo cicuta, veneno ou aço derretido.
- E então?
- Então o quê?
Aquilo estava começando a me irritar, e vejam, eu só estava acordado a bem poucos minutos...
- Dormiu tarde ontem?
- Hum?
- Dormiu tarde ontem? Inquiri fortemente, enquanto passava manteiga na torrada.
- Nem reparei...
- Estranho o que não falta nessa casa são relógios. Falava e apontava os relógios, um sobre a lareira, outro na varanda, mais um na piscina – nem se perguntem a razão disso – outro ali na cozinha, sem contar o seu relógio de pulso, e aquele que aparece a cada cinco minutos na tela da TV.
- Hu-hu. – resmungou.
Deixei o silêncio pousar entre nós enquanto preparava outra torrada e me servia de outra xícara de café.
- Me passa a manteiga! Enfim quebrei o silêncio.
- O quê! Assustou-se.
- A man-tei-ga. Aquele pote vermelho com uma pasta gordurosa e amarela dentro.
- Eu sei o que é uma manteiga.
- Então, pode fazer-me o favor de passá-la para mim. Fui grosso e cínico. Mas estava me divertindo com aquilo.
Passou-me a manteiga, lentamente lambuzei a torrada e bebi meu café. Ele não me olhava, digo até que seus olhos estavam tentando perfurar a mesa, tão fixo olhava para baixo.
Mas estava gostando de ser tão cruel assim.
Por mim o café se estenderia por horas a fio, mas eu sabia que teria de dar um fim ao drama do moleque. Olhava para ele e segurava a risada que já aflorava em meus lábios, mas ainda havia um pedaço de bolo na mesa, e achei que seria uma dose a mais de crueldade se eu estendesse nosso breakfast mais um pouco – ok, arderei no inferno por isso, mas estava muito divertida a agonia dele.
Comi o bolo, de chocolate, lentamente, catando cada migalha, len-ta-men-te, fazendo bolinho, juntado, somando os pedacinhos e fazendo um pedaço maior e levando à boca.
O coitado já começava a transpirar, gotas brotavam em sua testa. Por dentro minhas tripas se enrolavam de tanto engolir o riso.
Como de hábito, ao acabar de comer, bati com as mãos na mesa e disse:
- Vou fumar e levar comida pras galinhas.
Ele respirou aliviado, foi quando de chofre perguntei-lhe:
- Afinal, ontem à noite rolou, ou não rolou?
- Hã? – tossiu, engasgou-se com aquela torrada já mole e fria.
- Comeu ou não comeu?
4 comentários:
Que esquentou, esquentou, para ele ter perdido o rumo. Se concluiu ou não aí já é outra história.
Mistério no ar...
Obrigado, que bom que vc percebeu que voltei.
A cena se passa no sertão de Itanhaém, certo?
Pelo menos lá os personagens teriam TEMPO para chocar toda aquela insuportável tensão que foi se acumulando...
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