Um rangido de dobradiças anunciou a entrada de um freguês. O balconista olhou para os fundos da taberna e encostou-se no balcão. De dentro da escuridão que habitava o lugar, uma voz avisou:
- Cuidado com os cacos de vidro no chão, não vá se cortar com os pedaços de copos aí!
- Bom dia – disse o recém chegado. - Veja-me um rum.
- Bom dia - respondeu o balconista. – E emendou: - Sinto muito, senhor, mas ainda não estamos abertos para atendimento, aliás, estou ainda fazendo a faxina – e mostrou a vassoura e uma pá de lixo nas mãos.
- Mas só um copo de rum não vai lhe dar qualquer trabalho e como ainda não está aberto para atender, que chance há de alguém vê-lo me servindo, não é mesmo?
Concordando o rapaz o serve de uma generosa quantidade de rum e volta para o centro do salão para continuar a limpeza.
- Veja só essa sujeira, não sei como alguém consegue quebrar quase cem copos de cerveja... Olhe só a bagunça que me sobra...
Balançando a cabeça, ele continua a varrer e catar os cacos de vidro.
- Veja isso – diz ele para o sujeito ainda encostado no balcão sorvendo o rum. - Veja só isso.
O sujeito vai até a mesa e vê alguma coisa desenhada no tampo que o faxineiro insistentemente aponta.
-Parece um desenho de um arpão com uma corda, mas com essa escuridão quase não dá para ver direito – comenta, enquanto aperta os olhos para ver se consegue enxergar melhor.
-Não, não! Isso não é um desenho qualquer. Preste bem atenção nos traços e na tinta, isso aqui não foi desenhado, me parece ter sido tatuado aqui na madeira...
-Ora! Quem faria uma tatuagem numa mesa de bar? - diz o freguês fazendo um muxoxo.
- O senhor não faz idéia do que acontece nesse bar. Me diga se não está - snif, snif, snif - sentindo um cheiro azedo no ar! Parece que alguém anda fumando ópio por aqui...
- Estou sentindo tantos odores aqui..., mas o mais forte é o cheiro de cerveja azeda e, se não estou enganado, até cheiro de sangue. Mas com esse ar parado... Abra as janelas e deixe o sol entrar junto com o ar fresco da rua.
- Não diga isso! A patroa não colocou janelas na taberna para que ninguém de fora veja o que acontece aqui, e não admite que entre luz ou ar da rua – interrompe.
- Vejo que o senhor tem um bom olfato. Venha aqui ver isso - diz , levando o homem até o centro do bar, onde uma mesa está suja de sangue, pedaços de roupas e fios de cabelos.
- Me diga. O que o senhor acha disso? Todas as manhãs, quando chego aqui, encontro todos os tipos de sujeira, mas restos humanos?!? Isso está começando a ficar estranho até para mim. Tenho medo de que um dia a polícia bata aqui e me culpe por algum crime. Só Deus sabe como fujo desse tipo de encrenca... - Vejo que o senhor já esvaziou o copo. Aceita mais um gole de rum?
Os dois voltam para o balcão e ele enche novamente o copo do estranho. Continuam a conversar, enquanto o rapaz esvazia o lixo no latão que será posto na rua mais tarde.
- Parece que você não gosta de trabalhar aqui. Então me responda, por que continua? Não há nada melhor que você deseje fazer?
- Realmente eu detesto isso aqui, mas é isso que eu mereço. Me propus a acabar meus dias fazendo o que não gosto, tenho que sofrer, senhor, tenho que sofrer muito e muito... – diz isso e cobre o rosto com as mãos, ocultando uma lágrima. Serve mais rum para o homem no balcão e serve-se de um gole de aguardente. Toma de uma só vez e volta a levantar a cabeça cheirando o ar.
- Alguém está decididamente fumando ópio... O senhor não sente o cheiro? Com a vassoura em punho ele volta a varrer o salão.
- Malditos pombos – pragueja. – Veja só a sujeira que eles fazem... Os mágicos não poderiam fazer seus truques com outros bichos...? A platéia aplaude e eu limpo as penas e as fezes...
- Eu vi um cartaz colado ali fora. Ontem foi a última apresentação de um mágico. Como foi o espetáculo? Você assistiu?
- Não, senhor, aqui na taberna só entram os convidados da patroa, gente esquisita. Nunca fui autorizado nem convidado a vir aqui à noite, não que um dia eu quisesse... A patroa sempre deixou bem claro que eu nunca deveria vir aqui sem sua ordem e – olhando para os fundos da taverna – nem deixar que ninguém entrasse aqui fora de hora, sem sua autorização expressa – responde o faxineiro, tirando com uma espátula as fezes dos pombos coladas no chão e em algumas mesas.
- Mas você me deixou entrar – comenta o entranho.
- É verdade, mas acho que o senhor veio na hora certa, hoje estava precisado de falar com alguém...
-Já que é assim, então comece me dizendo a razão de você continuar trabalhando aqui, já que detesta esse lugar...
- Estou me punindo. Fiz muita besteira nessa vida e tenho que compensar de alguma forma, e o jeito que arrumei foi fazer os trabalhos mais desprezíveis, mais nojentos e execráveis – e sem conseguir segurar, começa a chorar.
- Mas o que você fez assim de tão terrível? Que crime você cometeu afinal?
Encosta-se no balcão, serve mais uma dose de rum ao freguês e outra aguardente a si mesmo.
- Sabe, senhor, sou órfão de pai e mãe. Uns dizem que meus pais morreram logo depois que nasci, já outros, que eles, sabendo que eu não daria para nada que prestasse, me jogaram na porta de uma velha parteira. Seja como for, fui criado pela velha que me tratou como filho, trabalhando feito uma escrava para me sustentar, educar e fazer de mim um homem de bem, mas... – suspira¬ - olhe só no que deu. Bebe mais da aguardente. Um dia, já adulto, cheio de vícios e cercado de falsos amigos, fui roubar a velha. O senhor acredita? Fui roubar a velha que me criava como um filho! Ela tentou me explicar que só tinha dinheiro para a comida, que se tivesse mais algum tostão sobrando me daria... Mas nem deixei a velha falar e, tomado pela ira, pela necessidade de meus vícios, dei-lhe um tapa no rosto. Não foi forte, ela nem chegou a virar a cabeça.., mas ficou ali com as mãos sobre o rosto vermelho e começou a chorar... Vendo aquilo, enraiveci ainda mais, peguei tudo o que pude na casa e saí para rua. O dinheiro que arranjei com aquilo dividi com os amigos e só voltei para casa dois dias depois.
Sem graça pelas lágrimas que ainda corriam pelo seu rosto, o rapaz volta a varrer o chão. Silêncio. Um suspiro, dolorido e profundo
- Então? Não vai me contar o resto? Vai ficar se escondendo atrás dessa vassoura?
- Quando voltei para casa, ela estava na mesma posição, com as mãos ainda cobrindo a face, morta. A coitada morreu de tanto chorar... Parecia uma estátua. Dura. Triste. Nesse dia saí de casa e caí no mundo. Desde então estou purgando esse pecado... O senhor não sabe pelo que já passei... Mas nada do que fiz até agora apagou a minha culpa. Veja aonde vim parar...
- Venha me servir outra dose, já está na hora de ir e não quero sair com a garganta seca.
Deixando a vassoura encostada numa mesa próxima ao palco, o rapaz volta ao balcão e enche o copo do estranho, quando ouve um guincho agudo vindo dos fundos do estabelecimento. Ele treme e sua de nervoso.
- Acho mesmo que o senhor deveria ir embora. A patroa está chegando e tenho certeza de que ela não gostará de ver o senhor aqui, e pode ainda me despedir ou coisa pior... Aquela mesa suja de sangue me dá arrepios!
O estranho toma seu rum e pede a conta.
- Não precisa pagar, fica por minha conta. Há muito tempo que não falava com alguém, já nem lembrava a minha voz, assim ficamos empatados. Pode ir em paz, mas nunca comente com ninguém que o senhor entrou aqui, nunca! – recomenda com firmeza na voz.
- Está certo, esse será o nosso segredo. Você me acompanharia até a porta? Aqui é tão escuro que sou capaz de me perder e não achar a porta, ainda mais com todo esse rum na cabeça – ri um riso meio forçado.
O rapaz o acompanha até a porta, que quando se abre deixa entrar uma forte claridade que até ofusca, e desviando os olhos para o chão ele vê, espantado e assustado, a sombra do estranho. Ela começa a transformar-se, deixando a forma humana e tomando contorno angelical...
- Quem é o senhor? – gagueja quase em pânico. O estranho oferece-lhe a mão e diz:
- Venha comigo, seu tempo aqui acabou. Alguém lá em cima intercedeu por você. Não tema mais nada...
Um vento quente bate a porta da taberna e da rua ouve-se o guincho estridente de uma porca furiosa...