oi um
sentimento agudo no peito, uma pontada, fisgada, coisa rápida, de segundos.
Logo passou, mas para Fialho, Antonio Fialho da Silva, era o aviso. Voltou para
dentro de casa e dirigiu-se a seu escritório, lá ele sentou-se em sua poltrona
de couro e ficou fitando o telefone. Ligaria? Esperaria que o aparelho tocasse?
Olhou para a garrafa de uísque, pegou o copo de cristal, mas resolveu que não
beberia dessa vez. Fizesse o que tivesse que fazer, o faria sóbrio. Passados
minutos, poucos minutos, resolveu ligar.
- Alô? –
atendeu uma voz feminina do outro lado.
-Sou eu... –
falou reticente –, você também sentiu? Coisa de meia hora atrás?
- Sim, mas
dessa vez esperei que você me ligasse. Por mais que isso me aconteça, não vou
me acostumar jamais – disse num misto de tristeza e certa mágoa. – Minha
situação aqui está insuportável... – queixou-se chorosa.
- Mas o que você espera que eu possa fazer?
Acha que eu tenho algum controle sobre isso? Pensa que faço isso de propósito?
Que quero de alguma forma me vingar ou te prejudicar?
(silêncio
ensurdecedor...)
- Como
faremos? – ela perguntou friamente, como se essa fosse uma mera transação
comercial. Acha que será primeiro comigo ou com você?
- Não sei,
não sei o que acontecerá... – desculpou-se em vez de responder. Vamos esperar.
(silêncio
escandaloso...)
- Está
certo. Vou preparar um quarto e meu espírito para ter que explicar tudo isso
outra vez. Não sei como isso pode acontecer a alguém, muito menos quatro vezes,
quatro vezes.
Desligou o
telefone sem dar outra chance de ouvir as desculpas de Fialho, o velho, desde
sempre velho, Fialho.
Uma hora e
meia depois um toque de campainha fez Mariana lembrar-se do “compromisso”
forçado para o dia de hoje. Desde o telefonema de Fialho passara o resto da
tarde preparando um bolo e biscoitos, pois seria uma tarde muito longa para
conversar de estômago vazio e garganta seca. Por via das dúvidas, caso a
conversa se prolongasse muito, sempre haveria uma garrafa de Porto para
socorrê-la. Deixando os pensamentos de lado foi atender a porta.
Respirou
fundo e preparou-se para o “choque anunciado”.
Arrumou os
cabelos precocemente – segundo ela - brancos num coque, beliscou as bochechas e
abriu, por fim, a porta. E lá estava uma mulher de seus trinta anos, magra
alta, longos cabelos negros e – surpresa entre as surpresas – trazia no colo
uma criança de uns três ou quatro meses...
- Meu Deus, seus
delírios não têm limites? – quase gritou num espanto.
Sentadas,
xícara de chá nas mãos, as mulheres se encaram, e esperavam o tempo correr para
quebrar o gelo e começarem a entabular uma conversa com um mínimo se sentido e
nexo.
Várias
xícaras foram servidas...
(silêncio
pesava, quase envergando os caibros da casa)
Foi preciso
que a criança acordasse com fome para que enfim começassem a falar.
- Qual o
nome dele? – perguntou a Velha Mariana sem jeito e quase sem ânimo.
- Antonio
Fialho da Silva Neto – e completou – como o avô! – e riu.
- Sem dúvida
ele se superou, ele foi além do imaginável, do bom-senso, ele enlouqueceu de
vez. – Mariana falava e deixava a xícara de chá partir-se no piso frio da sala.
Com o grito
da Velha a criança voltou a chorar.
- Mãe, você
poderia me explicar o que está acontecendo?
Ao ser
chamada de mãe, Mariana começou soluçar e resolveu socorrer-se com o Porto.
Serviu-se generosamente sem oferecer à outra, e tomando as rédeas da situação
começou a contar a sua história.
- Antes de
começarmos a conversar permita-me somente dar um telefonema.
Sem esperar
qualquer anuência da parte da outra ela começou a discar, errou três vezes o
número, quando por fim começou a chamar, pareceu uma eternidade até que
atendessem do outro lado.
- Mariana? –
a voz denotava apreensão.
- A...? Como
é seu nome mesmo? – lembrou-se então de perguntar à visita.
- Elisabeth
– respondeu secamente a mulher que nervosamente chacoalhava o nenê.
- A
Elisabeth chegou, é melhor você vir aqui. Desligou bruscamente, como costumava
fazer quando falava com Fialho.
Cruzando as
mãos Mariana começou a falar.
-
Elisabeth..., pelo menos esse nome foi bem escolhido dessa vez, essa história
começou a mais de quarenta anos, e como estou tão farta dela, serei o mais breve,
sucinta, concisa possível. Poupe-se de me pedir detalhes! Eu era muito jovem
quando conheci o homem que hoje você conhecerá como seu pai. Foi uma paixão
dessas de mocidade que não deveria ter maiores conseqüências, não fosse eu ter
conhecido o Fialho e ele ter se apaixonado por mim de uma forma que o mundo
nunca viu, e espero que nunca mais venha a ver, pois isso poderia abalar as
estruturas da sociedade. Mas acho estou indo longe de mais em minhas
divagações, esqueça o que eu disse sobre abalar as estruturas da sociedade, à
vezes esse assunto somado as doses de cavalares de Porto me deixam assim. Em
outros tempos, no começo de tudo isso, eu me emocionava e chorava, agora teço
teorias calamitosas...
Elisabeth
pigarreia e Mariana volta ao assunto, a criança, ressona, voltou a dormir
depois de mamar.
- “Pois bem”,
me apaixonei pelo Fialho, na época um poeta parnasiano-tardio – que mais tarde
enveredaria pelo concretismo sem sucesso também - mas nosso romance não tinha
futuro, até porque eu não tinha pretensões de nada mais sério, minha inclinação
sempre foi religiosa e por fim, pouco tempo depois ingressei numa ordem
religiosa e esperava que minha história se acabasse por lá, longe de tudo, do
mundo e assim terminar minha vida em contemplação sem complicações. Até que um
dia, quinze anos atrás, apareceu a sua primeira irmã, na verdade a caçula...
Elisabeth
engasgou-se com o biscoitinho.
-”Não me
faça perder tempo com tapinhas nas costas” – rosna. Preste bem atenção, pois
não consigo mais contar essa história sem-cabeça sem acabar o dia com uma
enxaqueca.
“Um dia
batem à porta do Convento procurando por mim, era uma moça, bem mais nova que
você – afinal ela nasceu caçula, coisas de seu pai – contou-me que simplesmente
havia dado por si ali, em frente àquela porta, sabendo que eu era a sua mãe e
que precisava falar comigo. Imagine a minha surpresa, eu virgem velha – bem
menos àquele tempo, claro – e com uma filha que eu desconhecia me procurando.
Imagine o escândalo, e como foi minha expulsão.
“Não me peça
detalhes, aliás, nada me peça. Depois de Clara, sim, Clara é o nome de sua irmã
caçula, veio a Laura, a segunda, ela vem logo depois de você e a terceira é a
Leonora. Mas para eu conseguir entender tudo isso foi preciso passar muito
tempo, até que eu conseguisse encontrar e entrar em contato com Fialho.
Resumindo, antes que eu esvazie meu Porto, seu pai me contou que nunca me
esqueceu e sempre imaginou como teria sido a nossa vida, como teria sido a
nossa família, e de tanto imaginar, ele estragou a minha vida, digo, criou
vocês, fora de ordem, pois ele nunca foi organizado em nenhum ponto de sua
vida...
“Hoje vivo
da pensão alimentícia que ele me paga e só agüento mesmo essa situação graças
às garrafas de Porto que ele me envia semanalmente. Não é nada pessoal, mas
espero que você seja a nossa “última” filha, pois não nasci para a maternidade
– olhando agudamente para a criança que agora dorme no canto do sofá –,
tampouco para ser avó”.
Mariana
emborca o resto do Porto, agora direto da garrafa, olha para o relógio, e diz:
- Logo seu
pai chegará – suspira com forte hálito de vinho – junto com as suas irmãs. Por
favor, segure o choro, senão começo a chorar junto, e não, não se engane, pois
minhas lágrimas serão de desgosto, pois tudo o que eu queria era acabar meus
dias no meu convento.
A campaninha
toca e um cachorro late.
- Ah! Não!
Cachorro, não Fialho!