2011/12/19

AGORA SÓ EM 2012


ESTÁ CHEGANDO

logo chega aquela data

sim aquela data

os sinais de sua chegada

estão pelas ruas

nas lojas

as luzes já piscam

o verde e o vermelho se espalham

e espraiam-se pelas ruas e praça

nas portas

(e são tantas)

pedintes pedem

velhos com placas de compra-se ouro

dormem em pé

crianças que não

são minhas

ou suas

estendem mãos

e pedem também sua parte nesse quinhão natalino

vozes estridentes gritam

as ofertas

as campanhas

os “comprem logo seus presentes”

são anunciados nas rádios tv’s e alto-falantes

o corre-corre começou

os filhos pedem

os pais prometem

compram-se roupas novas

doam-se as velhas

trocam-se receitas

começam as brigas e discussões

quem fará o quê?

o que comprar?

para quem comprar?

(me pergunto para quê comprar?)

os velhos barbudos

(me excluo disso!)

já se candidatam a fantasiar-se

barbas brancas são cultivadas

barrigas também

os dias correm como que ladeira abaixo

e os preparativos se atrasam

rôo minhas unhas

coço minha cabeça

lá vem ele...

nas folhinhas abrem-se janelas

(com bombons)

contagem regressiva

ansiedade

lá vem o natal outra vez

parece que foi ontem que briguei com tanta gente

antes, durante e depois da ceia

os natais se sucedem em minha vida como uma catástrofe anunciada e nunca evitada

sou atraído para ele como

o suicida para a morte

num deja-vu louco e sem sentido

alucinado

desvio das lojas

desvio dos velhos gordos e barbudo

antevejo a chegada de minha neurose

trinco os dentes

revejo meus palavrões

cerro os punhos

e todo o aborrecimento dessa data vem à minha garganta

minha boca amarga

meus olhos turvam

meu Deus

(acendendo meu cigarro quase grito)

- como eu detesto o natal!

(nunca mais a primeira pescaria do ano...

Quem ainda está vivo para lembrar isso?)





(e pensar que minha única alegria

é chatear o Vadinho

com os tradicionais três abacaxis)





Mas para os que ainda cultivam uma fagulha que seja de boa-vontade leiam a participação especial de Maria Aparecida Soares Ferreira no Folhetim Cultural, onde poderão encontrar doçuras nos poemas da Mirse e ainda palavras e pensamentos leves na prosa cotidiana da Bárbara. Aproveitem e não me acusem de ter estragado o Natal de vocês!








Aos amigos Próximos, Chegados, Afastados, Temporariamente Distantes, Geograficamente Longe de mim, àqueles com quem brigo o ano todo, àqueles que suportam esse meu humor: Feliz Natal (sim é ironia) e Boas Entradas!
Nos leremos em 2012!











2011/12/15

ANIVERSÁRIO


Trinta e três mensagens de feliz aniversário,
Cinco telegramas desejando saúde e mais anos de vida,
Um buquê de flores vermelhas com bilhete de “admiradora secreta” (na verdade da Glorinha do escritório),
Uma mensagem anônima e melosa, com fundo musical de Kenny G. pelo telefone (ainda da Gorinha do escritório),
Dois torpedos do pessoal do futebol,
Um bolo ainda inteiro sobre a mesa com as velinhas afundadas no glacê, cervejas quentes, a TV ligada, e ele dormindo no sofá...
O cachorro ainda na esperança de comer alguma coisa...

2011/12/13

ENTRE O VENENO E CORTAR OS PULSOS


Entende Dolores
De dores,
De porradas
De cólicas
(de se dobrar ao meio)
De desencantos
Das topadas nos cantos
(dos móveis)
Dos amores que se foram
(buscar cigarro...)
Das cartas que não vem
Da maionese azeda
Dos números errados
Do:

- Ele não mora mais aqui!

Dolores pensa:

- ”Se meu nome fosse Cida...”

Pobre Dolores, até o nome dói!





Dona Leocádia

PEQUENO DRAMA RELÂMPAGO




De galocha, capa impermeável, sombrinha, lencinho em volta do pescoço, protegendo-se da chuva, Dona Leocádia vai atravessando a rua. Olha para um lado, olha para outro. Nenhum carro que vá atropelá-la ou molhá-la. Segue cuidadosamente, procurando não pisar em nenhum buraco.

De repente, vindo do nada, melhor vindo do céu, um raio. De Dona Leocádia somente um punhado de cinzas.

Do outro lado da rua, seu Hermínio, balbuciava essas palavras:



- Só pode ter sido o dente de ouro, só pode ter sido o dente de ouro...



AQUELES OLHOS AZUIS


- Oi! Você é nova por aqui?

- Acabei de chegar..., aliás, onde “é aqui”?

- Não se preocupe, no começo ficamos assim mesmo, desorientadas, perdidas, tentando entender o que aconteceu.

- Não consigo entender nada, afinal onde estou?

- É melhor darmos uma volta antes de começar a te explicar “os ondes, comos e porquês”. Eu mesma já perdi a conta de quanto tempo estou aqui, acho que fui uma das primeiras a chegar – coça a cabeça - faz tanto tempo me Deus...

- Onde estou? – Assustada, começa a chorar.

- Calma, calma. Você ainda está em choque, vamos dar uma volta, conhecer outras mulheres e quando estiver calma, todas nós te explicaremos o que houve. Começam a andar.

- Mas aqui é tudo igual. Não tem paisagem, não tem cor, flores, perfumes, nada, nada, nada. Começa a desesperar-se.

- Eu morri! Oh meu Deus! Eu morri é isso não é? Estou morta, morta, morta...! Por isso esse lugar é assim. Estou no limbo, no “grande nada” por toda a eternidade esperando pela....- antes de terminar é interrompida.

- Não! Não é nada disso que você está pensando. Veja – diz apontando para frente –, vamos até ali, vou te apresentar a Luciana.

Caminham, e como lá não há referências espaciais, não sabemos se andaram muito ou pouco.

- Luciana, essa aqui é a nossa nova amiga, acabou de chegar.

Luciana dá um longo suspiro, olha para a recém-chegada com um olhar triste, abraça-a, passa a mão pelos seus cabelos.

- Como você é jovem, qual é a sua idade?

- Dezenove...

Luciana, demonstrado grande apreensão, olha para a outra mulher e comenta.

- Elas estão chegando aqui cada vez mais jovens...

- Pobrezinhas... Ela pensa que morreu, que está no purgatório...

- Criança... – diz Luciana – criança, como isso pôde acontecer...? Não, não responda, essa pergunta é retórica...

- Você poderia explicar em poucas palavras o que lhe aconteceu para que ela pare de pensar que está morta e no purgatório? Já fiquei nessa função por muito tempo e não tenho mais paciência para isso. – Diz a primeira.

- Venha minha criança, vamos caminhar mais um pouco e por favor, não precisa nos dizer que andar aqui não dá em lugar nenhum, há muito tempo que sabemos disso...

As duas mulheres riem dessa grosseira constatação.

- Qual a sua última lembrança? Pense bem antes de responder. Qual a sua última lembrança?

- Estava andando num shopping com minhas amigas, quando... – interrompida pelas duas.

- Quando você viu um homem lindo, de não menos lindos olhos azuis. – falam juntas as duas mulheres.

- Sim! - responde a menina. Nunca vi um homem mais lindo em toda a minha vida e, aqueles olhos azuis...- angustiada.

- Me deu uma vontade de...

- Mergulhar dentro deles, não é? – perguntam as duas juntas.

- Sim, isso mesmo. Como vocês descobriram? – Pergunta espantada.

Triste, as duas, outra vez, falam juntas:

- É onde você está agora!



O CANDIDATO CHEGOU


As ruas estão sujas, alias, são sujas sempre.
O calor ainda faz com que o vento levante a areia que entra nas casas, entra nos olhos das gentes que moram naquele bairro.
Pelas ruas, nas esquinas, meninas, jovens ainda distribuem”santinhos” de candidatos. Estão agitadas, comentam que um deles vem fazer uma visita no bairro hoje. A comunidade está quase em júbilo.

- O candidato vem aqui, o candidato vem aqui. O padre da velha igreja exulta e convence a paróquia a varrer a rua, limpar algumas calçadas. Coloca as mais prendadas na cozinha para começarem a preparar o banquete, e os jovens colocam bandeirinhas nos postes.

- O candidato vem aqui, o candidato vem aqui... Até o fim do dia o bairro está “apresentável”. O líder da comunidade exorta as pessoas a comportarem-se bem, causar boa impressão. Manda que as mães dêem banhos nos filhos, prendam seus cachorros. O bebuns incorrigíveis são encerrados em casa.

-Temos que causar boa impressão, senão nenhum outro candidato aparecerá aqui – grita do alto do palanque o líder comunitário.

- O candidato vem aqui, o candidato vem aqui... A noite torna-se um martírio, ninguém consegue conciliar o sono, viram de um lado para o outro na cama.

Enfim amanhece, o dia claro promete bons auspícios. As ruas, milagrosamente, continuam limpas, sem cachorros correndo, latindo ou derrubando latas atrás de comida. Os bares, vazios, não fazem arruaça, não há brigas, nem músicas barulhentas.
Lá de longe, uma voz grita:

- O candidato está chegando, o candidato está chegando, o candidato está chegando!

Começam a soltar fogos, o padre arrebatado começa aos gritos de - o candidato chegou, o candidato chegou! – soltar os pombos que cria no campanário da igreja. As crianças do coral, em coro (é claro) gritam afinadas: - o candidato chegou, o candidato chegou!
E em carro aberto, acenando e soltando beijos para o público quase histérico, o candidato vestido de branco, sorri. Sente-se eleito pela comunidade. Estava feito!
Olha com desprezo, sente um misto de nojo, náusea, uma repulsa como nunca antes sentira em toda a sua parasitária vida de político popularesco.
Desceu do carro sob os apupos da comunidade, beijou criancinhas, apertou mãos, osculou a mão enrugada e encarquilhada do velho cura.O sino rachado da igreja tocou uma, duas, três vezes... Então tudo se tornou um borrão.
O candidato foi levado pela onda humana, entre "vivas" e "salve o candidato". O padre, espumando, gritava ordens às cozinheiras:

- O candidato está chegando, o candidato está chegando!

As portas da igreja foram abertas de par em par, e o populacho entrou cantando e dançando tendo em seus braços o candidato, os cabos-eleitorais e seus distribuidores de santinhos.
Todos sorriam de júbilo!

- Estou eleito! Ria baixinho o candidato enquanto levantava os braços fazendo o sinal da vitória.

Em poucos segundos o candidato, os cabos-eleitorais e seus distribuidores de santinhos foram esquartejados, tendo os membros e órgãos separados por tamanho, quantidade de carne, cumprimento dos ossos e foram preparados e temperados pelas cozinheiras da igreja.
A noite foi de festa, todos foram dormir de barriga cheia, satisfeitos com o candidato e esperando os outros de outros partidos que viriam visitá-los ao longo da campanha eleitoral. Numa das casas mais humildes, uma criança pergunta à mãe:

- Mamãe, por que não podemos comer candidatos todos os dias?

- Por que, meu filho, esse país não presta nem para ter bons candidatos!

A noite desce sobre comunidade, a brisa balança as bandeirinhas, os cachorros agora tem o que procurar nas latas de lixo e os bêbados podem voltar a beber em paz nos bares.

2011/12/12

A MEMÓRIA É UMA DROGA


A memória é uma droga mesmo!

Ouço a Billie, meu clichê, meu lugar comum. Tem um sujeito que desde que o conheci, aos meus dezenove anos, vivia repetindo: - “Você é responsável por quem cativa...” – Por causa dele, passei a ver Saint-Exupéry com certo amuamento, outros vivem repetindo feito papagaios: - “O Universo conspira a seu favor!” Ah! Maldita New Age em que vivemos... - ” Maktub!” Berram os leitores de¹..., vamos deixar isso prá lá!, e segue por aí os lugares-comuns de cada pessoa. Assim sendo não considero ouvir Billie nenhum elitismo, nem nada de mais, é só mais um simples clichê, que bem me serviu para começar o primeiro parágrafo.

Não me lembro bem onde estava quando ouvi as primeiras frases de Billie, mas devia ser dentro do universo de meu apartamento, pois duvido muito que fosse ouvi-la nas ruas. E aquela voz chorosa, imediatamente, remeteu-me ao passado, minha adolescência. Minha juventude, fase penosa da vida, quando nada sabemos, mas mantemos a obstinação dos que se fartam de tanto saber, das espinhas na cara, dos amores eternos, intempestivos e passageiros. Pulamos de amores assim como os beija-flores pulam de flor em flor, somos fúteis, inconseqüentes, superficiais e tolos a não poder mais – mas não se enganem, sofremos.

Pois Billie cantava e as lembranças, como pedras, desmoronaram sobre mim!

Com os versos de Billie as lembranças me vêm fragmentadas, cenas esparsas e sem ordem cronológica, começa assim:

“Estou no banco de trás dum carro, quando vou descer ela me puxa o braço e me beija, beija na boca, um beijo quente, gostoso, bom, um beijo que esperei por muito, muito tempo, e que me veio assim de surpresa, quando já não mais esperava, quando tudo o que seria se chegasse a ser, seria um beijo no rosto seguido de um: - Feliz Nataaaaaaalllll!

Por uns longos e infindáveis segundos fiquei em estado de graça, sem sentir o chão, o carro, sem parar de pensar em tudo o que seria de nós a partir daquele momento, satisfeito, bestamente feliz, com os lábios dela nos meus, esquecido do pessoal nos esperando na calçada, esquecido da festa, da bagunça que faríamos, pensando num “nós” dali por diante, pensando...

Mas após o beijo ela me empurrou para fora do carro e seguimos atrás do pessoal.

Não consegui me aproximar dela pelo resto da noite sem que alguém se achegasse a nós ou ela simplesmente escapasse de mim. À meia-noite saímos a cantar pelas ruas, todos abraçados, gritando, cantando músicas natalinas, dançando, felizes, mas eu mesmo cantando não tirava aquele beijo da minha cabeça. Por que ela havia me beijado? Tinha enfim reparado em minha insignificância? Depois de tanto me declarar tinha enfim se rendido a meus encantos? Não, encantos eu não os possuía tantos assim, cantava e pensava na ceia, na casa dela não comi quase nada, não queria arriscar perder o gosto dos lábios dela, em volta da mesa procurei várias vezes os seus olhos por trás daqueles óculos de armação fina de metal, mas ela olhava para todos menos para mim. Estaria me evitando ou não dando chance de ninguém perceber nada? Mas se estava disfarçando assim era por descrição ou vergonha? E se fosse vergonha? Fui despertado desse emaranhado de pensamentos por um: - Não vai comer nada? Assim a comida vai esfriar. – vindo da ponta da mesa onde a mãe dela estava.

- Acho que ele está apaixonado. Falou alguém do outro lado da mesa. Acho que devo ter ficado vermelho, se estivesse comendo alguma coisa teria engasgado, tossido, e com um pouco de sorte – a quem estou tentando enganar falando em sorte? – morrido sufocado pela comida. Mas tudo o que consegui foi mesmo continuar vermelho feito um pimentão. Procurei meio desesperado os olhos dela, mas ela estava atracando uma coxa de peru e nem deu por mim. Para suportar aquela situação comecei a beber, e bebi até a hora de irmos para a rua.

Lá fora, cantando, gritando e tonto, não de dançar, mas de tanto beber, tentava encontrar os olhos dela, queria deles a resposta, saber o porquê daquele beijo, por que eu? Se ela estava somente com vontade beijar alguém que segurasse o braço de outro, que outro – não eu – fosse beijado. Àquela hora nada mais me interessava, tudo que queria era voltar para minha casa, tomar um banho e dormir – sem sonhar – e esquecer tudo isso. Uns poucos segundos acabaram com minha festa de Natal, minha vontade de cantar, minha vontade de viver, com meus sonhos.”

Pela cara acho que consegui esquecer tudo isso, pois foi somente hoje mais de trinta anos depois e ouvindo a Billie que essas lembranças me vieram à mente e enquanto escrevo essas linhas finais, o CD muda de faixa e Billie começa a cantar YOU GO TO MY HEAD...

Resumindo: Melhor sofrer ouvindo Billie Holiday que ouvindo pagode.






[1] A decência me impede de declinar-lhe o nome, desculpem-me.

2011/12/08

SOBRE A PAZ E OUTRAS RELFEXÕES


Cheguei cedo à repartição, adiantei meu trabalho e desci para fumar. Tudo certo para vocês? Responderam sim? Pois se enganaram.
Explico.
Na rua, céu limpo, sol que não ameaça com calor, os garis ainda limpando as calçadas e eu sob uma árvore acendo o cigarro. Curtia a delícia da primeira tragada com quando uma mulher em “situação de rua” (houve um tempo em que se poderia dizer mendiga sem estar sendo politicamente incorreto) me pede um cigarro...
Respondi-lhe, fazendo contato visual , que só tinha aquele que estava fumando, pois não é que ela retrucou perguntando sobre o maço que eu carregava no bolso?
Francamente, um homem não pode mais fumar em paz sem ter que dar satisfação para os “homeless”, os desprovidos, os sem-alguma-coisa? Não bastam as placas que me proíbem de fumar em uma quantidade cada vez maior de lugares?
Diante de minha negativa ele olhou-me de forma belicosa, agressiva, e pensei:

- Lá se foi a alegria da primeira tragada...

Não dá, assim não dá...
Aqui me condenam por fumar, lá fora me condenam por não compartilhar meu cigarro, ô vidinha...
Daí para a pressão alta, infarto ou impotência, é um passo!

***

Hoje, por indicação do Silvio, eu iria escrever somente sobre a “geração coruja”, mas acabei divagando com meu cigarro.
Mas antes de terminar explicarei o que é essa tal geração.
No domingo fui a uma festa de aniversário, onde me colocaram uma máquina fotográfica na mão para fotografar as crianças.
Vocês já perceberam como as mulheres, de qualquer idade, conseguem ficar de costas e com o pescoço totalmente reto sobre os bumbuns? No futuro, sei lá uns duzentos anos, quando nossas tataravós virem essas fotos, vão pensar que essa era uma geração vítima de radiação, experiências genéticas malsucedidas, ou como diz meu cunhado, envenenadas por excesso de hormônio da carne do gado.
Impressionante como elas conseguem essa posição...
Os ortopedistas é que faturarão alto logo, logo, pois além das lordoses ainda terão que desentortar pescoços...
E pensar que quando jovem meu dizia que eu cresceria surdo por causa dos rocks que eu ouvia alto...
Mas, cada geração com suas mutilações!
Que sejam felizes com suas dores.

2011/12/07

O CAFÉ

Esnobar
É exigir café fervendo
E deixar esfriar.
- Millôr Fernandes


- O negócio começou muito mal, olha a barata correndo aqui debaixo da mesa, rápido ela está indo para a mesa perto da parede!

- Ela saiu da caixa da geladeira...

- Só podia ser de lá!

Complicado o diálogo? Vamos começar do começo.

Como já citei anteriormente, após o almoço, diariamente, vamos tomar um cafezinho. Antes éramos assíduos da Bolsa Oficial do Café de Santos, nome pomposo, mas o atendimento, os freqüentadores, o preço, e por fim, não abrir às segundas-feiras foi a gota d’água para nos mudarmos de uma vez de lá.

E descobrimos esse novo, de onde vem essa história de hoje.

Desde a primeira vez que lá entramos, nos “entocamos” numa mesa de dois lugares atrás do caixa. Lugar muito aprazível, pois não éramos vistos por nenhuma pessoa, o que era de grande ajuda para nós, pseudos-cronistas de mundanidades. Um ponto estratégico para estudar a humanidade. Ah, esse nosso empenho em compreender o próximo...

O café é de bom preço, atendimento, até agora, sem reclamações. Éramos muitos felizes em nosso domicílio, éramos.

Mas o lugar acabou por ficar muito freqüentado e com fregueses exigentes, tão exigentes que passaram a demandar por outras marcas de cervejas.

Pausa!

O leitor deve ter se assombrado pois falei até agora em café, e passo para fregueses reclamando de cervejas! Pois lá é também um restaurante, espaço grande, mas exploramos somente a cafeteria, tudo o mais nos é desimportante.

Voltemos, pois ao drama inicial.

Para atender a sua seleta clientela (entra aqui um ranço de amarga ironia) ele nos informou que teria que sacrificar nosso “cantinho” para instalar ali, bem ali, naquele espaço sacro-santo de nosso cafezinho cotidiano, a bendita geladeira.

- Mas ainda vai demorar uns dias. – falou de forma a nos confortar.

Mas não tardou muito e o dia chegou, e o dia foi hoje.

Já estávamos sentados, quando o gerente chegou e nos disse:

- Ela chegou! – Disse isso e juntando ação às palavras começou a levar nossas xícaras para outra mesa no extremo oposto do salão.

E lá sentados, tristes, vimos a caixote que trazia a tal da geladeira. Exemplar antigo, com puxador, modelo anos sessenta, numa cor entre bege e o amarelo, desbotada, feia e antipática.

Três pessoas para carregá-la e depositá-la.

Na mesa, quase escrevo “canto”, ficamos observando a operação de desencaixotamento do refrigerador e foi quando, para nossa mal-sã alegria, vimos aquele ortóptero supra-citado sair do meio das madeiras e correr entre as mesas.

- Ta vendo? – disse eu com uma placidez invejável – Se tivessem nos deixado quietinhos em nosso canto isso não teria acontecido...

Mas essa é a minha versão do caso, deixo que o Sr. Costa, relate, um dia, o seu ponto de vista.

Muito embora, não haja ponto de vista que devolva a nossa velha mesinha abrigada atrás do caixa e que nos dava uma visão privilegiada das mulheres que subiam as escadas para se servirem no bufe do primeiro andar ...

É meu ídolo tem razão, a vida não presta!

Em tempo, quase que intitulei esse texto de A BARATA E O CAFÉ, mas pensando bem, ficaria alguma coisa entre kafkiano e repugnante e conhecendo bem o Magrão, ele iria reclamar disso também.

Em tempo², achei por bem não declinar, em nome bom gosto, a cafeteria.

2011/12/06

O (QUASE) MEMORIALISTA

O carpete está coalhado de garrafas de conhaque e cerveja, a mesa coberta de folhas e lenços de papel, os olhos injetados de sangue, os cabelos desalinhados, o cinzeiro transbordante de bitucas de cigarro. Blocos de anotações espalhados pela sala testemunham seu esforço em pesquisar fatos, datas, nomes, endereços...
Maldita hora em que encasquetou que seria um memorialista. Jurou que iria passar a limpo sua vida pregressa, daria nome aos bois, tudo o que lembrasse – pouco até agora – seria impresso. Suas memórias dariam – segundo ele:

– Pelo menos oito volumes de aproximadamente oitocentas páginas...

Boquirroto, espalhou aos quatro ventos seu projeto. Ameaçou pessoas, chantageou cunhados e primos; advertiu antigas namoradas que não pouparia detalhes por mínimos que fossem. Recebeu telefonemas ameaçadores, cartas anônimas – embora reconhecesse a caligrafia do missivista...

- Nada nem ninguém me impedira de escrever tudo T U D O !

O prazo de entrega dos originais está terminando e até agora isso:

I

...e nós três subíamos o morro de madrugada, uma hora, duas da manhã, e nada acontecia, não tinha perigo, além, é claro, de tropeçar numa pedra ou num degrau e se machucar. Vinho vagabundo na cabeça, girando, girando.

Chegávamos lá em cima, na casa, bem de mansinho, sem fazer barulho, com os sapatos nas mãos para não acordar a mãe dela, e forrando o chão com qualquer trapo, caímos mortos e só acordando com o sol brilhando sobre as águas do cais do porto, que sempre nos remetia a um samba antigo:

- ”Alvorada, lá no morro, que beleza, ninguém chora não há tristeza, ninguém sente dissabor, sol colorindo, é tão lindo, é tão lindo... ’ – que cantávamos com ressaca e desafinados.

Aquela luz arrebentando as nossas retinas...!

Então, acordados, ou quase, descíamos e íamos trabalhar, com um café ralo no estômago e gosto de corrimão de bordel de terceira categoria na boca pastosa.

A vida era boa, éramos jovens e nada parecia ter prazo de validade, tudo parecia ser para sempre, mas como hoje sabemos:

- ”O pra sempre, sempre acaba...”

A vida nos levou por outros descaminhos; ela, sofrendo um desencanto amoroso entregou-se à fé, tornou-se religiosa, sumiu no mundo como missionária, o outro, por suas opções, morreu na flor da juventude e eu envelheci com as memórias e as lembranças desse um tempo.

Ultimamente tenho revisto as pessoas daquela época, nos reunimos, bebemos bons vinhos, e conversamos com calma, pausadamente, hoje já não temos aquela urgência de antes, queremos até, que o tempo comece a ficar um pouco mais lento, e nos recordamos desses amigos perdidos pelo mundo.

De certa forma, estamos naquele ponto em que, inconscientemente começamos a fazer um balanço de vida, contabilizamos as perdas e ganhos, olhamos para trás e nos sentimos vitoriosos, afinal ainda estamos realmente vivos!

II

Éramos jovens e por seguinte, vítimas de leituras, mais precisamente “O Encontro Marcado”, do Fernando Sabino, então um dia, com a cabeça cheia de vapores de vinhos vagabundos, combinamos nos encontrar dali a quinze anos, no mesmo lugar, às 19h00minhs de (não me lembro mais o ano, NOTA: preciso achar a agenda daquela época...), assinamos até uma ata para sacralizar o acordo, e fizemos Tim-Tim com mais vinho vagabundo (NOTA: pesquisar a marca).

Mas pelos motivos acima descritos, nunca voltamos a nos ver.

Pergunto-me, hoje, como teria sido o encontro?

Sinceramente não faço a menor idéia, mas pelo andar da carruagem à época, creio que não teria sido um grande encontro, duro de admitir, mas com o tempo nosso ego teria sido um grande empecilho à nossa amizade. Olhando em perspectiva, acho que foi muito bem assim, guardo boas lembranças e quase nenhuma mágoa.

Sinto pelas mortes, tantos as físicas como as espirituais, pelas encruzilhadas, pelas trilhas pedregosas que escolhemos, mas a vida é assim mesmo, muitas perdas e ganhos me vieram depois disso!

Ontem pela manhã o síndico do prédio junto com bombeiros e uma ex-namorada apavorada arrombaram a porta de seu apartamento e o encontraram em profundo coma alcoólico, junto ao notebook esfacelado esse bilhete manuscrito:

O projeto – que seria longo - pára por aqui, pois as memórias foram-se assim como se foram aqueles dias...

Suspiros foram ouvidos em muitos lares e bares.

2011/12/01

DO BALANÇO DE FIM DE ANO E DAS MALDITAS LISTAS DE NATAL


Desde a zero hora de ontem estamos em dezembro - só de escrever esta palavra me dá um calafrio na espinha – mês do décimo terceiro salário e das compras de Natal.
Junto ao cartão de crédito tenho uma listinha com nomes de parentes e amigos que serão contemplados com presentes & lembrancinhas.
Isso para um, isso para outro, aquilo para fulano, aquela coisinha para fulana. Cada vitrine uma lembrança, e com sorte, um nome riscado na curta –sim, cada vez mais curta – lista.
Não me preocupo em comprar “o melhor” presente, não, não me amofino mais com isso. Presenteio o felizardo – Ó Criatura abençoada pelo bom Deus por fazer parte desta lista! – com o que eu acho que lhe seria bom, ou com o completaria diante de meus olhos. Ou seja, eu o torno melhor segundo meus padrões de bom gosto.
Bons tempos em que eu presenteava meus amigos mais diletos (sim certamente uma meia dúzia de felizardos) com uísques de primeira linha ou garrafas de vinho importado – lembra daquele certo vinho francês amigo Vadinho? – mas agora diante dessa crise financeira que vivemos fica cada dia mais difícil agraciar alguém com algum produto de boa cepa...
Hoje me limito a canetas-tinteiros, livros – quantas vezes vi a expressão de espanto do presenteado diante da brochura, perguntando-se o que fazer com isso? – e bugigangas outras que enchem os olhos e ocupam espaço nas estantes.
Como dizem por aí: - O que vale é a intenção! Ou: de boa vontade e boas intenções é pavimentado o chão do inferno! – completo com uma certa dose de cinismo e amargura.
Mas quem sabe o que passa em meu coração quando faço isso?

- Nem Sombra sabe! – responderia Vadinho, O Memorioso.

Enquanto digito cá essas linhas, puxo de meu bolso a supracitada lista de “presenteáveis” e começo a riscar nomes.
Quem me conhece e me lê, já sabe o que penso do Natal, da boa-vontade dessa época – aliás, boa-vontade só se for de matar os cunhados e outras criaturas peçonhentas do mesmo jaez; do jantar em família – aqueles parentes que só nos visitam para filar bóia, falar mal dos ausentes; das crianças correndo pela casa – e nenhuma delas é minha!
Ah! Talvez me faça falta a visita dos fantasmas do Velho Dickens...
Já pedi minhas férias para fugir da repartição durantes as festas, assim escapo do ultrajante amigo secreto, dos abraços da chefia, do indefectível panetone com frutas secas, das cidras que nos entregam à guisa de champanhe, dos “feliznatalprósperoanovo” mais raso que uma lâmina de barbear e mais falso que nota de três reais.
Continuando a riscar nomes, vejo que sobraram os mesmo de todos os últimos anos, mau sinal, não arrumei amigos novos e nem fui capaz de me livrar dos antigos...
Termino por aqui minhas lamúrias olhando para essa maldita listinha, que me serve de balanço do ano que termina chegando à seguinte conclusão:

- Só estou ficando mais velho mesmo...

2011/11/29

AS MEMÓRIAS DO PIRATA


Capitão Black, assim me chamam!

Chove.

No céu nuvens cinza escurecem o dia, na minha sala a fumaça de meu cachimbo escurece o ar. O mar está revolto, grandes ondas arrebentam nas pedras, o barulho faz o chão de minha sala tremer. As gaivotas voam atarantadas, hoje não haverá comida para elas...

Capitão Black, assim me chamam!

Não sou um marujo, mas meu sonho sempre foi ser um pirata. O mar me provoca enjôos Homéricos, me chamam assim por conta do tabaco que uso e pelos palavrões que profiro a torto e direito, dizem até que falo mais palavrões que um pirata.

Mais um relâmpago...

Me sirvo de um copo de rum – hábito de velhos marinheiro me dizem os amigos – sento-me em minha poltrona e fico admirando a tempestade se desenrolar. Minha vontade e de ir lá fora e sentir o vento e água na pele, mas essa tosse – segundo uns carolas culpa do hábito de fumar – poderia piorar muito...

- Sabina...

Preciso terminar de escrever minhas memórias antes que elas se tornem vagas lembranças... Não encontro minhas anotações, meus papeis, onde terei largado meus papeis?

Preciso de mais um copo de rum -“ho-ho-ho” - um copo de rum, uma perna de pau faria um som melhor nesse assoalho...

O mar está encrespando ainda mais, a maré vai subir até aqui perto de casa... Isso me lembra Veneza...

- Sabina...

Os dias são mais lindos, para mim, assim, chuva, raios, trovões, maré alta! Só assim me sinto vivo, da minha janela me sinto na proa de um navio enfrentando os mares todos os..., meu Deus quantos são os mares? Preciso beber mais, pois vejo que morrerei sem escrever minhas memórias, nem tudo está perdido, pois ainda lembro de beber e fumar...

- Sabina...

O sino da Igreja, o vento está badalando o sino da igreja, agora o clima vai incomodar os pombos do campanário... Padre, aqui estou pecador, peco e peço perdão, peco e peço perdão!

Pessoa dizia: - Navegar é preciso...

Minhas memórias, nunca serão escritas, onde deixei meu copo? A água está subindo rápido...

- Sabina...

Anoitece.

Agora sim à luz do lampião minhas lembranças aflorarão, memórias aos borbotões, poderei tocar o passado, sentarei com meus fantasmas à volta da mesa e beberemos, riremos, choraremos, falaremos mal dos ausentes, ho-ho-ho uma garrafa de rum!

- Alto lá! Quem me espreita pela janela? Vamos cobarde, apareça! Hahhahaha, velho tolo... Devagar com o rum, velho, velho, esse é seu reflexo na janela... Venham raios, venham relâmpagos! Esse velho lobo do mar não teme nada, venham e vos enfrentarei com minha espad..., ô diabo!, onde está minha espada..., venham que vos enfrentarei com uma garrafa de vazia de rum, venham...

- Sabina...

Esse vento! Com o badalar incessante do sino da igreja não consigo saber que horas são... As gaivotas sumiram da minha vista... Acho que o vento as levou para longe... Minha mesa está cheia de garrafas de rum e nenhum fantasma apareceu, estou abandonado pelos vivos e pelos mortos...

Essa chuva! Nunca fui a Veneza, mas pelo jeito logo terei uma a meus pés, a maré não para de subir...

- Sabina, que você estivesse aqui para ver isso... Pelo menos terias uma boa lembrança ao meu lado. Sabina, essa âncora não para de coçar, acho que a tatuagem inflamou...

Não sou um pirata, sou uma piada, bebo rum, e tropeço nas garrafas espalhadas pelo chão. Com minha luneta vasculho o mar à espera de meu navio, mas começo a me conformar em com meu exílio nessa praia que a chuva e a maré vão lambendo aos poucos. Quem chegará ao fim primeiro? Minhas recordações ou essa ilha?

- Sabina...

Minhas memórias se resumirão a:

- “O vento badalava os sinos da igreja incessantemente...”

Capitão Black, pirata e escritor assim me chamam! Bah!, sou uma piada de mau gosto exilado no fim do mundo...

- Sabina, bem fizestes em me deixar, sequer consegui ser um “mal pirata” e me sai pior como escritor!

Se alguma coisa agradeço a Deus? Somente os meus vícios e nada mais!

Capitão Black, assim me chamam...

MAIS UMA DE NATAL

Vem chegando aquele dia.
Olho para folhinha chego bem perto para poder focar aqueles numerozinhos, para ter certeza que aquele dia está chegando.

Dia 25 de dezembro, mais um maldito Natal, mais uma noite com ceia, gente em volta, presentes sem graça, gente sem graça, gente chata depois de poucos minutos, gente bêbada depois de poucas horas, eu suicida logo em seguida...

O que mais poderá acontecer nesse Natal?

O quê?

Ainda tenho as gravatas do ano passado, as meias do ano retrasado, não tiro os olhos das manchas na parede, uma de cada maldito Natal aqui na minha casa.

O bar está cheio de bebidas importadas, cervejas inglesas e alemãs, que amanhã mesmo vou retirar e esconder em algum lugar onde os cunhados (sim, a gora é plural) não possam farejá-las. Já comprei o que há de pior para ser servido aos convidados, convidados eu disse? Mas eu não convido ninguém para vir em casa, eles é que aparecem, assim como mosquitos no verão, mortes e doenças nas guerras...

Mas o que posso fazer?

Fugir, dizer que vou viajar com a mulher e as crianças?

Não!

Eles seriam capazes de irem juntos...

Uma vez comentaram que seria “ótimo” fazermos, todos juntos, uma viagem de navio. Já me via escondido nos barcos salva-vidas, ou pulando em alto-mar e nadando de volta à praia como um rato que abandona o navio antes de ele afundar (sendo realmente uma pena mergulhar numa água gelada e NÃO ver o navio afundar)...

Logo bati a mão na mesa e disse, quase gritando, um não! Pensando em ficar isolado do mundo junto com eles, preferi tê-los em minha casa, de onde eu sempre poderia fugir pela porta da frente.

Olhando ainda para a folhinha, procuro o telefone da gráfica que a imprimiu, será que possível que eles tenham errado as datas? Antes de ligar, vou contar todos os dias ali impressos...

Droga.

O maldito calendário está certo.

O Natal está se aproximando, cada segundo que perco olhando para esse monte de números com fundo de paisagens e bichinhos...

- Argh! – essa dor no peito outra vez.

Minha mulher diz é síndrome de pânico, mas eu acho que é só o pânico mesmo. Já sinto os tapas nas costas dos – meu Deus, é agora é no plural – meus cunhados. Já sinto a textura dos papeis de presentes vagabundos com os presentes não menos vagabundos com que eles me presentearão.

Na igreja, o padre já me avisou para não doar nada do que eu ganho, não tem saída e fica ocupando todo o espaço reservado aos trabalhos pastorais. Além de me fazerem sofrer, ainda atrapalham na catequização dos infiéis.

- Bando de demônios! – grito, seguido de outra pontada no peito. Com o rosto pálido e com falta de ar, sorrio murmurando comigo mesmo:

- Morro antes do Natal e ferro com a alegria deles...

Mas por um átimo penso:

- E se eles ficarem felizes com a minha morte?

Olhando o calendário, procuro onde minha mulher anotou o número do meu cardiologista.

2011/11/22

SIMONE CHEGA EM CASA

Ela nem bem entrou em casa e ele veio para cima dela.
Primeiro ficou encarando-a por uns segundos, depois aproximou-se desconfiado, olhando para os olhos dela.
Simone já lhe falara diversas vezes para não fazer isso, se não confiava nela que fosse embora, outro como ele se achava aos montes pelas ruas. Parada na porta Simone sustentava-lhe o olhar, assim ficaram mais alguns segundos.
Simone por fim entrou, passou a chave na porta, passou por ele e foi para a cozinha. Ele a seguiu, e ficou disfarçadamente tentando sentir algum cheiro estranho, alguma prova de sua traição, algo que provasse seu passo em falso, a prova definitiva de que ela tinha outro.
Nada conseguiu além de quase levar com o saco de verduras na cabeça. Ele se retirou para a sala, deitou-se no sofá esperando pelo almoço, pois já estava em cima da hora e se ela se atrasasse mais uns minutos ele comeria até os seus sapatos.
Da cozinha vinha o cheiro da comida, o vapor das carnes. Simone o chamou para comer, mas magoado, desconfiado, enciumado, fez que não ouviu e continuou fingindo que dormia.
Simone chamou uma segunda vez, dessa vez quase gritando, ele sabia que quando ela falava assim a coisa iria desandar. Espreguiçando-se, dirigiu-se à cozinha e cabisbaixo começou a comer, a princípio de má vontade, mas a refeição estava tão boa que acabou comendo tudo e repetiu.

- Desgraçada, tinha que cozinhar tão bem? - pensava enquanto devorava o segundo prato.

Quando acabou de comer, olhou para Simone, seus olhos agora brilhavam satisfação.

- Como poderia ter desconfiado dela? Como?

Simone, como que lendo seus pensamentos, aproximou-se dele e começou a fazer-lhe carinho na cabeça, beijou-o, e falou-lhe bem baixinho:

- Seu bobo! Nunca vou trocar você por outro cachorro! Tonto!

Deixando Toby abanando o rabo feliz da vida, foi tomar banho.

EU NÃO SOU EU

Começou assim: estava tomando banho, então estiquei o braço e encostei a mão esquerda na parede. Quando olhei para ela deu-me uma sensação de estranhamento. Que mão era aquela? Gorda, com dedos rechonchudos e curtos, o braço fino..., então olhei os pés inchados, as unhas roídas e pensei: esse corpo é meu? Mas rapidamente a sensação passou e logo esqueci, ou assim pensei. Mas não, a impressão continuou latente dentro de mim. Depois disso passei a não me reconhecer nos reflexos. Ora estranhava o cabelo, ora as orelhas, alguma coisa não estava certa em mim. Aquele sujeito refletido ali na minha frente não era totalmente eu... Lembro agora que sempre brinquei com meus amigos dizendo que eu era um gordo nervoso, por, na verdade, ser um magro aprisionado mundo corpo obeso. Todos riam menos eu. Hoje acho que tenho razão no que digo. Compro roupas de magro, que depois tenho que trocar, sapatos de número menor em que meus pés se recusam a entrar, trombo em paredes, em batentes de portas, esbarro em pessoas, tudo por causa dessa disfunção. Ando nas ruas de cabeça baixa, achando que as pessoas também não me reconhecem. Debalde, todos que passam por mim chamam-me pelo nome, elas vêem em mim um eu que eu mesmo desconheço. Como podem? Não percebem elas que eu não sou eu, que dentro desse corpo vive uma outra entidade? Outro indivíduo que acordou aqui dentro? Pensa que sou louco? Veja o meu reflexo nessa colher. Você acha que eu me vejo assim? Esses dentes, essa barba. Só reconheço nesse corpo os meus olhos, esses olhos são eu, o resto... o resto... À noite me seguro para não ir ao banheiro, temo minha reação. Ainda sonado, o que posso fazer se me assustar com o reflexo do estranho no espelho? Cada dia que passa mais me afasto de mim e dos amigos desse corpo. O que será de mim, o que será de mim no futuro?

- Hummm...

- É só isso que você tem a me dizer? Diante de toda essa angústia, você só diz hummmm?

- Vamos pedir mais um café então.

- Garçom, mais três cafés...

2011/11/21

CLARINHA

Clarinha ficava à porta do hotel, branca, quase translúcida, cabelos negros e escorridos, olhos fundos, quase nunca falava, e quando o fazia era com uma voz tão baixa, um sussurro, um suspiro, que era impossível ouvi-la. Penso que intuía o seu pedido de socorro.
Qual seria a sua idade? Não sei. Parecia uma menina, parecia uma mulher, parecia uma princesa encantada de mármore, tão branca e tão fria...
No alto do primeiro lance de quarenta e seis degraus fica Machadinho, o guarda-costas de Carla Sandra, sentado em sua cadeira de madeira apoiada à parede, de modo que conseguia ver o que acontecia na calçada e no andar superior. Todos, inclusive eu, achavam que Machadinho estava morto e empalhado. Os seus olhos sempre arregalados, fora das órbitas, a baba grossa escorrendo do lado esquerdo do lábio inferior, e a mão direita segurando uma faca.
Clarinha trabalhava para Carla Sandra, que a explorava assim como a outras tantas meninas. Clarinha ficava toda a noite na porta do hotel que, como um camaleão, mudava de cor de acordo com a luz de néon da porta. Ela não arrumava nada, a ninguém chamava a atenção, ficava como que mumificada à porta com chuva ou frio.
Pouco faltava para expirar...
É aí que eu entro. Procurava-a todas as noites, conversava, ou assim pensava, com ela. Pedia-lhe que largasse aquela vida enquanto ainda havia tempo, em vão.
Minhas palavras não encontravam asilo em Clarinha, ela tornara-se impermeável a tudo, ou a quase tudo...
Carla Sandra não suportava a minha presença, segundo ela, perniciosa, e me fazia ameaças e mais ameaças, e da porta do hotel ela gritava para que Machadinho viesse me dar uma lição para nunca mais esquecer.
Machadinho nada dizia e nada fazia, nem piscava, o que me levava a crer mesmo que ele estava morto e empalhado. De Carla Sandra eu esperava tudo, inclusive isso. Embora Machadinho, morto, não se movesse, outros clientes de Carla Sandra desciam os dois lances de quarenta e seis degraus para me pegar.
E como todas as noites, eu corria em disparada para salvar a minha vida e voltar na noite seguinte. Corria ladeira acima, metia-me na rua do mercado, que funcionava a noite toda numa mistura de baile popular e restaurante a céu aberto, onde se encontrava de tudo. Enfiava-me na rua dos avicultores e voava feito um cometa entre as galinhas, pavões, perus, patos, marrecos, deixando para trás uma barafunda de penas e grasnados alucinados. Assim fugia para voltar amanhã.
Chegava em casa com o coração saindo pela boca, trancava a porta com duas voltas da chave, pega-ladrão, tetra-chave, encostava na parede e respirava fundo até conseguir fazer o coração voltar à sua pulsação normal.
Clarinha tornou-se a donzela que eu havia cismado de salvar, e Carla Sandra, o dragão da maldade que eu iria eliminar desse mundo.

- Não consegui nada hoje, mas amanhã à noite volto a tentar...

Noite escura, lá estou eu na porta do hotel. Clarinha, alva e multicolorida, em pé à portaria, esperava, não por mim, não por algum freguês, ela esperava por Carla Sandra, pela sua poçãozinha mágica, era esse o seu pagamento, a mágica alquimia que Carla Sandra lhe dava todas as noites, noite após noite. Esse era o segredo de sua figura diáfana, sua morte a prestações...
Fui a ela como um apóstolo que leva a palavra, fui a ela como um amigo, como um filho, fui como seu anjo da guarda, mas ela, ela não me rejeitou, ela simplesmente não me via, não me ouvia, não me sentia, ela já quase não era mais desse mundo. Pobre Clarinha...
Do alto da escadaria onde Machadinho tudo via, via mesmo?, a voz metálica e cruel de Carla Sandra mais um vez incitava sua clientela contra mim. Fugi como fujo todas as noites, na certeza de que algum dia eu salvaria Clarinha ou então eles se cansariam de me perseguir.
Fugi como fujo todas as noites pela rua do mercado, entro pela rua da avicultura, deixei o meu rastro de penas e grasnados, virei à direita e toquei para casa. Mas hoje, enquanto corria esbaforido para minha casa, encontrei-me com Ishmael - pobre Ishmael que nunca havia lido o Moby Dick -, negro como a noite, sempre encurvado como se carregasse todo o peso do mundo às costas, grandes amendoados olhos amarelos, assim como as palmas das mãos e as longas unhas. Falou-me:

- Irmãozinho, essa branquinha ainda vai te matar, deixe isso pra trás, irmãozinho...

- Clarinha, o nome dela é Clarinha - respondi-lhe irritado, quase rosnando.

Ele tentou segurar-me para conversar, mas o medo de ser pego pelos freqüentadores do hotel me fez escapar do seu abraço e fugir, correr, me esconder em casa.
Como todas as madrugadas, entrei em casa, tranquei a porta com duas voltas da chave, o pega-ladrão, e a tetra-chave. Na cama chorava de frustração.
Mas amanhã haveria de ser outro dia, e minha Clarinha, mesmo sem saber, estaria esperando por mim.

- Ishmael não sabe o que diz... – murmurei entre as lágrimas amargas que desciam pelo meu rosto. - Ishmael é um tolo, Clarinha só me faz bem, ela precisa de mim, ela é o meu Norte.

Eu sabia que precisava me esforçar mais, pois não tardaria o dia em que a magia de Carla Sandra conseguiria diluir de vez a tênue existência de Clarinha e, por conseguinte também a minha.

2011/11/17

PARA VOCÊS MOCINHAS

Essa é para você mocinha, jovem adolescente, que está agora abrindo os olhos para vida. Que está dando os primeiros passos no pantanoso terreno do amor, plena de ilusões, peitos, digo, peito cheio de coragem, preparada para lutar pelo ente querido, aquele ser que não sai de sua cabeça e pulsa no mesmo ritmo que o seu coração.
Sim, minha querida, esse texto, essas humildes letras são para você, só e exclusivamente para você.
Preparada para lê-lo? Está com tempo e paciência?
Sim, paciência, sei o quanto é rara essa mercadoria nessa idade.
Se você respondeu SIM para todas as questões acima, vamos lá, ao interessa.
Dia desses - todos tão iguais ultimamente (desculpem-me, às vezes divago demais) - recebi, se bem conheço quem o enviou, de sacanagem, o endereço de um orkut.
Entrei e sambei.
Não entendo desse negócio, mal e mal tive um blog. Tive que telefonar ao amigo que me enviou o endereço e perguntar como funcionava o negócio.
Explicado, lá fui eu navegar pela página.
Logo entendi a razão de estar lá vendo o que estava vendo.
Era uma moça (há quanto tempo não leio essa palavra!) se declarando a outra moça (!).
Gente, eu não trago cá no peito muitos preconceitos, não. Vocês viram que eu não disse: “Não trago cá no peito nenhum preconceito”?
Não sou perfeito, nem tenho essa tara, afinal, esse é o meu tempero.
Divago de novo...
O que mais me espantou não foram as “juras de amor eterno" - aliás num dado momento uma das amantes até diz: “Não digo que te amo para sempre, porque o sempre, sempre acaba” - muito original, não é? - O verdadeiro incômodo estava nas transgressões, ora gramaticais, ora de concatenação de idéias. Fora, é claro, o modo como esse pessoal se comunica (?). Não consegui ler uma frase completa, foi um inferno tentar compreender.
Que pobreza! Que idéias!
Chafurdam-se num pântano de lugares-comuns, afundam-se na mediocridade das declarações. Juro que não vi naquilo nada mais que a vontade de serem “transgressoras”, “rebeldes”, “mudernas”. Francamente, nem refrão de pagode poderia ser mais pobre e vulgar.
Queridas mocinhas, se vocês querem impressionar alguém, preocupem-se em impressionar o ser amado, não se preocupem com os que estão à sua volta. Impressionem o objeto de seus amores com coisas belas, belas palavras e, por favor, palavras que contenham sentido.
Dar-lhes-ei um exemplo de declaração de amor entre iguais, de autoria de Safo*, poetiza grega. Leiam, apreendam e, se possível for, aprendam:



A Lua Já Se Pôs

A lua já se pôs
As Plêiades também:
Meia-noite: foge o tempo,
E eu estou deitada sozinha.


Outra só para vocês terem um gostinho, e não mais:


A Amada
Ventura, que iguala aos deuses,
Em meu conceito, desfruta
Quem, junto de ti sentada,
As doces falas te escuta,
Goza teu mago sorrir
Quando imagino em tal gosto
É minha alma um labirinto;
Expira-me a voz nos lábios;
Nas veias um fogo sinto;
Sinto os ouvidos zunir
Gelado suor me inunda;
O corpo se me arrepia;
Fogem-me as cores do rosto,
Como ao vir da quadra fria
Entra a folha a desmaiar.
Respiro a custo, e já cuido
Que se esvai a doce vida!
Arrisquemos-nos a tudo...
Contra um angústia insofrida
Tudo se deve tentar.



Por favor, minhas jovens, aprendam a declarar vosso (não ouso dizer o nome**) amor com inteligência e, se não for pedir muito, com delicadeza. Ser sapata não que dizer ser “caminhoneira”, que me desculpem os/as representantes de tão nobre profissão!










*Safo, poetisa nascida em Mitilene, na ilha de Lesbos, por volta do século VII a.C

** Leiam Oscar Wilde

2011/11/16

SOBRE A CULPA E OUTRAS BESTEIRAS


Culpa.
Discutia isso com o Rodrigo hoje. Culpas de haveres e culpas de quereres.
Por que nos culpamos? Por que nos pegaram? Por que nos viram? Por que nossos olhos nos acusam diante do espelho?
Culpa.
Pecamos por pensamentos, atos e palavras.
Ah! Essa minha cultura judaico-cristã. Mas que atire a primeira pedra quem nunca pecou.
(Fico sossegado nessas horas por não possuir ações de pedreiras. Pelo visto ninguém atirou nenhuma pedra, certo?).
Quero crer que a minha meia-dúzia de leitores é honesta, pelo menos consigo mesma.
Culpa.
Nos culpamos por tantas coisas bestas, e nos escusamos de outras realmente condenáveis.
Mas discutíamos outra forma de culpa.
O pensamento, esse monstro indomável que trazemos dentro de nós, e que, por inexplicável que seja, é muito maior que nós.
Quantas vezes nos pegamos pensando em algo inominável, algo que conscientemente nunca faríamos, que condenaríamos veementemente no próximo?
Um exemplo besta, mas um exemplo: vivo fazendo regime, mas não posso ver um doce que chego a babar.

- Pecadilho! - dirão vocês.

Concordo plenamente. Mas, e se vemos uma mulher bonita, uma jovem atraente. E se porventura ela dá com o nosso olhar, sorri, mexe o cabelo daquele jeito, sorri um sorriso de fazer covinhas...? Uma torrente de pensamentos libidinosos nos assola. Por um segundo vivemos uma vida de venturas mil, imaginamos as maiores besteiras. Largar a família, deixar o emprego, começar vida nova na Argentina, quem sabe vendendo pulseiras e outras quinquilharias, ir para a Bahia e morar na praia vivendo de amor eterno...
Um segundo, um mísero e desgraçado segundo, destruímos toda uma vida. Largamos a mulher com quem vivemos os tempos duros, os filhos que às duras penas tentamos educar dentro dos valores (ai, ai, ai) cristãos/ocidentais, e afundamos na lama da maledicência um bom nome construído com muito suor, muita lágrima e sangue.
Culpa = Arrependimento.
Tivemos toda a juventude para errar. E erramos até na hora de errar. Agora o mal já está feito. Não adianta chorar sobre o leite derramado.
Para terminar a conversa, o Rodrigo me enviou esse poema do Olavo Bilac:


Remorso
Às vezes uma dor me desespera...
Nestas ânsias e dúvidas em que ando,
Cismo e padeço, neste outono, quando
Calculo o que perdi na primavera.
Versos e amores sufoquei calando,
Sem os gozar numa explosão sincera...
Ah! Mais cem vidas! com que ardor quisera
Mais viver, mais penar e amar cantando!
Sinto o que desperdicei na juventude;
Choro neste começo de velhice,
Mártir da hipocrisia ou da virtude.
Os beijos que não tive por tolice,
Por timidez o que sofrer não pude,
E por pudor os versos que não disse!

A propósito, aquela mocinha não sorriu para você, foi para aquele rapaz musculoso e cheio de tatuagens que estava encostado no balcão do bar bebendo cerveja...
Positivamente, a vida não presta.

2011/11/11

UM ESTRANHO NA CIDADE

Uns diziam que ele havia chegado às seis horas da manhã, com um capotão grosso de lã, chapéu preto de abas largas – parecia até um corvo – dizia Dircinha do Feijó; botas sete léguas e cara de mau, muito mau mesmo.

Já outros – sempre tem “os outros” – diziam que ele chegou de carro – que marca? – e alguém aqui nesse fim de mundo entende de marca de carro?, basta não ter uma mula, cavalo ou burro puxando, que vira carro na língua desse povinho – vermelho, vermelho pecado - olha ai outra vez as expressões que essa gentinha usa – e passou voando pela praça levantando uma poeira danada – como se fosse preciso passar alguma coisa voando prá levantar poeira aqui...

A verdade é que ninguém entendeu o que foi que aconteceu mesmo. Sabe-se somente que um estranho passou pela cidade, se a pé, lombo de burro ou carro, sabe-se que ele passou por aqui. A poeira no ar não prova muita coisa, até galinha ciscando aqui levanta pó da rua.

O estranho, além de um estranho aqui na vila, foi o sujeito estar usando um capote daquele de lã com um calorão desses. Imagine, até as árvores estão se desfolhando por causa da canícula...
Seu Jorginho da Ceição, acha que ele estava carregando uma arma dentro da roupa, e começou a contar pela milionésima vez o único filme (que era de gângster) que ele assistiu na vida num cinema na capital, e lembra até hoje aquela comida branca e salgada que comeu lá. Apostava que era uma “vingester”, nem sabia pronuncia “winchester” e pôs-se a falar, falar e falar até que Ceição o mandou prá dentro lavar as roupas que precisavam ser entregues amanhã. – Esse homem não para de falar nesse filme há trinta e dois anos, trinta e dois anos ouvindo isso – e olhando pros lados disse:



- Vô lhe contar um segredo, tô guardando dinheiro pra levar ele no cinema da capital no Natal, tomara que ele mude o “disco” depois disso.


Na rua em frente ao Bar do Tadeu, o povinho se reunia e acrescentava mais histórias sem sentido nesse acontecimento mundano.

Houve quem dissesse que o eclipse tinha sido culpa do estranho, seu Mundinho Meloso (Raimundo pra patroa quando ele chega bêbado em casa) reclamou que o sujeito tinha roubado a sua aposentadoria quando tudo ficou escuro. Todos riram. O velho Meloso, nunca via a cor da aposentaria, que ia direto pro bolso de Dona Lindoca, e chorava essa velha história na ilusão de convencer alguém a lhe pagar outra birita.

Antes que o senhor se pergunte desse eclipse já lhe respondo. Nada entendo das vontades do “Grande Arquiteto” – li isso nas “Seleções” na barbearia do Astolfo Alemão - se Ele resolveu apagar o dia por uns minutos, Ele deveria ter lá suas razões, fosse por economia de sol, fosse prá assustar seu Mundinho Meloso, tudo que posso afirmar é que realmente houve um eclipse, mas que ninguém, eu posso jurar com a mão sobre a bíblia, que ninguém foi roubado pelo estranho, até porque, verdade seja dita, quem não estava no Bar do Tadeu, correu pra se abrigar na Igreja...

Quando o sol voltou e o céu ficou azul de novo, as galinhas acordaram pela segunda vez nesse dia e começaram a ciscar e cacarejar como se nada tivesse acontecido – como esses bichos tem coisas a nos ensinar! – Aí os sinos tocaram como se anunciassem um novo mundo, as velhas corocas, - com exceção de Dona Marciana, cada dia mais linda, que acordando àquela hora, não se apercebeu de nada e perguntou se tinha se levantado muito cedo para acordar com os sinos da Igreja – correram de volta à rua.

- Como? Acho que não entendi a pergunta de Vossa Autoridade. O que foi que aconteceu com o estranho? Sei não. Foi tanto alvoroço, tanto diz-que-me-diz, que o homem entrou e saiu da cidade sem ninguém saber quem ele era, mas na minha opinião, se é que o eu posso dar a minha opinião, eu acho que o estranho entrou na bifurcação errada, à esquerda, e veio parar nesse fim de mundo por engano...

As vezes isso acontece, até me lembro que em mil novecentos e setenta e cinco...

2011/11/08

TOMANDO CAFÉ, EDMUNDO PENSA



Sobre a mesa uma xícara de café quente. Dela, uma fumaça sobe e espalha o seu aroma. Sentado à mesa, Edmundo, desligado, de olhar vago, mexe e remexe a colher na xícara, o sachê de açúcar está intocado, e sobre o pãozinho torrado na chapa começam a pousar moscas.

Mexe, mexe, mexe e o café começa a esfriar.

O bar esvazia, as pessoas vão-se, umas trabalhar, outras passear, outras, quem sabe?

O café já esfriou. Na parede os ponteiros do relógio vão marcar mais uma hora e Edmundo nem se apercebe disso.

- Ontem a noite aconteceu de novo... - Ele murmura. O garçom se aproxima na esperança de dar-lhe a conta e enfim despachá-lo. Mas que nada!

Ele ignora o garçom e continua a girar a colher na xícara de café. O tempo continua a passar indiferente a Edmundo e a aflição do garçom.

Edmundo baixa a cabeça e olha para a calça.

- Ontem aconteceu outra vez, meu Deus, outra vez...

O garçom não se abala a desencostar-se do balcão, olha para o relógio da parede, confere a hora com o seu relógio de pulso e balança a cabeça ao ver o velho falando sozinho e mexendo a colher na xícara.

- Pobre velho, se eu tiver que ficar assim prefiro morrer. - Fala para si mesmo enquanto procura alguma coisa no bolso da calça.

O som da xícara quebrando-se no chão chama-lhe a atenção e ele corre para a mesa do velho que com olhar estático olha para a calça manchada do café que ainda escorre da mesa.

- Ontem à noite urinei nas calças, hoje me sujo de café... Constrangendo o garçom, ele começa a soluçar...
E se não fosse a chuva

O frio
(mais na alma que no corpo)
Se não fosse a vontade de um dia claro de céu azul sem calor, sem moscas, sem minhocas na cabeça, sem telefonemas, sem contas a pagar, sem tristezas, sem ninguém para compartilhar o pouco, o muito, o quase que tenho, tive ou quem sabe, terei.
Se não fosse a solidão
De olhar da janela o mundo
As pessoas sorrindo
As crianças correndo
Os cachorros latindo
Se não fosse o estar sozinho a andar de ônibus
Aquela chuvinha chata nos vidros, e
Não ter ninguém ao meu lado
Não fosse
Não tivesse sido
Não houvesse jamais
Não...
Tantos nãos
Tantas possibilidades perdidas
Se não fosse tanta incompreensão
Tantas comparações
Se não fosse
Se não fosse
Se não fossem essas tantas coisas
Não estaria agora escrevendo isso.
- Antes só, só, só, só...


(o eco não a deixou completar a frase)

2011/11/07

TRAGO

Trago sim
No bolso o cigarro
Nos pulmões a fumaça
Trago sim
Sempre
Trago

HOJE ACORDEI SEDENTO DE SANGUE

Acordei, estranhamente, sedento de sangue.
Fui à cozinha, bebi um copo d’água, que imediatamente cuspi, não consegui engoli-la. Realmente a sede era de sangue. Descobri que sou uma vitima do sentido figurado.
Sedento de sangue, estou com sede de sangue...
Como resolver isso?
O sol nasceu, abri as cortinas preocupado, trêmulo, medroso - e se o sol me queimasse?
Claro que ele não me queimou, afinal não sou um vampiro - daqui vejo meu reflexo no espelho! -, sou só uma pessoa normal que, sabe-se lá por que, hoje acordou sedento de sangue.
O dia prometia ser quente, e na TV anunciava chuva para o fim da tarde.
Troquei-me, e saí a trabalhar ainda sedento de sangue e em jejum, nem mesmo a geléia de goiaba me atraiu....
Ao chegar ao escritório deparo com minha mesa cheia de papéis, espanto-me e fico indignado, pois ao sair ontem ela estava limpa.
Alguém fez serão e deixou o resto para mim!
Estou sedento de sangue quente e espesso e alguém me confunde com um abutre comedor de carniça!
Sento-me à mesa, meço a quantidade de papéis sobre ela, meus dentes rangem e, juro, sinto meus caninos crescerem...
Acordei sedento de sangue e estou começando a gostar disso.
Toca o interfone, e pelo calafrio na espinha, é a Dona Regina, minha chefe, chamando-me à sua sala. Sinto a sede aumentar seguida de um antegozo sobrenatural e uma saciedade pronta a realizar-se.
Levanto-me, olho o reflexo de meu rosto no cromado do grampeador e, sorrindo, percebo que meus caninos cresceram mesmo. Sigo em direção à sala da Dona Regina, faço toc-toc só de sacanagem, pois ela detesta isso, gosta de ser anunciada pela sua estagiária. Abro a porta antes que ela responda, encosto-me no batente e digo:

-Hoje acordei sedento de sangue...