Clarinha ficava à porta do hotel, branca, quase translúcida, cabelos negros e escorridos, olhos fundos, quase nunca falava, e quando o fazia era com uma voz tão baixa, um sussurro, um suspiro, que era impossível ouvi-la. Penso que intuía o seu pedido de socorro.
Qual seria a sua idade? Não sei. Parecia uma menina, parecia uma mulher, parecia uma princesa encantada de mármore, tão branca e tão fria...
No alto do primeiro lance de quarenta e seis degraus fica Machadinho, o guarda-costas de Carla Sandra, sentado em sua cadeira de madeira apoiada à parede, de modo que conseguia ver o que acontecia na calçada e no andar superior. Todos, inclusive eu, achavam que Machadinho estava morto e empalhado. Os seus olhos sempre arregalados, fora das órbitas, a baba grossa escorrendo do lado esquerdo do lábio inferior, e a mão direita segurando uma faca.
Clarinha trabalhava para Carla Sandra, que a explorava assim como a outras tantas meninas. Clarinha ficava toda a noite na porta do hotel que, como um camaleão, mudava de cor de acordo com a luz de néon da porta. Ela não arrumava nada, a ninguém chamava a atenção, ficava como que mumificada à porta com chuva ou frio.
Pouco faltava para expirar...
É aí que eu entro. Procurava-a todas as noites, conversava, ou assim pensava, com ela. Pedia-lhe que largasse aquela vida enquanto ainda havia tempo, em vão.
Minhas palavras não encontravam asilo em Clarinha, ela tornara-se impermeável a tudo, ou a quase tudo...
Carla Sandra não suportava a minha presença, segundo ela, perniciosa, e me fazia ameaças e mais ameaças, e da porta do hotel ela gritava para que Machadinho viesse me dar uma lição para nunca mais esquecer.
Machadinho nada dizia e nada fazia, nem piscava, o que me levava a crer mesmo que ele estava morto e empalhado. De Carla Sandra eu esperava tudo, inclusive isso. Embora Machadinho, morto, não se movesse, outros clientes de Carla Sandra desciam os dois lances de quarenta e seis degraus para me pegar.
E como todas as noites, eu corria em disparada para salvar a minha vida e voltar na noite seguinte. Corria ladeira acima, metia-me na rua do mercado, que funcionava a noite toda numa mistura de baile popular e restaurante a céu aberto, onde se encontrava de tudo. Enfiava-me na rua dos avicultores e voava feito um cometa entre as galinhas, pavões, perus, patos, marrecos, deixando para trás uma barafunda de penas e grasnados alucinados. Assim fugia para voltar amanhã.
Chegava em casa com o coração saindo pela boca, trancava a porta com duas voltas da chave, pega-ladrão, tetra-chave, encostava na parede e respirava fundo até conseguir fazer o coração voltar à sua pulsação normal.
Clarinha tornou-se a donzela que eu havia cismado de salvar, e Carla Sandra, o dragão da maldade que eu iria eliminar desse mundo.
- Não consegui nada hoje, mas amanhã à noite volto a tentar...
Noite escura, lá estou eu na porta do hotel. Clarinha, alva e multicolorida, em pé à portaria, esperava, não por mim, não por algum freguês, ela esperava por Carla Sandra, pela sua poçãozinha mágica, era esse o seu pagamento, a mágica alquimia que Carla Sandra lhe dava todas as noites, noite após noite. Esse era o segredo de sua figura diáfana, sua morte a prestações...
Fui a ela como um apóstolo que leva a palavra, fui a ela como um amigo, como um filho, fui como seu anjo da guarda, mas ela, ela não me rejeitou, ela simplesmente não me via, não me ouvia, não me sentia, ela já quase não era mais desse mundo. Pobre Clarinha...
Do alto da escadaria onde Machadinho tudo via, via mesmo?, a voz metálica e cruel de Carla Sandra mais um vez incitava sua clientela contra mim. Fugi como fujo todas as noites, na certeza de que algum dia eu salvaria Clarinha ou então eles se cansariam de me perseguir.
Fugi como fujo todas as noites pela rua do mercado, entro pela rua da avicultura, deixei o meu rastro de penas e grasnados, virei à direita e toquei para casa. Mas hoje, enquanto corria esbaforido para minha casa, encontrei-me com Ishmael - pobre Ishmael que nunca havia lido o Moby Dick -, negro como a noite, sempre encurvado como se carregasse todo o peso do mundo às costas, grandes amendoados olhos amarelos, assim como as palmas das mãos e as longas unhas. Falou-me:
- Irmãozinho, essa branquinha ainda vai te matar, deixe isso pra trás, irmãozinho...
- Clarinha, o nome dela é Clarinha - respondi-lhe irritado, quase rosnando.
Ele tentou segurar-me para conversar, mas o medo de ser pego pelos freqüentadores do hotel me fez escapar do seu abraço e fugir, correr, me esconder em casa.
Como todas as madrugadas, entrei em casa, tranquei a porta com duas voltas da chave, o pega-ladrão, e a tetra-chave. Na cama chorava de frustração.
Mas amanhã haveria de ser outro dia, e minha Clarinha, mesmo sem saber, estaria esperando por mim.
- Ishmael não sabe o que diz... – murmurei entre as lágrimas amargas que desciam pelo meu rosto. - Ishmael é um tolo, Clarinha só me faz bem, ela precisa de mim, ela é o meu Norte.
Eu sabia que precisava me esforçar mais, pois não tardaria o dia em que a magia de Carla Sandra conseguiria diluir de vez a tênue existência de Clarinha e, por conseguinte também a minha.