2010/09/24

OUTRO CAPÍTULO

Depois de ser imortal por mais de mil anos, morri. Morri em paz, ok a flechada até que doeu um pouco, mas morri.

Ou assim pensei.

De repente, não mais que de repente, apareço do nada, no alto de uma montanha de frente para o mar. Céu azul, uma ou outra nuvem no céu, no chão minha velha e conhecida sombra.

O que estou fazendo aqui? – me pergunto, ainda meio boba e atordoada, não sei por quanto tempo estive morta, mas ainda me sentia cansada...

Olho à minha volta – tentando me localizar, afinal voltar da morte é meio desnorteante.

Logo aparece um vulto, que se transforma num homem, ele vem sujo, suado, enlameado, cabelos desgrenhados, traz na cintura uma espada – ok, ok,ok, pela espada percebo que não fiquei muito tempo morta, o que explica meu cansaço - ele vem em minha direção – Sobrou prá mim! – pensei olhando para minhas unhas.

Viro de costas para ele e volto a encarar o mar.

Ouço seus passos no chão de areia e cascalhos, ele aproxima-se, seus braços fortes agarram minha cintura, ele fede, fede muito, ele levanta-me do chão, e me beija.

- Quando vou fazer parte de uma história decente? – Lógico, pela cara de parvo, ele não entendeu que a pergunta era retórica e dirigida a outra pessoa. – Meu destino será sempre esse? Tentei fugir de seus braços, mas em vão, pois sua força era avassaladora e esse corpo frágil.

Olho para os céus e me pergunto por que isso me acontece? – Logicamente a resposta não vem, e vez disso gaivotas gritando passam voando por nós.

Carregada às suas costas descemos em direção à praia, ele nada diz, por minha vez, grito, arranho-lhe as costas, me descabelo – pelo menos dessa vez meus cabelos são naturalmente cacheados! – mas nada que faço chama-lhe a atenção, e pressinto que deveria ter permanecido morta.

Pelos trirremes em alto-mar me parece que ainda faço parte da mitologia grega...

O quê esse autor tem contra mim, o quê.

Não sei quanto tempo estive desacordada, mas agora me vejo numa tenda branca, cercada de presentes, pulseira e diademas de ouro, ânforas de vinhos, sendo que uma boa meia-dúzia estava vazia – o que explica essa dor de cabeça dos Hades.

Onde me meteram dessa vez, onde?

O que me espera o futuro?

Ser mãe? Ter cólicas? Ficar viúva cedo? Virar refrão de “Mulheres de Atenas”?

Quando essa história – comigo – irá acabar?

Lá fora começa a ventar, as velas dos barcos inflam, logo meu herói virá buscar.

O que me espera no próximo capítulo?

2010/09/22

CRÔNICA

HOJE DIA INTERNACIONAL PARA DEIXAR O CARRO EM CASA
(ou, seja besta e –como sempre - faça a sua parte mais uma vez)



Agora me responda você que se matou para comprar o dito carro, pagou (ou ainda está pagando) o preço absurdo de um, vai deixá-lo em casa, se apertar num ônibus, que fatalmente estará atrasado, cheio “até o ladrão”, com um motorista que pensa que vai buscar a mãe na zona de tanto que corre, ou que, por achar que a velha já está tranqüila e trabalhando, vai devagar sem se importar com seu horário de entrar no serviço?

Se você estiver bem localizado no coletivo (vamos torcer para também não estar chovendo...) – entenda, apertado lá nos fundos, encostado à porta de saída – irá perder o espetáculo de humilhação sem tamanho que é ver uma idosa esconder-se atrás de alguém mais jovem, e entendam por jovem qualquer um que não aparente mais de cinqüenta anos, pois se esse “jovem” não fizer um sinal de parada, o ônibus ignorará o velho/velha no ponto quer esteja fazendo sol ou chovendo a cântaros...

Vamos lá, faça a sua parte, afinal você não faz mais nada mesmo! Não está achando que só porque paga uma meia-dúzia de impostoszinhos acha que já fez mais que a sua parte...

Deixe o carro em casa, deixe de tomar banho para poupar a água do planeta, deixe de respirar, assim você, sim você mesmo seu inconseqüente, deixa de depositar sua taxa de CO² na atmosfera.

Ontem foi dia da miserável da Árvore.

Criatura mesquinha que deveria ser banida da face da terra. Faz muito bem certo vereador – um herói aos olhos de seus pares - que tem urticárias cada vez que vê uma delas pela frente.

Uma praga que solta folhas nas ruas, arrebenta calçadas, faz pessoas honestas e boas torcerem seus delicados pezinhos em suas malditas raízes. De todas essas pragas, tem aquelas que, Santa-desfaçatez, lançam seus frutos sobre nós, sobre nossos carros, casas, sujam e mancham nossas calçadas. As autoridades estão certas – aliás, me mostrem quando elas estão erradas – em derrubarem árvores, asfaltar ruas, concretar tudo o que vêem pela frente.

Mas como sou um ser humano desprezível, nojento, egoísta, fdp mesmo, vim trabalhar de carro, meu carro zero – que pagarei em meses sem fim, mais IPVAs, combustíveis adulterados (álcool demais na gasolina, água demais no álcool), Pedágios, Flanelinhas – e de dentro dele, ouvindo boa música, vi ônibus e mais ônibus lotados, sujos, soltando fumaça preta – ai de meu carro se não passar na Inspeção Veicular Obrigatória... – e sorrindo cinicamente (eu não presto mesmo!) comentei com minha mulher:

- Deus estará vendo o sacrifício desses bons cidadãos em prol do Planeta Terra?

Não fosse uma pequena e dolorosa inflamação em meus pulmões, juro que teria acendido um cigarro...

2010/09/21

Essa é para o Amigo Vadinho

Que venham os vendavais
os tufões
que soprem sobre mim todos os ventos do mundo
venham,
venham,
não os temo
pois saibam,
sou careca!

2010/09/20

THRILLER


Agitação.

Gente entrando e saindo da sala apinhada. Música alta, mesas cheias de petiscos e bebidas.

Edemeia num canto da sala encara Pedro, sentado no braço da poltrona em que está sentada com Zildinha .Ele coloca uma a uma as uvas rosadas na boca carnuda e sensual da ex-namorada – nutre o sonho de tê-la de volta um dia, ou mesmo por uma noite,o que vier primeiro - sem se dar conta que é alvo dos olhares tristes da morena encostada no canto escuro do outro lado.

Zildinha, fútil como sempre foi, é e será, come as frutas enquanto procura por Heliomário, amante recente (na verdade são amantes há dois meses, nove dias e seis horas) que neste momento encontra-se à beira da piscina tomando uma “marguerita”[1](sem limão, sem cointreau, sem sal e sem gelo moído) e pensando se vale a pena continuar com Zildinha, com o “emprego”, e levando essa vida de fugitivo procurado em todo o MERCOSUL..

Começa a tocar uma rumba e quem gosta[2]de músicas caribenhas vai dançar e quem não gosta sai para fumar na rua ou à beira da piscina. Oitenta por cento dos convivas saem...

Heliomário joga seu cigarro na água e resolve dançar. Melhor música ruim que aquela gente, afinal alguém ali poderia reconhecê-lo.

Edemeia ao ver Heliomário puxa-o para dançar, ele a empurra para o lado e segue para uma mesa cheia de bebidas, ao passar pela poltrona no canto da sala vê, desgostoso, Zildinha sendo alimentada com uvas, ele olha profundamente em seus olhos e discretamente passa a longa unha do dedo polegar da mão direita no pescoço Zildinha engasga e Pedro perde a cor.

A música continua alta e chata, Heliomário bebe, Zildinha engasga, Pedro corre pelas sombras e foge da festa, Edemeia encostada em seu canto da parede onde Heliomário a jogou, chora.

Pedro na rua, encosta-se num poste e sob a luz amarela passa um lenço no rosto enxugando o suor que brota da testa. Assustado ele se pergunta onde já havia visto aquele rosto, espreme os miolos e procura nos arquivos-mortos de seu cérebro onde já tinha visto aquele sujeito.

Nunca mais Pedro irá esquecer aquele discreto aviso de morte, nunca mais. Tremendo, queima os dedos três vezes antes de, enfim, conseguir acender o cigarro – pelo lado do filtro.

Heliomário embriagado, começa a procurar por Zildinha, e depois de pouco procurá-la a encontra-a saindo do toalete.

Ele a pega pelo braço e em seguida segura seu corpo todo que desmaia de puro terror. As mulheres à volta gritam gritinhos mais de afetação que de medo, e levam Zildinha de volta ao toalete esperando que a água em seu rosto a trouxesse de volta à consciência.

Tal expediente realmente funciona e Zildinha recupera-se, e ato-contínuo, tenta fugir pela pequena janela. Não consegue.

Da porta vem os sons dos chutes de Heliomário – controlado, ele não grita..

As mulheres apavoradas fogem em desabalada carreira ao verem a porta vindo abaixo e deixam Zildinha entregue a própria sorte. Má sorte, má sorte.

Enquanto isso na sala...

Mudam a música, passam a tocar Frank Sinatra, e enquanto Heliomário estrangula Zildinha o “Velho Olhos Azuis” canta “I've Got You Under My Skin”[3]. Ele murmura bem perto de seus ouvidos:

- Essa era – ênfase no era - a nossa música, lembra?

Zildinha tentando angariar alguma simpatia de Heliomário aproveita o “empuxo” e sacode a cabeça concordando com ele.

- I've got you under my skin I've got you deep in the heart of me. So deep in my heart that you're really a part of me. I've got you under my skin – murmura enquanto aperta lentamente o pescoço de Zildinha.

Mas antes do “estalo final” começa o foguetório lá fora e todos acorrem para ver os fogos de artifício. A voz do velho Sinatra é abafada e tudo se perde no barulho dos rojões, morteiros...

Zildinha entrega os pontos e sabe que o fim se aproxima inexoravelmente. Mas antes de seus último suspiro o celular de Heliomário toca. Ele atende segurando o pescoço de Zildinha com o pé esquerdo e com o pé direito trava a porta quebrada do toalete.

- Alô – diz bruscamente. Segundos depois desliga o parelho e o guarda no bolso do paletó, apruma-se e tirando o pé de cima do pescoço de Zildinha diz:

- Tua sorte é eu ser profissional. Tenho um serviço a completar, quando eu voltar nós continuamos de onde paramos.

Saindo do toalete segue em direção à piscina, perde-se em meio a multidão que pula, grita e dança ao som dos fogos.

Zildinha foge, corre e pula o muro da casa perdendo-se na rua. Talvez procure por Pedro (que não tornará a encontrar nunca mais) talvez procure voltar para casa, mas em casa encontrará Heliomário, pensa bem e muda de direção, sumindo-se na noite...

Em meio a confusão, um crime será cometido e não encontrão o criminoso, e somente dias mais tarde darão pela falta de Edemeia, que num canto do jardim viu e foi vista por Heliomário.


[1].Ingredientes:
- 3/4 de dose de tequila branca
- 1/3 de
dose de cointreau
- 1/3 de dose de suco de limão
Modo de preparo:
Bater todos os ingredientes e servir em taça de coquetel. Crustar a borda do
copo usando suco de limão e sal.

[2]
Há quem?

[3] (Irving
Berlin)[Recorded December 21, 1960, Los Angeles]


SOBRE ESTRELAS E CIGARROS

Tarde da noite no alto dum edifício no centro da cidade um casal acocorado no parapeito conversa.
- Como o céu fica mais bonito visto daqui.
- É sim...
- Só isso?
- O que mais você quer que eu diga?
- Me dá um cigarro.
Ele acende o cigarro, dá uma tragada, solta fumaça e por segundos consegue apagar as estrelas.
- Por que você me chamou aqui? – Pergunta a companheira.
- Para ver as estrelas, aqui ainda é o melhor lugar. Compare o brilho azul delas com as luzes da cidade lá embaixo, as vermelhas dos anúncios, amarelas e verdes das lojas, das farmácias. O verde-amarelo-vermelho do gado que pasta nas ruas. Dos postes...
- Muito sentimental hoje... Meditabundo ou metafísico?
- Não. Nem uma coisa nem outra. É que olhar para o céu à noite me deixa assim..., querendo entender o que nos acontece, o que nos faz ser como somos... O céu...
- Céu, luzes, noites e dias, é tudo igual prá mim...
- Não sei como ainda ando com você, não sei mesmo. Nem parece que somos iguais...
- O que está te acontecendo? Na fase da crise de identidade? Quem é? De onde veio? Para onde vai? Tendo o quê e onde comer, não me interesso por mais nada nessa vida! – Diz num misto de futilidade e provocação enquanto cheira o ar como que procurando por algo.
- Me dá outro cigarro! Acho que você não me compreende e não se compreende também... Nunca olha para os lados, nunca olha para o céu... Veja as estrelas, nelas estão todas as respostas!
- Espero que algum dia alguém me explique essa sua fixação por estrelas. Olhe as pessoas lá embaixo, veja se alguma delas tem essas preocupações metafísicas, veja se alguma delas perde tempo com isso. Elas seguem em frente como rebanho que são...
- Acho que você é um caso perdido, me dá logo esse maço de cigarros. Quero fumar em paz, só eu, a fumaça e as estrelas. – Dizendo isso ele empurra a companheira do peitoril do 18º andar do prédio onde conversavam.
- Droga, esqueci do isqueiro! – pula logo atrás e abrindo suas asas fala ao chegar perto da companheira que plana no ar:
- Me dá isqueiro, depois te encontro em casa.
Batendo suas asas de couro cada um segue o seu caminho, pois a noite ainda é uma criança e a fome ainda precisa ser mitigada.

O PESCADOR


Ok. Dois calmantes, uma dose de uísque, uma caipirinha de vodka, suco de maracujá no cantil, cortesia de Dona Madalena, a esposa. E o espírito já estava preparado para sair e pescar.

Calmo, tranqüilo, sereno, respirando pausadamente.

A vara, os anzóis, as chumbadas, linhas, iscas, samburá – por pura pretensão – a faca, o alicate, para tirar o anzol da boca do peixe ou do dedo, ou o que for fisgado primeiro.

A calma, o importante era manter a calma conseguida, a fleuma britânico-etílica, não pensar em nada, nada que causasse qualquer preocupação, nada, nada que o inquietasse. Ele ia p-e-s-c-a-r hoje.

- “Dia de pesca” – avisou-lhe a mulher.

Ele não queria ir pescar, Vadinho já gostara muito de pescar, quantas vezes ele esqueceu o cinema com a mulher?, ele não esqueceu de ver o filho na maternidade por causa da pescaria?, quase esqueceu do próprio casamento por causa disso?

Mas hoje, hoje Vadinho preferiria até ir à missa a ter que pescar. Ele ainda quis ir à casa da sogra almoçar, mas a mulher, firme, insistia que hoje era dia de pescar e que ele não arrumasse desculpas.

Vadinho saiu à rua cabisbaixo.

- O anti-depressivo já perdeu o efeito! E arrastando os pés foi em direção à praia.

- A mulher mandou pescar Tião? – riam-se os vizinhos.

- Não esqueça do protetor solar na calva! – gritou outro.

- Miseráveis. – resmungava, triste e deprimido. O anti-depressivo já mostrava-se sem efeito.

Poucos minutos depois ele chegava à praia. Andou pela areia, molhando os pés na água gelada e salgada. Olhando para o horizonte, aquele céu claro e límpido o desanimava ainda mais de pescar. Com esse tempo bom não tenho desculpas. –Lamuriou-se. Logo chegou às pedras e começou a preparar as linhas e anzóis.

Olhou ainda para o nada por muito tempo, esperando que algo dramático acontecesse e o impedisse de começar a pescar...

- Herman, mande-me uma Baleia Branca! – murmurou em forma de prece. Mas o Herman nada lhe enviou!

Alguns banhistas, de longe o observavam intrigados.

- Um, dois, três! – Num forte arremesso a chumbada levou o anzol e a isca para longe dentro d’água.

Vadinho nem esperou a linha molhar e começou a recolhe-la, não queria correr o risco de fisgar algum peixe. Afinal ele estava ali para se d-i-s-t-r-a-i-r, como lhe ordenara o médico e insistira a esposa. Ninguém dissera nada que ele deveria levar peixes para casa, ninguém.

- Distrair, distrair, distrair, distrair – enquanto recolhe a linha Vadinho repete o mantra – distrair e não pegar peixe, distrair e não pegar peixe, distrair e não pegar peixe...

Jogou a linha outra vez, e como antes, puxou-a de volta, e cada vez mais rápido repetia esse movimento, que de longe, onde estavam os banhistas, Vadinho mais parecia estar querendo abater as gaivotas do que capturar um peixe.

- Eu não queria vir pescar, eu não queria vir pescar hoje, eu não quero pescar nunca mais, nunca mais – e agitando a vara, a linha dispara em direção ao mar. – Não, não, não – desesperado Vadinho quase quebrando a carretilha puxa a linha de volta e por fim acaba por embaraçar tudo. Nervoso, joga a linha, anzóis, iscas, chumbadas e vara na água. Senta-se emburrado na pedra, agora quente.

Passado alguns minutos, recuperado da pequena crise de nervos, Vadinho decide ir embora, ia chegar em casa fingindo-se calmo, mentiria dizendo que pescou muito mas acabou deixando os peixes no bar, onde aproveitou para beber com os amigos. Claro que a mulher acreditaria nele, afinal qual mulher não acusa o marido de ficar bebendo em bar?

Decidido, começou a limpar a areia colada nas pernas, na bermuda e nos pés. Deveria ter pensado nessa mentira há mais tempo, e assim nunca mais teria que ser obrigado a pescar.

Afinal pescador profissional aposentado, a última coisa que ele queria nessa vida era “relaxar” pescando...

AH! O AMOR

Para O Mário e sua bárbara dor



não sofras meu jovem
tu ainda não sabes nada de nada
e sofres por tão pouco
lá frente
no futuro
(por isso não te mates ainda)
tu verás que aquilo não era dor
talvez fosse
quando muito
um beliscão no orgulho
ferido, sim, eu reconheço
mas não são dores de amores
sofres
sim, outra vez reconheço
sofres, mas não sofres a falta dela
sofres, mas é por não tê-la e o outro sim
sofres, pois outros braços que não teu
a abraçam
outros lábios que não o teu
a beijam
outro teto que não o da tua casa
a abriga à noite
mas isso, embora doa muito,
não é amor
pode ser o despeito
a vontade assassina
(segure essa onda)
de torcer o pescoço do rival
que até pouco tempo
apresentavas como mais que amigo:

- um irmão!

pense assim
tudo passa
o que tens é uma paixão
uma febre
uma doença de verão
passageira
amanhã
(por isso pedi para que não te matasses)
rirás disso
e não rirás sozinho
rirás e muito
em companhia desses
que hoje te atormentam
e fazem de tuas noites
pesadelos suarentos e arfantes
cuida-te hoje
para tenhas amanhãs
siga em frente
nem olhes para os lados
(exceto é claro, na hora de atravessar ruas)
e, preste atenção
lá no horizonte
que não é assim tão distante
verás, sem sombra de dúvida, acolá
outra(s) garota(s)
e comentarás rindo
(via e-mail?, telefone?)
com esse canalha de seu,
hoje ainda, odiado ex-amigo:

- cara, encontrei a mulher da minha vida!

e, pode até, ser ela
pode também não ser
mas nesse dia
nem sequer
te lembrarás que um dia
sofrestes por essa que agora
me leva a te escrever essas linhas.


2010/09/16

Essa só o Silvio para entender...

nas janelas
pombos
no horizonte
o mar
aqui dentro
um cacarejar sem fim
palavras sem sentido
risos parvos
nas janelas
os pombos voam
no horizonte
vejo os navios partirem
aqui na sala
o tempo se arrasta
e as conversas seguem sem fim...

2010/09/14

REFLEXÕES II

CADA MISERÁVEL COM SUA MOEDA

Como essa miserável é baratinha, basta uma florzinha, um aceno, uma promessa, um “amanhã te ligo” e seu dia está ganho.
O sorriso bobo enfeita-lhe a cara parva.
Tão bonitinha, mas...

REFLEXÕES

Estou na enésima cerveja, os olhos secos de tanta fumaça, garganta arranhada de tanto cigarro, aloira na mesa em frente está cinco quilos mais magra, pois a estou secando desde que entrou no bar.
As vozes à minha volta me atordoam, já não sei se são dos fregueses ou dos fantasmas minha cabeça.
O dono passa com uma bandeja cheia de copos vazios, mas mais vazios ainda estão os freqüentadores...
Lá fora a noite continua, a escuridão cobre as ruas, ninguém mais entra aqui, tão pouco saem também.
O tempo não passa, peço outro copo, na porta, feito um cão fiel, a vida real me espera...

2010/09/13

ALTEMAR


- Altemar, afaste-se! Não vou falar outra vez, afaste-se. Não vou escrever a história da sua vida, desista! E para com essa fumaça, você sabe o quanto ela me incomoda. E não bata a porta quando sair da sala.

Altemar sai e bate a porta. Desce as escadas fazendo barulho, derruba o vaso que estava num console, e pelo estrondo, tropeçou outra vez no tapete da sala. Pela janela ele vê as galinhas fugindo apavoradas pelo quintal, seguidas pelo cachorro que late aterrorizado.

- Altemar ainda vai me deixar louco! – murmura rindo de si mesmo.

Voltando o silêncio, Rigoberto retorna ao computador, pousa os dedos – os dois de cada mão, pois o resto mais atrapalha que ajuda – e tenta escrever. Onde estava mesmo? Relê o texto pela terceira vez.

Volta à janela, olha o maço de cigarros sobre a escrivaninha, ele está ali há cinco anos, desde que conhecera Altemar ele largou o vício pois os dois juntos era fumaça demais. Mas tinha vezes que o cigarro era uma ajuda bem-vinda. Rigoberto pegou um, mas logo se arrependeu e o jogou pela janela.

- Não fumarei hoje e nem nunca mais!

Desolado volta ao computador e recomeça a digitar a sua história encalhada a tantos dias. Escrever e deletar, escrever e deletar, escrever e deletar, realmente a história não avança uma sílaba sequer. O suor brota em sua testa, as folhas de papel grudam em suas mãos, os latidos do cachorro e o cacarejar histérico das galinhas não o ajudam a relaxar nem escrever. Rigoberto bate com as mãos na mesa e espalha sua coleção de lápis pelo chão.

- Ele não vai me convencer a pô-lo nessa história, não vai! Para seu espanto, uma galinha voa até a janela de seu escritório que fica localizado no sótão da velha casa. A galinácea está em pânico.

– Essa vai ficar sem botar uma semana, eu ainda vou acabar matando o Altemar... E acho que deveria ter continuado com o cigarro...

– Toby!, pára de latir desse jeito! Não deixe o Altemar te perturbar desse jeito! – grita com o cão.

Positivamente esse conto não sai mais. Outra história que vai, ou para o fundo da gaveta ou para a lata de lixo. Mais brinquedinho para o Altemar...

Rigoberto pensa em descer até a cozinha, tomar um café, comer alguma coisa, ler um jornal, uma revista, qualquer coisa que o faça esquecer por uns instantes essa porcaria de história inacabável, mas logo ouve o barulho de panelas caindo no piso da cozinha, e resolve que comer os amendoins ao lado do computador dá menos aborrecimentos.

Rigoberto encara o monitor, olha com desânimo para as cento e duas teclas do computador, mas a galinha catatônica no vidro da janela não o deixa concentrar-se em nada. Lá fora o céu começa a escurecer.
- Lá vem chuva – pensa – o que vai acontecer com essa galinha ai?

Outro barulho vindo agora da sala faz Rigoberto deixar suas preocupações com a galinha de lado. Altemar ligou a televisão.

Programa de entrevistas, perguntas vazias, respostas pomposas e sem sentido, risadas programadas, intervalos com propagandas imbecis, Altemar absorvia tudo isso como uma esponja absorve água, e depois entornava esses disparates pela casa. Rigoberto mais que tudo, detestava esse hábito medonho de Altemar repetir tudo o que ouvia, principalmente se fosse bobagens.

O tempo passava, e ele passava inutilmente sem produzir nada, sem escrever nada, esgotando o prazo de entrega do texto, as horas correndo como se fossem minutos, os minutos como segundos, Altemar firmemente decidido a por a casa abaixo, o barulho, as galinhas correndo no quintal, Toby ficando rouco de tanto latir, a carijó paralisada de pânico na janela...

Rigoberto então grita:

- Altemar, pode subir.

As escadas rangem com o peso de Altemar, a porta quase cai quando ele a abre, e soltando fumaça pelas fuças, pergunta, enquanto a galinha desmaia e cai para o quintal:

- Então, resolveu escrever histórias de dragão?

2010/09/10

MENINAS


Foi um sentimento agudo no peito, uma pontada, fisgada, coisa rápida, de segundos. Logo passou, mas para Fialho, Antonio Fialho da Silva, era o aviso. Voltou para dentro de casa e dirigiu-se a seu escritório, lá ele sentou-se em sua poltrona de couro e ficou fitando o telefone. Ligaria? Esperaria que o aparelho tocasse? Olhou para a garrafa de uísque, pegou o copo de cristal, mas resolveu que não beberia dessa vez. Fizesse o que tivesse que fazer, faria sóbrio. Passados minutos, poucos minutos, resolveu ligar.

- Alô? – atendeu uma voz feminina do outro lado.

-Sou eu... – falou reticente –, você também sentiu? Coisa de meia hora atrás?

- Sim, mas dessa vez esperei que você me ligasse. Por mais que isso me aconteça, não vou me acostumar jamais – disse num misto de tristeza e certa mágoa. – Minha situação aqui está insuportável... – queixou-se chorosa.

- Mas o que você espera que eu possa fazer? Acha que eu tenho algum controle sobre isso? Pensa que faço isso de propósito? Que quero de alguma forma me vingar ou te prejudicar?

- Como faremos? – ela perguntou friamente, como se essa fosse uma mera transação comercial. Acha que será primeiro comigo ou com você?

- Não sei, não sei o que acontecerá... – desculpou-se em vez de responder. Vamos esperar.

- Está certo. Vou preparar um quarto e meu espírito para ter que explicar tudo isso outra vez
.
Não sei como isso pode acontecer a alguém, muito menos quatro vezes, quatro vezes.

– Desligou o telefone sem dar outra chance de ouvir as desculpas de Fialho, o velho, desde sempre velho, Fialho.

Uma hora e meia depois um toque de campainha fez Mariana lembrar-se do “compromisso” forçado para o dia de hoje. Desde o telefonema de Fialho passara o resto da tarde preparando um bolo e biscoitos, pois seria uma tarde muito longa para conversar de estômago vazio e garganta seca. Por via das dúvidas, caso a conversa se prolongasse muito, sempre haveria uma garrafa de Porto para socorrê-la. Deixando os pensamentos de lado foi atender a porta.

Respirou fundo e preparou-se para o “choque anunciado”.

Arrumou os cabelos precocemente – segundo ela - brancos num coque, beliscou as bochechas e abriu, por fim, a porta. E lá estava uma mulher de seus trinta anos, magra alta, longos cabelos negros e – surpresa entre as surpresas – trazia no colo uma criança de uns três ou quatro meses...

- Seus delírios não têm limites... – quase gritou num espanto.

Sentadas, xícara de chá nas mãos, as mulheres se encaram, e esperavam o tempo correr para quebrar o gelo e começarem a entabular uma conversa com um mínimo se sentido e nexo. Várias xícaras foram servidas...

Foi preciso que a criança acordasse com fome para que enfim começassem a falar.

- Qual o nome dele? – perguntou a Velha Mariana sem jeito e quase sem ânimo.

- Antonio Fialho da Silva Neto – e completou – como o avô! – e riu.

- Sem dúvida ele se superou, ele foi além do imaginável, do bom-senso, ele enlouqueceu de vez.

- Mariana falava e deixava a xícara de chá partir-se no piso frio da sala.

Com o grito da Velha a criança voltou a chorar.

- Mãe, você poderia me explicar o que está acontecendo?

Ao ser chamada de mãe, Mariana começou soluçar e resolveu socorrer-se com o Porto. Serviu-se generosamente sem oferecer à outra, e tomando as rédeas da situação começou a contar a sua história.
 
- Antes de começarmos a conversar permita-me somente dar um telefonema.

Sem esperar qualquer anuência da parte da outra ela começou a discar, errou três vezes o número, quando por fim quando começou a chamar, pareceu uma eternidade até que atendessem do outro lado.

- Mariana? – a voz denotava apreensão.

- A...? Como é seu nome mesmo? – lembrou-se então de perguntar à visita.

- Elisabeth – respondeu secamente a mulher que nervosamente chacoalhava o nenê.

- A Elisabeth chegou, é melhor você vir aqui. Desligou bruscamente, como costumava fazer
quando falava com Fialho.

Cruzando as mãos Mariana começou a falar.

- Elisabeth..., pelo menos esse nome foi bem escolhido dessa vez, essa história começou a mais de quarenta anos, e como estou tão farta dela, serei o mais breve, sucinta, concisa possível. Poupe-se de me pedir detalhes! Eu era muito jovem quando conheci o homem que hoje você conhecerá como seu pai. Foi uma paixão dessas de mocidade que não deveria ter maiores conseqüências, não fosse eu ter conhecido o Fialho e ele ter se apaixonado por mim de uma forma que o mundo nunca viu, e espero que nunca mais venha a ver, pois isso poderia abalar as estruturas da sociedade. Mas acho estou indo longe de mais em minhas divagações, esqueça o que eu disse sobre abalar as estruturas da sociedade, à vezes esse assunto mais o Porto me deixam assim. Em outros tempos, no começo de tudo isso, eu me emocionava e chorava, agora teço teorias calamitosas...

Elisabeth pigarreia e Mariana volta ao assunto.

- “Pois bem, me apaixonei pelo Fialho, na época um poeta parnasiano-tardio – que mais tarde enveredaria pelo concretismo sem sucesso também - mas nosso romance não tinha futuro, até porque eu não tinha pretensões de nada sério, minha inclinação sempre foi religiosa e por fim, pouco tempo depois ingressei numa ordem religiosa e esperava que minha história se acabasse por lá, longe de tudo, do mundo e assim terminar minha vida em contemplação sem complicações. Até que um dia, quinze anos atrás, apareceu a sua primeira irmã, na verdade a caçula...

Elisabeth engasgou-se com o biscoitinho.

-“Não me faça perder tempo com tapinhas nas costas – rosna. Preste bem atenção, pois não consigo mais contar essa história sem-cabeça sem acabar o dia com uma enxaqueca. Um dia batem à porta do Convento procurando por mim, era uma moça, bem mais nova que você – afinal ela nasceu caçula, coisas de seu pai – contou-me que simplesmente havia dado por si ali, em frente àquela porta, sabendo que eu era a sua mãe e que precisava falar comigo. Imagine a minha surpresa, eu virgem velha – bem menos àquele tempo, claro – e com uma filha que eu desconhecia me procurando.

 Imagine o escândalo, e como foi minha expulsão.

Não me peça detalhes, aliás, nada me peça. Depois de Clara, sim, Clara é o nome de sua irmã caçula, veio a Laura, a segunda, ela vem logo depois de você e a terceira é a Leonora. Mas para eu conseguir entender tudo isso foi preciso passar muito tempo, até que eu conseguisse encontrar e entrar em contato com Fialho. Resumindo, antes que eu esvazie meu Porto, seu pai me contou que nunca me esqueceu e sempre imaginou como teria sido a nossa vida, como teria sido a nossa família, e de tanto imaginar, ele estragou a minha vida, digo, criou vocês, fora de ordem, pois ele nunca foi organizado em nenhum ponto de sua vida...

Hoje vivo da pensão alimentícia que ele me paga e só agüento mesmo essa situação graças às garrafas de Porto que ele me envia semanalmente. Não é nada pessoal, mas espero que você seja a nossa “última” filha, pois não nasci para a maternidade – olhando agudamente para a criança que agora dorme no canto do sofá –, tampouco para ser avó.”

Mariana emborca o resto do Porto, agora direto da garrafa, olha para o relógio, e diz:

- Logo seu pai chegará – suspira com forte hálito de vinho – junto com as suas irmãs. Por favor, segure o choro, senão começo a chorar junto, e não, não se engane, pois minhas lágrimas serão de desgosto, pois tudo o que eu queria era acabar meus dias no meu convento.

A campaninha toca e um cachorro late.

- Ah! Não! Cachorro, não Fialho!

2010/09/02

O DIABO NA CABEÇA

(UMA CURTA NARRATIVA)

Mas o diabo é que eu não queria fazer nada daquilo, nada mesmo, mas o Diabo na minha orelha não parava de falar “faça-faça-faça”, e eu, o que fiz? Fiz!
Depois da coisa feita me deu até vontade de fugir, de correr, mas eu ria tanto, da piada que o Diabo me contava, bem aqui dentro da cabeça, que não consegui fugir quando polícia chegou, e mesmo dentro da viatura, tomando porrada, não conseguia parar de rir, as piadas que o Diabo conta são muito engraçadas mesmo.
Veja, mesmo agora com essa camisa de força, ainda não consegui para de rir. O Diabo é mesmo um sujeito muito engraçado...

2010/09/01

OU BONDE OU


Talvez fosse domingo, ou sexta à tarde de azul turquesa, ou de bolinhas quadradas e furta-cores, mas a sensação era de um alívio opressivo sabor jiló com amêndoas.

Mas tudo mudou com uma simples pergunta:

- Batatas à parte?

Nesse momento, nesse exato e inesquecível momento, o bonde passou e...

- Sim batatas à parte – respondi deixando de reparar no bonde que passava. O que poderia ter mudado em minha vida? Não sei e afirmo:

- Nunca saberei, pois ele passou, e com ele todas as previsões de minha quiromante!

Servi-me das batatas à parte, tão à parte que não reparei no prato principal, fosse o que fosse hoje acordei vegetariano, e saborearei as carnes mais famintamente à noite, ao som tambores - comprei uns discos novos em Paris semana passada – e conto com indulgência de meus vizinhos, um há de reclamar, e contando com isso já deixei a lenha para a fogueira preparada nos fundos da casa. Espetos novos com cabos de marfim!

Vi numa folhinha: “lua nova” - espero que seja uma edição antiga, mês errado e noite de lua cheia.

Esvazio a taça de vinho tinto – surpreendi-me, pois havia pedido água tonica, mas a partir de agora, sou um alcoólatra desde de pequenininho. Tonto segui rua acima, queria admirar a paisagem de hoje, pois ontem a vista era horrível.

Não me enganei.

Desde que sai do restaurante recriminei-me sobre essa idéia de subir a rua, pois a paisagem de ontem, comparada a de hoje, não havia melhorado coisa nenhuma. Nada se via de novo, as obras ainda estavam a começar, se é que algum dia os vereadores iriam aprovar alguma obra para aquela paisagem... Me irritava ver aquele horizonte sem sentido, vazio, cheio de um céu ora azul,ora cinza, ora chuvoso, ora ventoso, ora isso,ora aquilo... Ah! Como me irrita a inconstância desse cenário!

Abri o jornal que trazia no bolso da calça, escolhi uma notícia para me aborrecer, foi fácil achar uma. Li a gazeta com os dentes cerrados e os punhos fechados, deixando bem claro meu descontentamento caso alguém me visse lendo. Após alguns segundos de sério agastamento desci a rua mais aliviado, sentia-me, agora sim, um homem sério,circunspecto e poderia entabular conversa com o barbeiro, caso resolvesse ir a algum salão.

Ajeite meu chapéu, o cravo na lapela, sentia sede, mas à lembrança do vinho tinto, resolvi esperar mais um pouco, afinal ninguém deveria tomar conhecimento de meu vício em álcool recém adquirido.

Mas aquela sensação de não saber se era domingo ou sexta-feira à tarde estava me...

- Olhe o bonde! Murmurei para mim mesmo - eu poderia ter gritado - mas resolvi ser discreto, essas pessoas nas ruas, sei não!

O bonde passou outra vez e com ele levou minhas preocupações com o fantasma de Elisa...