2018/04/24

OUTRO CAPÍTULO


(o autor, um deus bárbaro e cruel)




Abro as janelas de par em par, o sol entra e ilumina a sala, um gato gordo, rajado e velho arrasta-se até o meio do tapete e deita-se, tapete? Que tapete é esse? Gato? Desde quando tenho um gato, ainda mais gordo e velho? Vou segurar o espirro, vou segurar o espirro...

- Atchim! – ok, agora sou alérgico a pelos de gatos... O negócio vai mal...

Olho em volta e não reconheço essas paredes, vou procurar a cozinha, lá se houver uma geladeira, e há de haver uma, vou abri-la, e antes que a luz interna acenda sei o que vou encontra lá dentro. Gostaria sinceramente de:

1.          não encontrar a cozinha, e se encontrá-la
2.          não achar lá dentro uma geladeira, e se achar e a abrir:
3.          não encontrar aquele pedaço de pernil de porco. Esse maldito pernil de porco. Trinta anos e esse quarto dianteiro (mais barato segundo informações de pessoas entendidas no assunto) de suíno me assombrando...

Não sei por que sou o único personagem com a consciência de sê-lo, não sei por que meu criador me detesta tanto a ponto de escrever sempre a mesma história só alterando, por pura maldade – ou seria esquizofrenia? - os cenários.

Não há um capítulo que não comece comigo abrindo uma janela... E nunca, nunca há uma paisagem a ser descrita, um cenário cinematográfico de deixar o leitor sem fôlego, nada, isso quando não chove, neva, ou como no último conto, ele fez-me abrir – falta de conhecimento é claro – uma vigia de um navio e inundou-me a cabine, pois uma tempestade arrebentava lá fora. Acho que esse gato deitado no tapete morreu... Era o que me faltava, uma morte na minha história, será que nessa casa existe um jardim?

 Se sim:
1.                Por favor, que não seja secreto me fazendo perder horas procurando por ele;
2.                Que eu não descubra outros mortos enterrados nele;
3.                Que eu não seja alérgico a nenhuma planta de lá...

Ok, ok, lá vou procurar por um nessa casa, à frente tenho um longo corredor, espero que a casa seja térrea. hum, quadros bonitos nas paredes - Pieter Bruegel, o Velho - então, quero crer, devo esperar por belas estátuas no jardim, pela claridade há espelhos também... Tenho medo de espelhos, no penúltimo conto eu era um corcunda ruivo e caolho e carregava no ombro um macaco empalhado.

Por que ele me expõe assim ao ridículo?

Aproximo-me do espelho de olhos fechado, sinto vontade de passar por eles com olhos bem fechados, mas alguma coisa dentro de mim – subtexto talvez? – me obriga a olhar, olhar-me.

Quero seguir em frente, minhas pernas paralisam-se, e abro os olhos e constato que sou um personagem odiado. Esse louco - e pare de colocar tachado no que eu penso! – me odeia, me odeia, agora sou uma gorda tatuada e o que é isso no meu peito – e que peitos! – parece um crachá, parece não, é um crachá, ó meu Deus, sou uma funcionária pública. Mas o que estou fazendo numa casa desse tamanho? Tenho certeza que eu não ganho para isso...

Espere ai. Não estou sozinho, digo, sozinha aqui, ouço passos, passos de homem – como sei que são passos de homem? Não faço nem idéia, isso é coisa do autor desse folhetim miserável – eles se aproximam. Qual será o meu papel nessa trama? Sei que não deveria, mas sinto medo, calafrio, palpitações, um estremecimento, um receio, não, uma certeza que vou me dar mal...

A voz máscula chama por Martha, serei eu? Espero que não.

- Marta! - repete a voz, e estremeço, espero que não seja eu. Encosto-me numa parede onde não bate a luz do sol e espero que a tal da Marta apareça. A voz aproxima-se chamando pela Marta, prendo a respiração. E espero que capítulo acabe antes do sujeito aparecer.

- Acabe capítulo, acabe, acabe..., então eu:

- Genésio! – respondo ofegante, apaixonada, quase fora de mim.

Fim do capítulo.

Agora que chega esse fim do capítulo, agora? Agora o Genésio já está me arrancando as roupas...

Enquanto ele sobe as escadas comigo no colo – juro que esperneei um pouquinho... – me pergunto quanto tempo leva para um gato morto começar a feder...




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