2018/04/24

O CAFÉ CONSTRANGIDO



 Meio dia e vinte.

Acabado o almoço apressado, vou ao café. Sim, sempre o café no meio. Estou sentando à mesa com colegas de trabalho.

À mesa, ao meu lado o Comandante Castro e o Deco.  Não falamos coisa com coisa, hora de descanso, ver as mocinhas dos escritórios indo almoçar, indo às lojas, flanando sob esse sol lindo de outono, nada de importâncias, nada de urgências, urge sim nos distrairmos para encarar o resto do expediente.

Fomos servidos pela mocinha que não sorri. (logo inferimos que há algum problema que a impede de sorri!) Discutíamos o que a levaria a ser tão séria. Seria realmente só uma moça séria? Faltar-lhe-ia um dente? Seria somente triste, mofina? Ou puramente só antipática e pronto, como sugeriu o Deco? Vá saber...

Pernas esticadas sob um céu azul digno de Montevidéu (se duvidam, vão lá conferir), cigarros acesos. Sim o bom Deus deu-me companheiros que tomam café e fumam![1] E ainda de lambuja nos deu uma cafeteria com mesas à rua, o que nos permite ver a paisagem e fumar em paz.

Tudo parecia seguir um bom rumo, estávamos já no segundo espresso quando um mendigo (ou devo escrever cidadão em situação de rua?) aparece. Como eu estava de costas para ele, de costas continuei. Há muito perdi as esperanças de salvar a humanidade e esse mundinho. Deixei que o Comandante Castro ou o Deco falassem com ele.

Os dois, assim me pareceu, deviam estar invisíveis aos olhos do dito pedinte, que nada pedia a eles, e continuava a me importunar.

Nada. Ele tocou-me as costas de novo, virei e antes que ele pronunciasse aquela lengalenga, disse-lhe que nada tinha e que os companheiros na mesa estavam pagando o café hoje.

Os dois a partir desse momento passaram procurar carneirinhos no céu...

Não adiantou e para minha estupefação, ele ajoelhou-se no chão chorando. As pessoas que passavam pela calçada me olhavam.

Uns com reprovação pelo nosso coração duro, outros, talvez irmanados no meu constrangimento viravam o rosto para o outro lado.

A cena desenvolvia-se em câmera lenta.

Eu não sabia o que fazer, no único e esperado momento do dia em que relaxo aquele indivíduo ali de joelhos, as lágrimas prestes a descer-lhe pela barba imunda me constrangendo, quase me obrigando a dar-lhe uma esmola, um óbulo, ou em caso de maior desespero, um tiro para acabar com aquele drama.

Situação horrível de se viver.

Virei-me e o deixei chorando ali sozinho, o café amargou-me a boca e cigarro perdeu a graça.

Passados longos segundos, por fim ele levantou-se e foi embora (não sem antes, sarcasticamente, me agradecer por nada e me recomendar ao bom Deus).

Não pudemos deixar de reparar que ele usava bermuda de surfista mais cara que a calça que usávamos, sem contar o tênis de marca, daqueles que se matam facilmente hoje em dia para roubar.
Esse mundo não tem mais salvação.

Amanhã tomarei café num lugar mais reservado e, de preferência, sozinho.







[1] Viu Magrão, viu?

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