Calor.
Ela sobe pela parede, de minha cadeira tento não me incomodar, depois de quase chegar ao teto ela voa para o outro lado da sala, continuo fingindo que ela não está ali.
Aumento o volume da TV, suas asas batem no vidro da janela, sorrio, penso que ela resolveu ir embora, afinal o que estou assistindo é uma porcaria mesmo, decido que assim que ela for embora mudo de canal.
Enganei-me, ela me enganou, voltou voando em círculos pela sala, esforço-me par continuar ignorando-a, mas está ficando cada vez mais difícil, o programa ruim fica pior e ela fica pendurada na pá do ventilador.
Concentro-me, vou ignorá-la.
Desligo a TV e pego um livro que começo a ler alto, bem alto mesmo, mais que ler, mais que declamar, começo a discursar.
Leio cada palavra, cada frase, cada sentença, cada linha, cada parágrafo olhando para ela, mas ela faz-se de surda, de boba, estou enviando-lhe mensagens, avisos, ameaças veladas, mas ela voa, voa em direção a estante, se ao menos fosse ler alguma coisa, mas sei que não.
Vejo que meus esforços preservacionistas são debalde, sua cultura e mais rasa que seu corpo, já a imagino entrando em cada vão, cada espaço em meu preciosos livros.
Mais que preguiça de matá-la ou nojo, sou freado pela transcendência que hoje essa criatura me inspira. Por mais que eu queira, hoje não posso matá-la, imprimi-la na pintura da parede com uma chinelada, abatê-la com uma folha de jornal, um jato de inseticida, não, posso fazer isso.
Mas ela não percebe meu empenho em ignorá-la, como se quisesse abatê-la levanto o livro em sua direção, deixo bem a vista a capa, o título, a autora, mas parece que, mais uma vez, em vão.
Fecho a bela obra, deixo-a sobre o braço do sofá e vou à cozinha ver se há gesso em pó, pois sei tenho açúcar e farinha de trigo.
Volto á sala rindo, preciso deixar de me levar pelos livros que leio, mas cesso a risada culpada assim que a vejo ali na parede. Numa parede branca, uma minúscula mácula preta, móvel, locomovendo-se para cima e para baixo. Lá está a miserável que Deus enviou par testar minhas convicções...
- Não vou te matar, pode me provocar, mas não vou te matar – grito e logo me arrependo, o que os vizinhos acharão disso?
Sem se inquietar com minhas preocupações com vizinhos e minha consciência ela segue em sua peregrinação sem sentido pelas paredes de minha sala. Meus olhos dão com o tombo do livro sobre o braço do sofá onde leio o título – uma mensagem divina? - respiro fundo e agora mais convicto ainda repito para ela ali estacada na parede, como que me observando – Eu não vou te matar, não vou te matar! Como que para me aborrecer voa em minha direção e por puro reflexo me agacho e levo as mãos à cabeça.
Agora sentado no carpete olho para ela e agradeço por não disparar raios pelos olhos...
- Deus, por que me testas? – indago ao altíssimo olhando para o teto onde ela agora rasteja de cabeça para baixo.
No sofá, sobre o braço, o livro, na consciência a quase-culpa, no teto ela.
Isso não vai acabar bem para um de nós dois falo mais para ela que para mim.
- Maldita literatura! Jogo meu chinelo na estante como se assim pudesse transferir a minha aspiração homicida.
Com o susto ela começou a voar em círculos sobre mim, e sem dar pela coisa peguei o livro e a esmaguei contra a parede.
- Não! – gritei aterrorizado.
Toda a minha cultura e convicção estava ali, esmagada, metade na parede e a outra metade na capa do conto “A Quinta História da Clarice Lispector”.
4 comentários:
very very well Dad!! acho magnifico essa inspiração que aparece... nos mais dúvidosos momentos...
Adorooo...(menos 1 barata pra me infernizar, Obrigada)
Ótimo final, só me lembre de não pegar emprestado o livro, que tanto gosto!!
MUITO BOM!
Já eu, mato sem piedade. Por acaso você estava lendo o livro da Clarice, em que um dos personagens se fixa tanto na barata, que para entendê-la a come? Afgh! Mas o livro é muito bom!
Beijos amigo!
Andei sumida, mas ainda estou na área.
Mirze
Esta desgraça provavelmente viajou da repartição dentro de algum objeto que por absoluta infelicidade o senhor eventualmente tenha por necessidade levado e exposto aos olhares invejosos e sedentos dos ratos e das hienas.
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