2011/07/20

ELA


Calor.
Ela sobe pela parede, de minha cadeira tento não me incomodar, depois de quase chegar ao teto ela voa para o outro lado da sala, continuo fingindo que ela não está ali.
Aumento o volume da TV, suas asas batem no vidro da janela, sorrio, penso que ela resolveu ir embora, afinal o que estou assistindo é uma porcaria mesmo, decido que assim que ela for embora mudo de canal.
Enganei-me, ela me enganou, voltou voando em círculos pela sala, esforço-me par continuar ignorando-a, mas está ficando cada vez mais difícil, o programa ruim fica pior e ela fica pendurada na pá do ventilador.
Concentro-me, vou ignorá-la.
Desligo a TV e pego um livro que começo a ler alto, bem alto mesmo, mais que ler, mais que declamar, começo a discursar.
Leio cada palavra, cada frase, cada sentença, cada linha, cada parágrafo olhando para ela, mas ela faz-se de surda, de boba, estou enviando-lhe mensagens, avisos, ameaças veladas, mas ela voa, voa em direção a estante, se ao menos fosse ler alguma coisa, mas sei que não.
Vejo que meus esforços preservacionistas são debalde, sua cultura e mais rasa que seu corpo, já a imagino entrando em cada vão, cada espaço em meu preciosos livros.
Mais que preguiça de matá-la ou nojo, sou freado pela transcendência que hoje essa criatura me inspira. Por mais que eu queira, hoje não posso matá-la, imprimi-la na pintura da parede com uma chinelada, abatê-la com uma folha de jornal, um jato de inseticida, não, posso fazer isso.
Mas ela não percebe meu empenho em ignorá-la, como se quisesse abatê-la levanto o livro em sua direção, deixo bem a vista a capa, o título, a autora, mas parece que, mais uma vez, em vão.
Fecho a bela obra, deixo-a sobre o braço do sofá e vou à cozinha ver se há gesso em pó, pois sei tenho açúcar e farinha de trigo.
Volto á sala rindo, preciso deixar de me levar pelos livros que leio, mas cesso a risada culpada assim que a vejo ali na parede. Numa parede branca, uma minúscula mácula preta, móvel, locomovendo-se para cima e para baixo. Lá está a miserável que Deus enviou par testar minhas convicções...

- Não vou te matar, pode me provocar, mas não vou te matar – grito e logo me arrependo, o que os vizinhos acharão disso?

Sem se inquietar com minhas preocupações com vizinhos e minha consciência ela segue em sua peregrinação sem sentido pelas paredes de minha sala. Meus olhos dão com o tombo do livro sobre o braço do sofá onde leio o título – uma mensagem divina? - respiro fundo e agora mais convicto ainda repito para ela ali estacada na parede, como que me observando – Eu não vou te matar, não vou te matar! Como que para me aborrecer voa em minha direção e por puro reflexo me agacho e levo as mãos à cabeça.
Agora sentado no carpete olho para ela e agradeço por não disparar raios pelos olhos...

- Deus, por que me testas? – indago ao altíssimo olhando para o teto onde ela agora rasteja de cabeça para baixo.

No sofá, sobre o braço, o livro, na consciência a quase-culpa, no teto ela.
Isso não vai acabar bem para um de nós dois falo mais para ela que para mim.

- Maldita literatura! Jogo meu chinelo na estante como se assim pudesse transferir a minha aspiração homicida.

Com o susto ela começou a voar em círculos sobre mim, e sem dar pela coisa peguei o livro e a esmaguei contra a parede.

- Não! – gritei aterrorizado.

Toda a minha cultura e convicção estava ali, esmagada, metade na parede e a outra metade na capa do conto “A Quinta História da Clarice Lispector”.

4 comentários:

Hanna Pereira disse...

very very well Dad!! acho magnifico essa inspiração que aparece... nos mais dúvidosos momentos...

Adorooo...(menos 1 barata pra me infernizar, Obrigada)

solaris disse...

Ótimo final, só me lembre de não pegar emprestado o livro, que tanto gosto!!

Unknown disse...

MUITO BOM!

Já eu, mato sem piedade. Por acaso você estava lendo o livro da Clarice, em que um dos personagens se fixa tanto na barata, que para entendê-la a come? Afgh! Mas o livro é muito bom!

Beijos amigo!

Andei sumida, mas ainda estou na área.

Mirze

Silvio Barreto de Almeida Castro disse...

Esta desgraça provavelmente viajou da repartição dentro de algum objeto que por absoluta infelicidade o senhor eventualmente tenha por necessidade levado e exposto aos olhares invejosos e sedentos dos ratos e das hienas.