2011/08/09

MUITO ESTRANHO

Não me lembro de muita coisa. Gente indo e vindo, pessoas estranhas, outras conhecidas que me cumprimentavam, outras que eu pensava em conhecer. Imagens, capas de revistas, manchetes de jornais, tudo muito vago, quase um borrão. Musicas que eu ouvia sem atenção. No ar aromas e cheiros algumas vezes conhecidos, outros não. Vozes, muitas vozes que não me diziam nada.

Acho que não prestei muita atenção quando me chamaram, aliás, se me perguntassem meu nome àquela hora - qual era meu nome? - teria que procurar na minha carteira de documentos... Tem horas que nem sei se me lembro a que espécie pertenço... Nem a que reino, se animal, vegetal ou mineral, embora algumas vezes me sinta um pé de alface, outra um peso de papel. Se me sentisse uma sombra ou ectoplasma, onde me classificaria? Quando ando dormindo, devo ser rotulado como um zumbi ou somente sonâmbulo?

Mesmo agora diante de vocês, não sei se estou realmente aqui ou se estou em casa sonhando dopado por algum sonífero, num bar bêbado com o Vadinho, ou sendo rascunhado por algum escritor medíocre.

Acordei uma noite e em vez de ver meu quarto – ou o que penso que deveria ser meu quarto – me vi perdido em um imenso branco, branco sem fim, branco infinito e claustrofóbico, um branco sem saída, um branco a ser preenchido ou rasgado feito papel – entende o que quero dizer? - assustado, corri de volta onde deveria estar a minha cama, cobri-me, fechei os olhos e trêmulo pedi a Deus para dormir outra vez ou acordar logo. Pela manhã tudo havia voltado ao normal, meu quarto estava lá com meu velho guarda-roupa, minha cômoda, meus livros – a única constante, somente alterando estilo e autores - espalhados pelo chão, o espelho trincado onde me vejo e me reconheço cada vez menos todas as manhãs, tudo estava lá, mas eu não acreditava mais na existência dele, duvidando cada vez mais de mim refletido naquele espelho.

Por favor, não me perguntem há quanto tempo venho passando por isso. Não sei. Não tenho um calendário marcando isso, nenhuma agenda marcando dia e hora. Mas vendo em perspectiva..., acho que minha vida foi sempre assim... Não tenho memórias de infância, nenhuma lembrança de escola, festas de aniversário, a única memória, quase uma foto, não, uma pintura impressionista!, é uma mesa de bar onde eu e –será essa uma memória plantada? – e Vadinho, não me perguntem quem é ele, somente o nome me vem à mente – bebendo até cair. A isso se reduz minhas lembranças, e tenho cá um fígado perfeito que desmente qualquer vício em álcool. Nome de pai e mãe? Claro, só um segundo para eu pegar meus documentos na carteira...

Não é possível! Os senhores hão de concordar comigo, isso não é normal, onde já se viu alguém procurar nome de pai e mãe nos documentos, essa é uma resposta automática, todo mundo sabe o nome dos pais, ou pelo menos da mãe...

Cada vez mais vejo que minha vida é uma fraude, uma mentira, uma ficção, Mas é claro que não sou e nem estou louco. Sou uma pessoa normal num mundo cada minuto mais anormal, mais confuso, mais bizarro. Vejam os senhores, meu dia começou, ou pelo menos me tornei ciente dele, com essa conversa:

”Não me lembro de muita coisa. Gente indo e vindo, pessoas estranhas, outras conhecidas que me cumprimentavam, outras que eu pensava em conhecer. Imagens, capas de revistas, manchetes de jornais. Musicas que eu ouvia sem atenção. No ar aromas e cheiros. Vozes, muitas vozes.”

Podem os senhores me explicar a razão de eu estar aqui diante de vocês prestando esse depoimento? O que eu fiz? Qual é a acusação? Cometi algum crime? Sou acusado de quê. Por quem? Como vim para aqui? Como? Os senhores não sabem de nada? Não foram os senhores que me chamaram aqui? Tão-pouco sabem como surgi aqui? Sim aceito um copo d’água.

Vejam senhores o que é a minha vida...

Onde trabalho? À essa altura creio que não trabalho em lugar nenhum, pois creio, nenhum patrão seria tão paciente para com minha situação, creio também ser solteiro e nem ter filhos, cachorro, gatos, papagaio ou mesmo baratas correndo pelas paredes de minha casa, apartamento, toca, buraco, ou seja, lá qual for o lugar que habito. Respondam-me os senhores, como lhes pareço? Sou branco, negro, asiático, loiro, careca? Alto? Baixo, gordo, magro, corcunda, gambeta?

A cada dia amanheço diferente do dia anterior, minhas roupas nunca cabem em mim quando um novo dia amanhece; meus pés vivem machucados, pois cada novo dia é um calo novo, um sapato com um número diferente do dia anterior. Essa é a razão de meu espelho estar quebrado, pois minha raiva matinal é dirigida a ele a cada novo amanhecer, a cada nova estranheza, a cada novo desconhecimento de meu novo eu.

Os senhores acham que sou um caso terminal de esquizofrenia? Por favor, antes de emitirem um juízo de valor sobre mim, tragam um espelho aqui. Agora peço que cada um de vocês se olhe nesse reflexo e me digam se são ainda os mesmo que estão me interrogando desde que cheguei aqui? Por favor, contenham seu espanto, é assim que me sinto, pois pela vossa reação vejo que já não mais se reconhecem, não são mais, pelo menos no aspecto físico, as mesmas pessoas.

Como? O senhor era uma vendedora de batatas ontem? Parabéns, pelo menos hoje o senhor é um delegado de polícia, já eu acordo o mesmo – ou outro, tanto faz – estranho todo santo dia... Nada muda na minha mutação diária.

Mas, agora junto aos senhores, me sinto mais aliviado. Vejo que a minha triste condição não é mais única, embora não nos reconheçamos mais amanhã, saberemos em nosso íntimo, que não estamos sós nesse estranho mundo.

Que Deus faria isso a seus filhos?

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