Passos fortes e pesados de botas ecoava pelas escadas de pedra bruta que levava à masmorra, o verdugo deliciava-se com os gemidos e ais que subiam junto com o ar quente fétido lá de baixo.
Enquanto descia ia batendo com o látego nas botas. Esquentando o couro para a seção de tortura diária.
-Ainda me pagam para isso – ria consigo mesmo enquanto futucava a cárie de um dente com um palito e de lá tirava uma lasca de carne.
Com um chute violento abriu a porta de madeira maciça. Não estivessem agrilhoados, teriam pulado até o teto. O som tilintante das correntes agradou ao verdugo, sim ele era pago para isso...
Chicoteou o ar com raiva e prazer, e os condenados uivaram de dor, condicionados que estavam com as torturas brutais e diárias. O carrasco, vaidoso de seu mister, aprimorava-se agora na arte da tortura psicológica. Já nem precisava açoitá-los para que sentissem dor, o simples estalar do chicote no ar já os fazia contorcerem-se de agonia.
-Muito bom assim – gritava. Poupam-me de gastar o couro no sangue sujo de vocês. – O ar era açoitado sob gargalhadas e gritos de dor. Gritem, gritem. Quero ouvir vocês pedindo mais, peçam mais, vamos peçam mais...
Mas em meio a tanto berreiro um voz se fazia ouvir debilmente, uma voz chorosa, fraca e submissa:
- Sim. É assim que eu gosto - e unindo voz a ação passou a vergastar as costas do pobre infeliz. – Vamos peçam mais, peçam mais. Tenho lambada para todos, vamos peçam mais, quero ver todo mundo dançar...
Só parou a tortura quando o suor empapou-lhe o capuz negro de couro. Tomou de uma caneca de vinho que estava sobre um catre vazio, e entornou-se de uma só vez. Limpou a boca com as costas da mão e alisando o chicote começou a ponderar com os pobres coitados que lá estavam:
- Parece-me que vocês passaram a gostar da tortura. Há quanto tempo torturo vocês? Há quanto tempo?
Outra vez aquele débil miserável levanta o dedo indicador da mão esquerda – toda a mão direita já havia sido decepada e cauterizada com uma tocha que iluminava a masmorra – e tenta falar com um fio de voz:
-Senhor... - tosse num murmuro mais fraco ainda – senhor...
Seguido de uma violentada chicotada que arranca-lhe a orelha, o carnífice fala:
- A pergunta foi retórica, retórica – e com outra vergastada arranca-lhe a orelha direita agora. - Mais alguém quer falar alguma coisa?
Um silêncio covarde encheu a sala, só quebrado pela gargalhada selvagem do algoz que agora chicoteava de verdade e com vontade os prisioneiros acorrentados nas paredes verdes de musgo e umidade. Pouco ainda tinham forças para gritar ou mesmo chorar. Muitos já haviam padecido tanto que estavam imunes a dor, já não sentiam nem mais as articulações, eram pele, osso e apatia.
Por que estavam lá? Não mais se lembravam...
Quais crimes cometeram? Crimes? Fossem quais fossem os crimes, à essa altura já estavam todos redimidos, todas as culpas espiadas.
Para desgosto do verdugo já estavam acostumados à dor, à humilhação, aos maus tratos. Não sabiam os governantes que a maior tortura impetrada contra eles era justamente a falta da tortura. Nada era pior para eles que o domingo, dia em que o inimigo-irmão descansava. Um dia perdido, um dia sem utilidade, um dia em que “o dia não passava”, um dia perdido.
Tortura maior não era a tortura, mas a falta dela!
- Vamos confessem, confessem alguma coisa – mais que gritar, implorava o biltre torturador – me dêem mais razão para fazê-los sofrer. Vamos não me façam chicoteá-los à toa, me dêem motivo. Preciso de motivação, estou farto de ser chamado de sádico...
O maldito bárbaro não percebia que suas ameaças eram vazias, ele lidava com mortos-vivos, cujo único prazer agora era o sofrimento, a dor, a humilhação, a vergonha de tamanha fraqueza, e vontade de viverem mais um dia, para ter a garantia da dor de amanhã.
-Ainda vou acabar matando um de vocês qualquer hora dessas, vamos me digam alguma coisa!
E outra vez, aquele fiozinho de voz, impotente, quase sobrenatural, fez-se ouvir:
-Senhor –tosse – senhor...
-Sim infeliz, parece-me que só você está disposto a falar hoje. Fale logo antes que lhe corte a língua com outra vergastada.
Tremulo de felicidade por ter conseguido a atenção de seu carrasco, e olhando com superioridade para os colegas presos nas paredes diz com indisfarçável regozijo:
- Senhor – tosse - senhor...
Impaciente e temeroso que a confissão do infeliz acabasse com o seu prazer profissional, ele arranca-lhe a língua com uma certeira chibatada.
- Se alguém comentar que eu fiz isso eu peço as contas. Vocês querem isso?
E em uníssono, como que uma coreografia ensaiada à exaustão, todos, dançando presos às paredes, responderam:
- Não, não, não, não...
As palavras ecoaram para fora da masmorra, atravessaram as paredes e o teto chegando ao ouvido do rei, que satisfeito comenta com um de seus ministros:
-Esse carrasco é bom!
Um comentário:
Eu já tinha jurado que não ia ler.
Li!
Apesar da brutalidade do carrasco, pulei algumas linhas e aplaudo o autor!
Beijos
Mirze
Postar um comentário