Dona Celinha tira mais uma folhinha de seu calendário de santos e, para seu desgosto, amanhã é dia quatro de dezembro. Ela passa as mãos nos cabelos e corre para o telefone.
Liga para as irmãs.
Está quase descontrolada, gagueja, e não consegue falar coisa com coisa., a única palavra mais ou menos compreensível é:
- Quatro de dezembro, quatro de dezembro...
A irmã ao telefone, depois de uns segundos de mudez, desliga o telefone, ela entendeu a mensagem.
Dona Celinha começa a correr de um lado para o outro culpando-se de tamanha distração, como ela não percebeu a chegada desse dia?? Sobe as escadas do velho sobrado, vai ao quarto da mãe.
A mãe é uma velha inválida, amnésica, trinta e dois anos numa cadeira de rodas. Coube a Dona Celinha cuidar da velha quando herdou a casa.
-Se eu soubesse que esse era o preço... - resmunga enquanto ajeita a velha na cadeira.
– Vamos vegetal, está chegando aquele dia outra vez. – Sacode a velha e por fim a empurra em direção ao banheiro.
- Hoje é dia de banho, hoje e amanhã. Hoje para tirar as sujeiras, amanhã para ficar cheirosinha. Afinal as suas outras filhas vêm aqui.
Banha a velha como quem lava um tapete ou um cachorro morto. (Não me perguntem quem lava cachorro morto.) Enxugada, troca-lhe os farrapos, penteia-lhe os cabelos, que miseravelmente continuam negros, enquanto o dela, todos brancos. Procura pela bagunça do quarto onde está a dentadura. Amaldiçoa a mãe e o calendário, xinga os filhos que já se foram e o marido, morreu antes dela. Empurra a velha escada a baixo.
– Hoje é dia de tomar sol, quem sabe assim a senhora cause uma boa impressão amanhã?
Lá fora, no quintal aproveita para alimentá-la. Dá-lhe um café ralo e um pedaço de pão. Faz-lhe uma tosca maquiagem, quer ver se assim consegue disfarçar a palidez de quem vive enclausurada num quarto.
Volta à cozinha, olha outra vez para a folhinha.
- Sim, amanhã é dia de Santa Bárbara!
Encosta-se numa parede e suspirando pergunta se realmente merece passar por tal provação.
Toca o telefone. É outra irmã. Ela quer saber se tudo está preparado para amanhã. – Sim, tudo está sempre preparado para amanhã, menos eu - responde mal humorada. Quando tudo isso irá se acabar, quando?
A irmã não responde, e como a outra, também desliga o telefone na sua cara. Dona Celinha pensa em chorar, mas onde arrumar lágrimas agora?
O dia passa lentamente, enquanto na calçada em frente a casa, pessoas começam a aglomerar-se. Chegam trazendo cadeiras, outras, cestas com comida, até a chegada da noite haverá carrinhos de pasteis, cachorro quente, pipoca, crentes rezando, outros se postarão de joelhos orando-chorando-e-rangendo-dentes...
- O circo está começando a se formar. – Fala para si mesmo Dona Celinha, num misto de ódio e nojo. - Maldito vegetal! Rosna para a velha na cadeira de rodas.
O telefone toca e a noite chega.
Dia seguinte.
Ao som de vozes, gritos, choros, pregoeiros vendendo de tudo, e o onipresente telefone, Dona Celinha acorda. Acorda de mau humor. Vai à cozinha e retira mais uma folhinha do calendário.
- Quatro de dezembro...
Olha pela janela, antevê, pressente, mais do que vê, o céu carregado e as ruas cheias de gente.
- Quatro de dezembro.
Lá fora um trovão faz a casa tremer nos alicerces, e da rua vêm as orações das pessoas. O telefone toca, ela sabe que agora não tem mais como ignorá-lo. Atende sabendo que é uma de suas irmãs. Logo todas chegarão para organizar o espetáculo.
- Quando terei meu merecido descanso meu Deus, quando?
Dona Celinha vai cuidar do velho vegetal como havia ameaçado ontem, hoje deveria dar-lhe outro banho, deixá-la apresentável para o “espetáculo”, afinal, a qualquer momento ela deveria começar. De todos os contratempos dessa maldita data, a expectativa do “espetáculo” era o que mais a mortificava. Onde estariam as suas irmãs? Ela não conseguiria dar conta de tudo sozinha, será que elas não viam que ela estava ficando velha demais para isso? E esse maldito vegetal não colaborava com a situação. Como banhá-la, penteá-la, como trocar esses trapos por uma roupa decente?
Outro trovão, e as rezas lá fora ficam mais altas. Dentro do sobrado dá para sentir os cheiros das velas e das flores lá fora. Começa a chover, e indo contra toda a lógica, mais gente se aglomera lá fora.
Enfim chegam suas irmãs, chegam criticando e dando ordens. Reclamam da demora para arrumar a velha, reclamam da roupa escolhida, do penteado e por fim, resolvem pintar as unhas do vegetal.
A chuva engrossa e as rezas também.
Os trovões tornam-se intermitentes, trazendo uma sensação de fim-de-mundo.Dona Celinha, computando os prejuízos de uma vida inteira de servidão em troca de um teto, chega a desejar realmente que tudo se acabe, para que enfim tenha seu merecido repouso, mas outro trovão a traz de volta à realidade.
As gotas de chuvas tamborilam nos vidros das janelas, um raio ilumina a sala e outro trovão faz os quadros balançarem nas paredes.
- Veja! – Diz espantada Lucinda, irmã mais nova de Dona Celinha.
- As mãos de mamãe, elas se mexeram – completa Eclesiástica, irmã do meio.
- O que vocês esperavam? Deixem de bobagem. – ordena Dona Celinha, impaciente com o falso espanto das duas.
- Eclesiástica, vá para a rua e comece a por ordem na fila, Lucinda, vá para frente e comece a vender as entradas. Essa velha só nos dá alegria nesse dia, então vamos fazer valer cada dia de sofrimento que ela me fez passar. Vamos, vamos, vamos!
Eclesiástica abre a porta e quando entra a primeira pessoa, o velho vegetal tomado de uma energia nunca dantes vista (nesse ano, é claro) levanta-se da cadeira de rodas e tomada sabe-se por qual espírito põe-se a pregar e a falar em línguas desconhecidas. Logo a sala é tomada pelas pessoas molhadas que desde a noite anterior postavam-se à sua porta. A sala não é grande o bastante, a multidão grita para que a velha venha para fora. Dona Celinha grita que isso é impossível, e discretamente pergunta à Lucinda quanto já arrecadou com a venda de entradas, mas a gritaria geral não permite que se ouça outra coisa. A velha, com surpreendentes passos firmes dirige-se à porta.
Na rua o povo cala-se diante da santa milagrosa, da santa que só anda e fala uma vez por ano, da santa capaz de dominar a chuva, os raios e os trovões.
- Que mensagem ela nos dará esse ano? – Pergunta uma devota para a pessoa ao lado.
- Que maravilhas ela fará? – Pergunta outra.
Chove ainda mais forte, torna-se impossível ouvir qualquer outra coisa que não sejam os pingos batendo no chão, nas pessoas, nos capôs dos carros. Embora nada se ouça, todos prestam atenção nos mínimos movimentos da velha santinha. Espantados, todos testemunham o seu primeiro prodígio. Levantando suas magras e encarquilhadas mãos para o céu, num único movimento, ela pára a chuva, silencia os trovões e dá fim aos raios. O populacho deslumbrado cai no chão e cobrem o rosto num misto de medo e respeito.
Silêncio.
A velha olha para todos os seus fieis, ela regozija-se, olha para as filhas, que distraídas, contavam o dinheiro arrecadado com o “espetáculo do velho vegetal”, essa cena a aborrece.
Com um vago e discreto gesto, um vento forte vindo do nada, espalha as notas para cima da multidão, que deixando de lado a fé na velha santinha começa a se digladiar. Essa cena também aborrece a velha santinha.
- É para isso que eu venho a vocês uma vez por ano?
Diante da voz poderosa da velha, os que brigavam por causa do dinheiro pararam, as filhas que brigavam entre si por conta das poucas notas que sobraram em suas mãos pararam, os vendilhões pararam de gritar para vender suas mercadorias, e o pipoqueiro esqueceu-se de tampar a panela, deixando assim que os grãos estourassem para a rua, emprestando uma ilusão passageira de neve.
A velha santinha, imbuída de uma ira vinda do Velho Testamento, faz um raio fulminar as três filhas e uma tempestade de proporções diluvianas levar seus crentes para longe de si, no claro desejo de nunca mais vê-los.
- Chega de milagres! Chega de promessas de salvação! Chega de vocês infiéis crônicos!
Tornando a sentar-se me sua cadeira de rodas, ela entrega-se ao velho estado vegetativo e lentamente a chuva começa a parar.
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