2011/02/10

Crises E Mais Crises

12h00 minhs

Meia hora em frente ao espelho do banheiro da repartição fazendo maquiagem, outros tantos minutos penteando os cabelos, olha para as unhas, vira de costas e quase quebrando o pescoço, vê como está a sua roupa recém-comprada (modelo exclusivo, disseram a ela!)

Saí e vai à rua almoçar seus legumes e verduras.

Olha-se em todos os reflexos das vitrines por que passa, sempre ajeitando, ora a roupa, ora o cabelo, ora um detalhe qualquer. No restaurante, escolhe a mesa mais bem localizada, de preferência na entrada, para que possa ser vista por quem entra.

Manipula os talheres com graça e leveza, observando as mãos. Tem com elas uma implicância patológica, acha que as sardas traem a sua idade.

- Não fosse esse um país tropical, andaria de luvas o ano inteiro... - reclama baixinho. - Tantos cuidados, tanta vaidade, quanto dinheiro gastos em cremes para o corpo, cremes para os cabelos, esmalte para as unhas, e essas mãos traindo a minha idade...

Terminada a refeição, sai à rua para tomar um pouco de sol antes de voltar para a repartição e amarelar-se até as dezoito horas.

Olha em volta de si enquanto anda, tanta gente jovem e ela ali envelhecendo, enrugando-se, azedando-se cada dia mais.

Execrando o elevador ela sobe a escada nervosa, pensando com seus botões:

- Assim subindo as escadas acabo engrossando as panturrilhas!

Quando chegar em casa à noite, vai socar o filho que a tornou avó!

- Ele não perde por esperar...


18h00minhs


Fim do expediente, na rua, o carona de sempre a espera impaciente.

No carro.
Chove fininho, o limpador dos pára-brisas indo de lá para cá. O trânsito, carregado.

Dentro do carro, o casal calado. Olham para frente, esperando uma chance de se deslocarem, saírem do lugar, poucos metros que sejam.

Falta assunto.

A razão? Não vem ao caso e nem nos interessa...

Para quebrar o gelo, o homem, comenta, tentando, quem sabe melhorar o clima:

- Nunca mais essa rádio tocou a nossa música, não é?

No que a mulher entre ríspida (afinal ela está ao volante) e com pouco caso:

- Nossa música? Desde quando nós temos uma música? Você tá viajando? Vê se entende uma coisa de uma vez por todas, isso é só carona, não sou sua mulher, não sou sua namorada e nada sua, além da pessoa que lhe dá carona, compreendeu isso de uma vez por todas?

De repente parece que o engarrafamento nunca mais irá acabar. A chuva engrossa, e o rádio não toca a música “deles”...

E o clima dentro do carro piora.

Ela pensa:

- O vou fazer para o jantar...?


19h35minhs

(aqui cabe uma cena dramática)

Cenário: Banheiro cheio de vapor.

Ela sai do banho.

Pega a toalha e começa a enxugar-se lentamente.

Passa a mão no espelho para limpar o vapor e deixa a toalha cair no chão. Mira-se no espelho, vê um cravo.

Aproxima-se um pouco mais no intuito de espremê-lo.

Olha-se profundamente no reflexo, apóia a mão no lavatório.
Soluça e começa a chorar.

- Onde eu errei meu Deus, onde?

O jantar atrasa hoje.

No dia seguinte.

(Aqui acompanha bem, como fundo musical, um Cantochão)

De cócoras, depois de joelhos, arrastando-se pelo altar da velha igreja, com os olhos fundos, marejados, o peito apertado e pesaroso, entre soluços, se perguntava:

- Onde perdi a minha fé? Onde?

Lá do alto os anjos barrocos se olhavam embaraçados.



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