2011/01/03

DUAS PARTES

Estou aqui tarde da noite, sentado em frente ao computador, tendo por companheiros a noite fria, um charuto e uma xícara de café.

Na cabeça, fantasmas de histórias que teimam em me assombrar e que se recusam a vir para os teclados...

Antes de vir para cá fiquei virando na cama, tentando dormir. Soquei o travesseiro, virei de um lado para outro, e dentro da minha cabeça as palavras se formavam, as histórias aconteciam, os personagens nasciam.

Sonado, vim para cá e nada me ocorre, nada me vem, fui abandonado pelos personagens e me esqueci das histórias a serem contadas.

Fico aqui a teclar à espera de que algo surja, mas pelo andar dos ponteiros do relógio acho que a madrugada já está perdida, e curto a insônia vendo TV...

Preciso arrumar uma forma de me livrar dessas assombrações que me perseguem todas as noites. Por que, quando deitado, quase dormindo, as histórias se formam de um jeito claro? As personagens aparecem tão sólidas, críveis, palpáveis e verossímeis? E quando, desperto, saído debaixo das cobertas tão quentinhas e vindo encarar esse monitor, tudo se esvai com num sonho?

Minha história deveria começar com a narrativa do personagem principal:

- Senti uma pontada no peito... Achei que estava enfartando e pus a mão com força sobre a camisa pressionando o coração. Achei que fosse desfalecer tão aguda era a dor, mas para meu estranhamento percebi que foi um corte. Alívio! Não era enfarto. De alguma forma havia me arranhado com alguma coisa e só agora estava sentindo a dor... Na primeira oportunidade fui ao banheiro para ver o tamanho do machucado. Diante do espelho tirei o paletó, a camisa, a camiseta regata e vejo para meu espanto o tal machucado em meu tórax... Por mais que eu imaginasse o pior – sou um pessimista fatalista – nada até aquele momento havia me preparado para aquilo. Não havia ali uma picada de inseto, um arranhão ou mesmo um corte – que por si só já seria um tanto complicado de se explicar e entender - o que eu via ali era uma, uma, uma..., uma rachadura! Sim uma rachadura, uma trinca, como dessas que vemos nas paredes das casa velhas e abandonadas. Ela, a trinca, vinha da altura da clavícula e descia quase três dedos abaixo do mamilo esquerdo. Fiquei ali boquiaberto, vendo a “rachadura” em meu peito, tentando entender como aquilo poderia estar acontecendo... Já não doía. Aliás, nem posso chamar, agora, a pontada que senti de dor, foi mais como um beliscão. A imagem daquela greta no peito me deixava anestesiado para qualquer coisa. Tudo o que queria agora era ir embora para casa. Mas o que dizer ao chefe? Simplesmente dizer a ele que meu peito “rachou” e que precisava ir embora para remendar e passar uma massa corrida não ia pegar bem... Resolvi, então, sair sem avisar ninguém, de casa, quando chegasse, daria uma desculpar qualquer, “mataria” alguém de família ou sei lá o quê eu conseguisse improvisar...

Entrei em casa correndo e fui direto para o banheiro, precisava rever o meu peito. No caminho tive a impressão que as canetas que trazia no bolso da camisa estavam entrando na rachadura. – Absurdo! – Gritei para mim mesmo, chamando sem querer a atenção dos outros passageiros no ônibus. No banheiro, arranquei as roupas quase rasgando, botões voando e ricocheteando nos ladrilhos e quicando no chão.

- Não! Meu grito deveria ter sido algo assustador, medonho, gutural, um grito vindo das estranhas do homem de Neanderthal que carregamos dentro de nós. Mas o que saiu de minha garganta foi um soluço. O que vi refletido no maldito espelho me tirou o fôlego antes de gritar. A rachadura agora descia até a minha cintura, e logo chegaria à minha pélvis. E sim, agora tive a certeza que as minhas canetas estavam mesmo entrando no buraco do peito. O horror com que olhava para o meu peito era tanto que me fazia ignorar a falta da dor lancinante que tal machucado deveria me causar e a perda de sangue que já deveria ter me matado... Mas o horror, o horror me paralisava e me desligava desses detalhes. O que me impediu de passar o resto de meus dias boquiaberto diante do espelho foi o ruído seco, baixo e discreto que vinha de meu peito. Era como uma barata roendo papel, um roc-roc-roc grave, baixo, que logo percebi se tratar do som de meu corpo dividindo-se ao meio. Aparvalhado via o corte crescendo e descendo, dividindo-me em dois lentamente...

Logo nada de mim restaria... Nada? Permitam-me corrigir isso. Logo duas partes de mim, muito mal-cortadas, diga-se de passagem seria encontrada no banheiro de meu apartamento. O que a polícia pensaria? O que seria noticiado nos jornais? Como explicariam o mistério de um corpo rasgado ao meio sem nenhuma gota de sangue próxima do cadáver? Homem solteiro encontrado cortado ao meio! Sim, delirava tamanho o absurdo de minha situação. Empurrando os cabelos para trás lamentava a minha situação e solidão... Será que se Márcia estivesse aqui ela tomaria pulso de minha absurda condição e conseguira juntar os meus dois pedaços? Por um momento rio, penso se ela ao chegar e me ver já em duas partes, iria reclamar sua parte “nesse latifúndio”. E como fez com tudo o que eu tinha quando foi embora, “pegaria sua metade de direito”? Será que ela seria capaz de fazer isso? Sinto uma fisgada no peito, não metafórica, mas sim literal que me responde essa pergunta. Sim, ela pegaria a sua parte.
Olho para o espelho e estou preso em minha outra metade por um fio – entendam isso como quiserem... Mais alguns segundos e serei duas partes da mesma coisa.
- Duas partes de nada! – Rosno. Duas partes que viverão (?) num apartamento que já está dividido, e que agora é meio-apartamento, numa meia-vida, numa meia-existência...

Antes de desfalecer, me pergunto que parte de mim Márcia escolherá?

- Que parte Márcia escolherá...?, e dou a última baforada no charuto olhando o fundo da xícara vazia de café. Continuo olhando para o monitor até os olhos começarem a arder. Não tenho vontade de fazer mais café nem de fumar, a boca já está azeda, o sono que vinha me comendo pelas beiradas enfim me pegou, acho que vou dormir, a história que se escreva por si própria, afinal elas sempre se escrevem mesmo e nós somos usados como meras ferramentas por elas...

Desligo o computador, deixo meus demônios arquivados e volto para a minha cama quentinha sem mais nenhum fantasma me assombrando a cabeça.

- Boa noite.

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