2012/09/18

CRÔNICA DE ENCOMENDA



Esvazio a segunda garrafa de rum e brinco com uma pérola fazendo-a rolar na palma da mão. Estou começando a nublar a minha mente, aos poucos as imagens daquela festa começarão a se dissipar. Logo esquecerei os rostos, as vozes, as conversas, as músicas, as risadas...
***

Na sala, cantavam o indefectível parabéns a você, nessa data querida, aí começa tudo. Data querida? Querida para quem? A velha senhora estava alheia à sua própria festa, parecia ela mais com um enfeite do que com a aniversariante. Os convidados serviam-se do bolo, dos doces, andavam pela casa da velha, mexiam em suas traquitanas, revolviam suas gavetas, quando ouvi alguém perguntar:

- Quando ela morre?

Não ouvi qualquer resposta, pois uma gargalhada preencheu o ambiente. Saí à varanda para fumar, queria ir embora, mas uma fagulha miserável de curiosidade me prendia ao lugar.
Fumei e comecei a beber.
Voltei à sala, a velha fora posta num canto onde não atrapalharia ninguém, onde pessoa alguma poderia tropeçar nela, onde não incomodaria quem quisesse circular pela sala em paz pudesse fazê-lo. Ela olha tudo à sua volta com olhos opacos, secos, olhos que olhavam, mas nada viam. Pensei que isso lhe seria benéfico. Quem suportaria testemunhar aquilo em sã consciência? Quantos anos a velha fazia? Pensei em perguntar a alguém da família, mas outra pessoa fez isso por mim e desgraçadamente ouvi a resposta:

- Mais que o necessário, ela já passou da hora.

Segurei meu copo com força e o completei com alguma coisa que saiu da primeira garrafa que vi pela frente. Continuei circulando pela casa e acabei indo ao jardim. Ar puro! Pensei erroneamente. Lá havia muito mais abutres ainda. As crianças, provavelmente bisnetas da velha, conferiam entre si o saque do seu porta-joias. Pelo visto, daquela família não escapava ninguém – pequenos abutres! Cuspi parte da bebida no chão, e como urubus sobre a carniça, elas não se abalaram com a minha presença e começaram a discutir como dividiriam o colar de pérola da bisavó. Concordaram em arrebentá-lo e dividi-lo pérola por pérola...
Pensei que no Velho Testamento, por menos que isto, a Justiça Divina já teria se manifestado.
Voltei para dentro, aquela cena me repugnara. Precisava beber e procurar a pessoa que havia me convidado para essa festa.
Fui convidado para fazer justamente o que estou fazendo, circular, recolher apontamentos e entregar depois uma crônica sobre essa reunião. Mas aposto que o amigo que me convidou, assim como eu, não tinha ideia do que iria acontecer aqui... Fui à cozinha, entrei pelos fundos, assim seria menor a chance de encontrar mais desses urubus de black-tie.
Servi-me de uns frios e uns uísques. Bebi e comi lentamente, o que eu vira e ouvira no jardim ainda me embrulhava o estômago. Após a frugal refeição voltei à sala à procura de meu amigo. Precisava encontrá-lo, desfazer o negócio e ir embora, isso não era o que eu esperava, nem estava ganhando para isso, vim para fazer-lhe um favor, seria a minha crônica seu presente para a velha senhora!

- Que presente! – pensei em voz alta.

À entrada da sala o garçom serviu-me mais bebida, não recusei. Emborquei dois ou três copos de uísque de uma vez! Precisava ser duro comigo mesmo para continuar com isso. Trôpego segui em frente.
Tropecei numa mesa com uns doces e salgadinhos que foram ao chão, as meninas que vinham do jardim correndo, pisaram neles e acabaram deixando manchas indeléveis no tapete. Ainda as vi voltando ao quarto da bisavó, imaginei que iam terminar o butim. Pequenas flibusteiras temo pela sua prole...

- O futuro corre perigo! – Gritei segurando o copo de uísque, que acabou indo de encontro ao tapete empastelado de brigadeiros e empadinhas...

Havia na sala um carrilhão de laca preta, muito antigo e consequentemente muito caro, e dois genros da velha discutiam o seu valor, quando um terceiro mais jovem chegou-se aos dois primeiros e comentou que “se essa velharia caísse em suas mãos, venderia imediatamente, pois na sua casa não entraria jamais uma porcaria velha daquelas, aquilo era um lixo anacrônico”, o que ele queria mesmo era o velho relógio de pulso, de ouro, do falecido, aquilo sim valeria uma boa grana! Riram e concordaram, nada de levar os entulhos daquela velha, o que valia mesmo eram as joias. Nesse momento as meninas passam correndo com as mãos cheias de joias em direção ao jardim.

- Outro butim. – Gritei como se fosse um brinde. Segui atrás das crianças e sentei-me num dos bancos do jardim. Continuei bebendo e por lá adormeci.

Acordei em casa, creio que meu amigo levou-me, e desde que despertei continuo bebendo para esquecer tudo isso que testemunhei.
Nada escreverei para ele, nada de crônica, continuarei a beber até que consiga esquecer tudo isso, tudo isso, tudo isso...

Um comentário:

Silvio Barreto de Almeida Castro disse...

É de pequenininhas que aprendem a pilhagem, as vagabundas.