2011/06/08

CAFÉ CLUB TRINTA MINUTOS

Ou

O CAFAJESTE


Já é sabido que a felicidade não dura. Seja qual for o tipo de felicidade ela é finita, acaba de uma forma ou de outra, ela chega ao fim.
Minha alegria era o Clube Trinta Minutos, nome estranho para uma cafeteria concordo, mas era lá que me encontrava diuturnamente, de segunda à sexta-feira para o meu sacro-santo cafezinho após o almoço. Lá, feito um rei, um ditador ou mesmo um tirano, discutia de tudo, dos rumos que esse pedaço de barro chamado mundo às mais absurdas teorias, quer literárias, que científicas.
Discutia, pensava, teorizava e assim queimava meus trinta minutos de café expresso, preto e quente.
Assim foi por muito tempo.
Mas um dia a serpente, oriunda do Paraíso lá no começo dos tempos, apareceu.
Surgiu risonha, alegre, espalhando felicidade – e quem me conhece sabe o que penso de quem traz felicidade gratuitamente – e com ele a nossa ruína...
Do meu grupo de dois – sim, éramos eu e um querido, companheiro de armas, xícaras e penas, dois quixotescos e felizes palradores -, passamos a três indivíduos sem assunto. Sim o terceiro elemento nessa fórmula de desgraça e infortúnio não falava a nossa língua – digo isso em sentido figurado, pois ele tartamudeava palavras em português, mas não entendíamos qualquer sentido nelas – tão pouco comungava de nossos interesses.
A princípio tentamos ignorá-lo, fingíamos que ele não estava ali, e tanto nos esforçávamos que muitas vezes saíamos sem pagar-lhe o café, oportunidade em que tentávamos em poucos segundos colocar trinta minutos de assunto em dia, mas aos poucos, como numa erosão, ele foi minando nossa barreira de desprezo e começou a participar, não, ele passou a participar de nossas conversas, ele passou a nos interromper de tal forma que nossa mesa tornou-se uma espécie de Embaixada de Babel, pois eram três pessoas falando três assuntos totalmente diferentes e conflitantes entre si.
Em várias oportunidades quase fomos à vias de fatos, pois entre tantas conversas desencontradas, nos ofendemos sem querer, pois mesclávamos a conversa de um com a conversa do outro, resultando assim numa fórmula altamente volátil...
As atendentes foram as primeiras a notar as bruscas mudanças em nosso comportamento. De fregueses gentis e atenciosos, passamos a princípio, a fregueses nervosos, exigentes e implicantes. Aludíamos a qualquer defeito, por mínimo que fosse ao nosso café. Ora era a espuma do leite, cor do café, sabor do açúcar, cor da xícara, sujeira na mesa. Depois, simplesmente, deixamos de cumprimentá-las. Sentávamos, e estalando os dedos, ficávamos esperando que as atendentes nos servissem, quanto mais anônimas e indiferentes melhor. Tornamo-nos uns monstros.
Toda a alegria daquela hora esvaiu-se, perdeu-se o encanto, o prazer da conversa, as discussões agora eram quase um convite para um duelo, um crime. Éramos, sem o saber, somente uns autômatos viciados em cafeína e sem alma.
A serpente roubara, aos poucos, nossa alegria de conviver aqueles mil e oitocentos segundos de prazer em conversar, de bebericar nosso cafezinho e até a simpatia das atendentes.
Mas a desgraça maior ainda estava por vir, sim a borrasca estava encobrindo o horizonte e logo ele despencaria sobre nossas cabeças.
Então um dia, era meio-dia - não poderia ser de outra forma – entra a Eva que faltava para esse drama bíblico-paradísiaco.
Ela surgiu na forma de uma moça sentada solitária na mesa ao lado, com elegância desusada, sorvia o conteúdo de sua xícara com prazer de quem sabe saborear um bom café.
Sorria, pensava, quero crer em alguma coisa boa.
Um misto de inveja e ódio assolou a mim e ao meu amigo. Como poderia alguém estar feliz ali, quando eu e ele tínhamos que aturar aquele monturo de estrume em forma de gente ao nosso lado discorrendo sobre suas últimas façanhas sexuais, suas façanhas pantagruélicas...
Sua felicidade anônima que deveria ser um raio de sol tornou-se a nossa ruína definitiva.
Vendo a feliz criatura ali à nossa frente o sátiro, imbuído dos mais baixos instintos levantou-se e foi ter com ela. Qual não foi o nosso alívio naqueles segundo que prenunciavam o nosso fim...
Pensamos, com o peito cheio de esperança – que tolos éramos - que enfim ele iria embora, nos deixaria em paz para todo o sempre ou pelos próximos minutos.
Ele achegou-se nela como uma desgraça que desaba, como um dedo que nos acusa em público e destrói nosso nome e família para todo o sempre. Ele a segunda encarnação de Átila, o Huno, o Flagelo de Deus, sem pedir licença puxou a cadeira e sentou ao lado da pobre e vestal – sim, sei que peguei pesado agora, mas que sirva para ilustrar a situação – e beijou-lhe o rosto, como se conhecera por toda a vida.
Desnecessário descrever o espanto da moça, sua reação, mas cabe esclarecer o nobre leitor o que aconteceu e nos espantou.
Ao ser osculada na face, ao invés de sentir-se ultrajada, ela sorriu, ao invés de esbofetear o sátiro ela pediu à atendente mais uma xícara para ele.
Em nossa mesa, esperando a tragédia que deveria desenrolar-se ali, espantados vimos mais uma vez o cafajeste “dar-se” bem outra vez.
Com os olhos, sem forças ou coragem para articularmos qualquer palavra, perguntávamos que tipo de encanto tinham os cafajestes que exercia tal fascínio sobre as mulheres.
Entre enojados – com o café frio – e desencantados com a vida, fomos embora, afinal já havia chegado a hora de voltarmos ao trabalho.
Pela primeira vez desde que nos reuníamos ali, a hora de irmos nunca tinha demorado tanto a chegar.
Pela tarde chega-me um e-mail – CC para meu amigo de infortúnio - do boçal, no qual ele descrevia com riquezas de detalhes como havia sido sua conversa com a Solange – ufanava-se de ter-lhe perguntado o nome logo que se sentara à mesa – e dizia quase babando – sim, exagero para que possam sentir o meu repúdio por esse ruminante – que marcara encontro com ela para amanhã “lá no café”.
Olhei pela janela do meu escritório – dez andares - e cogitei pular.
Mas amanhã é outro dia pensei estupidamente.
Minha fé é e sempre será a raiz de minha ruína. Já pedi à Dona Creuza, mais conhecida como a Tia da Faxina, para anotar essa frase e mandar colocá-la em minha lápide.
O dia acabou, mas a imagem da mensagem na tela de meu computador continuou me assombrando durante a noite, e revirando-me na cama me pegava recitando esse mantra: - Aquilo não iria acabar bem, não iria acabar bem, não iria acabar bem...O novo dia nasceu, sem bons augúrios, devo salientar. Fui trabalhar, e a primeira providência foi telefonar ao meu amigo e confirmar se iríamos ou não ao café naquele dia. Após curto pensar, respondeu-me que não, não deveríamos sequer estar na mesma cidade quanto mais sob o mesmo teto onde aquele “asno-priápico” estaria imolando mais uma fêmea no altar de seu ego sem tamanho.
Mas como disse anteriormente - linha cinqüenta e quatro - éramos irremediavelmente viciados em cafeína, e alguma coisa em nosso interior ansiava ver no que daria aquela sua mais nova conquista.
Nossa mesa esperava por nós, entramos, as mocinhas nos ignoraram com uma altivez e desprezo só dirigido aos mais execráveis dos leprosos. Uma vez sentados, estalamos os dedos e ficamos aguardando:


1. O café,

2. O animal no cio, ou o que chegasse primeiro.

Ele chegou com o sorriso imbecil e arrogante de sempre, cumprimentou as meninas, que para nosso desgosto eterno, retribuíram com sorrisos, beijinhos e fazendo trejeitos faceiros e simpáticos.

- Responda-me leitor, qual o segredo dos cafajestes? Sigamos.

Mas para a nossa alegria, a única desde que essa assombração surgiu em nosso horário de almoço, ele não se sentou à nossa mesa, e passando por nós, foi sentar-se na mesa da frente, onde no dia anterior Solange havia surgido.
Poucos minutos depois ela chegou sorrindo mais que no dia anterior, reparei nisso, comentei com meu amigo e continuamos esperando pelo café, que depois de nossa mudança de comportamento passou a demorar cada dia mais. Solange dirigiu-se à mesa onde estava o Fauno risonho.
Emudecidos fomos servidos. Meu café que pedi com leite, veio sem; e de meu amigo que pedira cappuccino, recebera um chá de menta, mas já estávamos acostumados a esse tratamento, pois no fundo, involuntariamente, a culpa era nossa.
Enquanto as mocinhas recolhiam nossas bebidas erradas entrou no Café um homem estranho, estranho até para os padrões das pessoas que conhecíamos. Ele parou na porta, esperou que seus olhos se acostumassem à pouca iluminação, piscou, uma, duas vezes, e com passos firmes e decididos dirigiu-se à mesa do casalzinho de ocasião.
Não pudemos ouvir o que ele falou, mas pelo gesticular das mãos a coisa não estava boa, vimos nosso Sátiro tornar-se um gatinho assustado, vimos com baboso júbilo o “predador” olhar para os lados procurando uma saída, uma fuga. Com prazer – que encontrou um paralelo junto com a chegada de nossos pedidos, agora corretos – vimos o homenzarrão agarrar o falastrão pelo colarinho da camisa e levá-lo de encontro à sua cara grande, ornada de um não menos grande óculos quadrado, onde de sua boca voavam perdigotos furiosos.
Meu amigo olhou para mim, eu li seus pensamentos, e antes que ele articulasse qualquer palavra, sílaba ou sentença, respondi-lhe em alto e bom som:

- Não vamos apartar nada! Que vença o melhor!

Enquanto sorvíamos o café, assistíamos aquele espetáculo que prometia muito mais que simples ameaças, que nos prometia sangue, muito sangue e quem sabe, morte! Crime passional. Morte!
Engasguei-me na segunda vez que pensei na morte e manchei a minha camisa marrom. Sorrindo comentei com meu amigo que essa mancha seria uma espécie de medalha, um marco a ser comemorado todos os dias, e uma vez por ano como o “Dia em que Ele Morreu”!
Fizemos tim-tim com as xícaras vazias e pedimos uma garrafa de água com gás para celebrar.
Esperávamos com mórbido prazer o desfecho – sangrento quero salientar - desse drama, o sujeito deveria dar logo o golpe fatal, logo mesmo, não deveria deixar de forma alguma que o celerado abrisse a boca, ele deveria ser abatido enquanto estava na posição de presa, pois se lhe fosse dada a oportunidade de argumentar, tudo estaria perdido.
Enquanto bebíamos a gasosa água, nossos olhos brilhavam de satisfação ante o fim derradeiro daquele ruminante, cuja sua segunda língua era o português, ele, ele, ele...

- Não! – gritamos em uníssono.

Enquanto o gigante míope tomava ar para continuar a espinafração, aquele macaco no meio-caminho evolutivo começou a falar.
Jogamos a água fora, pagamos a conta e fomos embora.
Tudo estava perdido, amanhã seria outro dia igual ao de hoje, novas bravatas seriam despejadas em nossos ouvidos, mais um dia de tortura, trinta minutos de agonia, trinta minutos de cafés errados, trinta minutos de cafés frios, trinta minutos que levariam uma eternidade para passar...









Um comentário:

solaris disse...

Essas serpentes sempre a nos rodear....