2011/02/15

ITINERÁRIOS

Cid abre a janela, um ônibus passa na avenida, e ele vê um jovem encostado, quase dormindo com a cabeça encostada no vidro, e nesse momento, Eli –esse é o nome do jovem – dá com seus olhos nos olhos de Lena, que sonhadora, pensa em João no momento em um jato passa sobre a cidade, João vai embora do país, cansado e desiludido – jurou nunca mais voltar.

O motorista do coletivo segue seu caminho diário e rotineiro, impermeável às misérias que carrega ou o cerca, e por pouco atropela a velhinha na faixa de pedestre. Ela levanta a mão e roga-lhe alguma praga, o ônibus faz uma curva à direita e passa pela banca de jornal de Pedro que acena-lhe um bom dia e volta a leitura do jornal do dia que estampa um crime hediondo, como qualquer crime deveria ser, hediondo, e por um segundo pensa ter reconhecido a foto de um dos suspeitos nos passageiros do ônibus que acabou de passar, mas deve ser engano pensa, pois ele vê todo o tipo de gentes durante o seu dia, e seus dias são tão longos...

Cid continua à janela, olha para o céu, acha que chove, mas Cid não tem inclinações para meteorologista e sempre erra suas previsões, toca o telefone, imagina que seja Verônica, erra, erra feio, pois não te inclinações para adivinho, atende e é Débora, ele foge de Débora há semanas, como ela encontrou seu número? Sabe que nunca saberá, Cid nunca sabe, desconhece a leitura dos sinais, não reconhece o perigo nem tropeça nele.

Atende ao telefone com voz fria e distante, impessoal, Débora pergunta se tudo está bem, ele diz que sim, Cid mente mal, ela percebe, chora e percebe que Cid não a quer mais, silêncio e por fim desliga sem despedir-se.

Cid fica com a mão direita sobre o aparelho por alguns segundos, talvez o telefone tocasse outra vez, e dessa vez seria Verônica, mas o aparelho não tocou e Cid retornou à janela e vê nuvens pesadas de chuva cobrir o céu, a chuva será rápida, diz, mas ele erra e choverá por quatro dias e meio. Enquanto esses acontecimentos ordinários se desenrolam, Eli chega à escola, atrasado, corre para a sala de aula, é repreendido pelo professor, hoje é dia de prova, havia esquecido, o dia vai de mal a pior, pode sentir isso nos ossos. Lá fora o céu já está carregado, além da bronca, ir mal na prova chegará molhado em casa, quem entende esse clima?

Lena no escritório não consegue focar-se no trabalho, de quando em quando olha para o celular, sente ganas de ligar para João, talvez ele ainda esteja com o seu aparelho ligado, talvez ela consiga falar com ele, talvez ele mude de idéia e reembarque de volta ao descer no aeroporto, talvez, toca o interfone e ela não terminou o relatório, talvez ele esteja lendo o livro que ela lhe deu, não daqui a pouco entrego os relatórios, talvez ele ache a carta que ela colocou na página trinta e cinco, mais dez minutos e já levo os papeis!, talvez, talvez eu peça as contas desse escritório e vá atrás dele...

O motorista já começa a segunda viagem do dia, a velhinha volta das compras com a sacola cheia de legumes, traz sob o braço esquerdo uma baguete, a chuva fina começa, o motorista liga os limpadores do pára brisas, e a velhinha amarra um lenço sobre a cabeça, o ônibus faz a curva no momento em que a velhinha atravessa a rua, ele freia para dar-lhe passagem, mas o carro que vinha esquerda segue em frente, passa numa poça d’água e molha a velha, essa encharcada faz o mesmo gesto ao motorista do ônibus, ele sorri, está acostumado com ela, e pensa como vai ser o dia em que ela morrer, ela chega à calçada e faz outro gesto ao motorista e discretamente sorri, essa é sua única alegria, ofender o motorista, e pensa como será o dia em ele mudar de linha. Em casa enquanto corta cenouras pensa no motorista e chora com as cebolas.

Cid fecha as janelas, a chuva engrossa e começa a molhar o seu quarto, o telefone não toca mais, ele volta a deitar-se, tentar ler o livro que comprou num sebo, começa a folheá-lo, em busca de ilustrações que lhe prendam a atenção, e na página trinta e cinco cai uma carta que ele lê com avidez, e desinteressa-se pelo livro, na casa da velhinha a sopa está quase pronta e o telefone toca, ela atende lentamente, sem pressa, ela já não tem pressa para mais nada, é a filha dizendo-lhe que o avião do filho já decolou e que ela torna a ligar quando ele chegar a Londres, lá já deve estar fazendo frio, diz a velha, e eu aqui fazendo a sopinha de legumes que ele gosta tanto, falam mais uns poucos minutos e ela desliga.

A chuva engrossa, troveja, e logo chega a noite.

A sopa de legumes esquenta os ossos da velha, antes de deitar-se ela vai ver o que falta na geladeira, assim ela terá a chance de xingar o motorista do ônibus a caminho de mercado amanhã.

O motorista enquanto janta com a família, diz que acerta o relógio pelos gestos obscenos da velha, por isso nunca atrasou o seu trajeto, e por causa dela ainda vai conseguir uma promoção, uma linha melhor, Verônica ri, e serve a sobremesa ao marido.

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