2018/04/24

POR QUE ELA ME DEU AQUELE BILHETE?




Acabado o almoço, sigo pra cafeteria encontrar alguém para desfrutar o melhor horário do dia. Lá encontro meu amigo *** (prefiro não declinar-lhe o nome, pois tudo o que escrevo é baseado em fatos reais), dirijo-me à mesa.

Sentado, soprando a fumaça da xícara de café, lamentava-se:

- Ainda não consigo compreender a razão daquele papelzinho com o número do celular que ela me deu... Para que ela me deu o número do celular se não era para sair comigo?

- Talvez... – Empaquei, enquanto vagarosamente dissolvia o adoçante de meu café. Entenda, não há talvez para papéis com número de telefone.

 - Sim, vamos, responda.

 - Talvez... – Empaquei pela segunda vez, com o adoçante já dissolvido e o café pronto para ser sorvido. O que eu poderia responder para ele naquele momento?

 - Eu imaginei, digo, afirmo que entendi que ela queria sair comigo. O que mais poderia ser? Afinal o que significa nesse mundo de meu Deus um bilhete com um numero de telefone?

 - Sim, só poderia ser isso, sem sombra de dúvida ou talvez... – Empaquei outra vez. Indagava-me, enquanto bebia aquele café, ser cruel e dizer a verdade ou olhar para o céu atrás de discos voadores? O céu, lá fora estava azul, seria fácil encontrar algum UFO por lá...

 - E o que eu fiz?  - ele continuava com a sua peroração, que só por pura piedade cristã eu fingia que prestava atenção. - Liguei e marquei um encontro. Às seis horas da tarde fui encontrá-la na saída do trabalho. Fui sem dinheiro, só com meu vale-refeição, a uma pastelaria. Dei a entender que havia deixado de almoçar para fazer um lanche mais substancioso com ela. Pedi dois daqueles chopes de vinho. Olhei dentro dos olhos dela e propus um brinde.

Enquanto ele falava consegui beber meu café. Estava de olho num doce português, na próxima oportunidade pediria um...

 - E... – indaguei sem muita convicção, sou fissurado em doces portugueses...

 - Ela levantou a taça e brindou: - “À nossa amizade!”

 - Meu Deus! – engasguei-me com o ar respirava. A garçonete veio acudir-me, aproveite e pedi outro café e um pastelzinho de Belém.

- Sim! Meu Deus, onde fui me meter! – ele, dramaticamente levantou as mãos aos céus. - Foi o que me passou pela cabeça naquele instante. Fiquei mudo e dentro da minha cabeça as palavras “amizade” ecoavam: - “amizadeamizadeamizadeamizade...

 - E ela? –perguntei agora realmente interessado no desenrolar do drama do amigo.

 - Bebia o chope sofregamente, como que tivesse uma desculpa para não falar nada. Olha através de mim, além de mim, contava os ladrilhos das paredes da pastelaria... Pensei com meus botões, se ela olhasse para o relógio não responderia pelo atos...

 - E você?

 - Olhava para ela como quem olha para um acidente de trânsito, um desastre, era o que eu via um desastre, e o acidentado era eu. Via ali, na mesa, um cadáver. Você já viu um cachorro atropelado numa estrada?

 - Sim. Feio de se ver... – adoçava o café e repensava a ideia de comer o doce, a imagem do cachorro atropelado mexeu com a pinha psique.

 - Pois é. Era isso o que eu (me) via ali. Um desastre feio, e o desastre era eu. Ia voltar pra casa a pé, não tinha nem grana para pegar um ônibus, e por causa dela tinha recusado uma carona pra casa, tudo para um brinde de amizade...

 - Que situação... – encarei o doce.

 - Que situação a minha, ali naquela hora. Tudo congelou. O papo, os planos, o futuro, os filhos, os passeios de mãos dadas ao por do sol, nossas bodas de ouro no nordeste e tudo o que eu via pela frente era o caminho que eu faria a pé indo para casa. E ameaça chover, lembra?

 - Mas você não tentou nada?

 - Tentar o quê? Falar mais o que depois desse brinde “à nossa amizade”? Minha vontade na hora foi pegar uma arma e matar todos os meus amigos, para nunca mais precisar pronunciar a palavra “amizade”.

- Obrigado pela parte que me toca. Matei o café num gole só, para segurar a risada, consegui não me engasgar de novo.

- Desculpa. Sei que foi mal... – vi que seu arrependimento de verdade. Relevei.

 - Tudo bem, continue. Pedi outro café. O terceiro até aquele momento. A vida dele indo pro buraco e levando meu estômago junto.

 - Ela bebeu todo o chope de uma vez sem respirar e pediu outro. Além de acabar com minhas ilusões, acabaria também com o saldo me meu vale refeição. A miserável! Outro chope e mais um ônibus que eu deixaria de pegar...

 - Então ela era boa de copo? – senti uma coceira no lado mau-caráter.

 - Boa de copo?... Ela era boa de bico. Responda-me: para que ela me deu o telefone? Qualquer um entenderia que era uma cantada... Por que só comigo tinha que ser diferente? Onde eu errei na interpretação do bilhetinho?

 - Mulheres! – Argumentei filosoficamente, mantendo-me assim numa posição ambígua sem me comprometer. Olhava para o prato onde estivera o meu pastelzinho de Belém, e pedia forças a Deus para não rir.

 - Mulheres, mulheres, mulheres! Deveriam todas ser enviadas para o lado escuro da lua. Se eu pudesse viver sem elas...

 - Quem as entende...? – olhava a garçonete que me trazia o terceiro café. Pediria ou não outro doce? Minhas escolhas também não eram fáceis...

 - Olha aqui. – Tirou do bolso um papelzinho dobrado e amarfanhado. Veja os números, veja a letra dela. Tem alguma coisa aqui que dê a entender que ela queria só amizade comigo? Leia, leia, leia!

 Para não ter um dos olhos vazados pelo papel, peguei-o de sua mão. Gravei na memória para depois jogar no bicho, daria, certamente, vaca ou burro!

 - Realmente, - cinicamente olhava o papel – realmente nada aqui dá a entender que era um bilhete de “amizade”...

 - Não precisa ser irônico na pronuncia da palavra amizade! – Rosnou.

 - Quer que eu rasgue essa porcaria? – Ameacei. Muito café desperta a minha Besta interior...

- Não! - Disse tremendo, quase gemendo – não rasgue, preciso ler e reler, analisar, estudar esse papel até entender onde está escrito que ela queria só a minha amizade.

Pegou o papel de minha mão, olhou-o contra luz e tornou a guardá-lo no bolso.

 - Até quando você vai curtir essa decepção? – esvaziava a terceira xícara de café...

 - Essa eu vou levar paro o túmulo, e quando reencarnar vou me lembrar disso outra vez...

 - Carma é uma coisa, isso já está ficando meio psicótico. – limpava da camisa os farelos do docinho.

 - Agora você vai dizer que estou louco, imaginando coisas, vai dizer que estava patente aqui no bilhete – e outra vez ele tirou o papelzinho do bolso – que ela queria só a minha amizade?

 - Veja – disse olhando para o relógio – está quase na hora de voltar a trabalhar. Vamos deixar isso prá lá, esqueça; pelo menos você bebeu um chope e... – fui interrompido.

 - Que chope? Antes de pedir o segundo ela bebeu o meu. Disse que ia esquentar e tomou o copo da minha mão...

 - Quer dizer que a noite foi perdida mesmo, você nem mesmo bebeu? Que...

 - Nem pronuncie a palavra, nem pronuncie. Me sinto assim desde de aquela noite. Maldita mulher, maldito bilhete, maldito mal entendido, maldito chope caro, maldita vida essa que me leva prá...

 - Nem continue! – Disse levantando-me da mesa. – Deixe um pouco para amanhã. Por hoje chega. Vamos trabalhar.

- Vá indo na frente, tenho uma coisa a fazer e devo fazer sozinho. – Seus olhos marejados encaravam o bilhete.

- O que você vai fazer? Não faça besteira, pense bem, não tem mulher que mereça... – outra vez interrompido.

 - Pode ir em paz.  Fique sossegado. Para provar que não vou fazer nenhuma besteira te prometo ligar mais tarde. Vá, vá.

 Saí um pouco mais aliviado, da porta o ouvi pedir:

- Garçom um chope!

Pensei com meus botões:

- Vai tirar o atraso de ontem...

De volta ao escritório tive um acesso de riso.

- Ah! Esses amigos que eu tenho!





Nenhum comentário: