2018/04/10

CASA DE CHÁ “A GUEIXA E O SAMURAI”



- “Acho que esse negócio não vai dar certo, esse povo aqui não tem sensibilidade (na verdade quis inteligência, mas achei melhor usar outra palavra, assim, mais suave...) e perfil para isso.” - falei, mas ai já era tarde demais, como vocês perceberão. Antes de qualquer coisa, mais uma caneca de saquê. Sigamos com essa triste desdita:
1.                 O Severiano – Biu - para os íntimos demorou muito tempo para entender qual o papel dele naquele drama. Aquela roupa, penteado, tamancas de madeiras, aquele chapéu de bambu que mais parecia um funil era demais para aquele pobre e minúsculo cérebro desidratado e anêmico. Vivia reclamando pelos cantos, demonstrando seu descontentamento, tantos às meninas, ao patrão e pior, aos fregueses... Não poderia dar certo mesmo... Toda hora ruminando: - O que mãinha vai pensar se me vir assim? Cadê meu facão? Homem macho de verdade não se submete a essa vergonha... – Resumindo, demorou até que demais para isso tudo dar errado.
2.                 As meninas então. As quatro que o patrão convenceu a entrar nessa empreitada... Suzaninha, a Yuriko; das Dores, a Yushiko; Tiana (Sebastiana) a Tashiko e a Mariinha, a mais nova, chamada de Flor de Lótus, não tinham o menor perfil para a empresa. Elas nem sabiam o que estavam fazendo lá. Foi um inferno do começo ao fim. Será que era assim tão difícil assim entender a diferença entre servir chá e prostituição?
3.                 A casa. Balancei a cabeça até quase cair do meu pescoço quando a vi. Não sabia qual pergunta gritar primeiro. Onde o patrão arrumou uma casa de bambu e paredes de papel ou quem foi o louco que construiu aquela obscenidade para ele? Detesto a miséria, não porque ela nos priva de muitas coisas, mas porque ela nos submete a muitas outras coisas piores... Via aquele sobradão, bandeirinhas na entrada, portas de correr – que tinha certeza seriam chutadas para frente quando entrasse o primeiro freguês. E aquelas paredes feitas de papel de seda com motivos orientais, aquelas borboletas, Monte Fuji, japonesas de sombrinhas... Tudo ali cheirava a erro e prejuízo... Consolava-me repetindo o mantra (aprendi isso com um velho careca vestido com uns panos cor de laranja que o patrão trouxe para conhecer a casa): “Isso não problema meu, esse não é meu dinheiro, meu salário está depositado no banco.” Aquilo tinha tudo para dar errado, mas por que só eu percebia isso?
4.                 Vistoriando a dispensa chamei a atenção do patrão para o detalhe das bebidas: - Saquê e chás? Explicou-me o douto empresário que ele formaria uma comunidade, educaria uma geração, prepararia aqueles miseráveis para o mundo! – Arrogância! – sibilei. Nenhuma cachaça patrão? Nada de carne de sol? Neca de farinha? Sem sanfoneiro?
5.                 Música! Toshinori-San! Nosso tocador de berimbau de arco ou coisa parecida com isso! Fracasso esperado e cumprido. Onde que, na nossa cidade, alguém ia sair de casa à noite, depois de um trabalho nesse calor dos infernos para ouvir um sujeito tocando berimbau e ainda por cima com arco, um óin-óin-óin de furar os ouvidos de qualquer cristão! Não ia dar certo, não ia dar certo, mas eu repetia: “Isso não problema meu, esse não é meu dinheiro, meu salário está depositado no banco.”.
6.                 Primeiro dia, quinta-feira: As pessoas passavam de outro lado da calçada com medo de serem visto diante daquela casa esquisita, tinham medo que com um vento noroeste mais forte ela viesse abaixo. Segundo dia, a mesma coisa. O cheiro do prejuízo começava a atrair moscas.
7.                 Sábado. O grande dia. Toshinori-San no cantinho dele tocando aquele instrumento amaldiçoado dos infernos espantava as moscas, Yuriko, Yushiko, Tashiko e Flor de Lótus, todas vestidas de quimonos com motivos florais, sentadas no chão de tatame em volta de uma mesinha esperavam pelos fregueses.
8.                 Severiano, travestido de Samurai, kataná à cintura, cajal reforçando seus falsos traços asiáticos e com cara de bravo (motivado pela briga na hora de maquiar os olhos; - Se mãinha passa aqui e me vê maquiado feito quenga?) não ajudava muito a atrair fregueses...  Aquele cheiro me perseguia. Reclamando ao patrão sobre isso, tudo o que ele fez foi mandar queimar uns incensos...
9.                Por fim, às 23h00min horas (precisei chamar as “gueixas que já haviam se recolhido com os quimonos, pois não havia modo de colocar naquelas cabecinhas que quimono não é roupa de dormir) entraram uns estudantes de Direito. – O cheiro de prejuízo nesse momento tornou-se insuportável, mas: -“Isso não problema meu, esse não é meu dinheiro, meu salário está depositado no banco.”
10.                       Os estudantes sentaram-se à volta da mesinha de laca preta com motivos iguais às cortinhas e dá-lhes Monte Fuji coberto de neve (um estranho conceitos pra essas bandas que nem inverno tem), borboletas e as japonesas com sombrinhas (segundo estranho conceito, pois aqui não chove e nunca passou pela cabeça de ninguém por aqui se proteger do sol), pediram cerveja; - Cerveja não servimos senhores, respondeu Yuriko sorrindo um sorriso de dentes amarelos e tortos causando a segunda má impressão.
11.                       - Uísque! Pediu o segundo. – Uísque também não servimos senhor, respondeu Yushiko solícita e medrosa – não sorrindo para evitar piorar ainda mais situação (o pivô do canino estava perdido desde ontem).
12.                       Toshinori-San entusiasmando-se com a presença de fregueses – alguém haveria de reconhecer seu fabuloso talento, segundo ele – furiosamente começa a executar uma peça clássica do Japão Feudal, e o óin-óin-óin come solto!
13.                       Positivamente a música não acrescentou nada de positivo ao ambiente. Por via das dúvidas pedia a Severiano, o Samurai da tabuleta na porta, que vigiasse os fregueses enquanto ia lá escritório buscar mais incensos.
14.                       Nos fundos, lá no escritório comecei a ouvir uns risinhos, sorri junto e comecei a abanar o cheiro de prejuízo das minhas narinas, abri a gaveta da escrivaninha para guardar de volta as varetas de incensos e retornei lá prá frente...
15.                       Esse é o momento que tudo fica confuso, nebuloso, turvo, pois onde eu deveria ouvir risos e selvagens óin-óin-óin-óins reinou por longos e intermináveis segundos o mais profundo e negro dos silêncios. Mal tive de recorrer aos incensos, fui apanhado pelo cheiro do prejuízo e tudo começou a se acabar.
16.                       Yuriko, Yushiko, Tashiko e Flor de Lótus corriam descalças em direção à rua aos gritos, os cabelos soltos (que trabalho tivemos para alisar aqueles fios crespos e rebeldes), os estudantes de direito atrás delas e de facão na mão, esquecido de sua kataná de bambu, Severino com os olhos manchado de cajal. As paredes de papel de seda destruídas estavam espalhadas pelo tatame, pedaços de borboletas, de japonesas com sombrinha, restos do Monte Fuji por aqui e por ali...
Dizem que encontraram Severiano andando pelas ruas murmurando palavras que ninguém entendia e segurando uns pauzinhos que soltavam fumaça...
Os mandacarus floresciam, talvez chovesse, enfim...



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