2017/05/19

CHEFE NEY SOFRE

(Drama Relâmpago!)



Local: Arquivo Geral de uma repartição pública.

PERSONAGENS:

Chefe Ney – Tido e havido por avis-rara, um abnegado e primeiro mártir do serviço público. Não tem nem dá sorte com seus subordinados.

Agente Mostarda - Típico funcionário público, com agravante de não tomar banho, não trocar de roupas por meses e meses a fio. Ladrão de comida, flibusteiro covarde que ataca a cozinha e rouba comida da geladeira e das mesas dos colegas trabalho, vagabundo, chorão e endividado em todas as praças. Quando, na falta de que fazer, liga para as ex-mulheres e as xinga, sempre usando o telefone da repartição(para economizar!). Sua única fraqueza?, o gerente do Banco do Brasil.

O “Almirante Inglês*” – Outro funcionário da mesma cepa. Um herói que enfrenta qualquer empreitada no intuito de fazer nada. Foge do trabalho com um vampiro foge da luz, o talvez explique e justifique sua cor pálida. Sonha em ser um novo Agente Mostarda, seu ídolo confesso.

Adinilza** - A Viuvinha ProfissionalEspecializou-se na sagrada arte de segurar mãos de moribundos. (e depois tentar receber uma polpuda pensão), um dia há de conseguir. Ela se esforça!

Josyanderson - Outro tipinho, típico incompetente que sonha ser chefe de alguma coisa em algum lugar. (E sim, ele chegará.).

 Tia do Café – Pessoa mais importante de qualquer repartição pública (vide a piada do leão que fugiu do zoológico) – entra muda e sai calada.

 Telefone – O eterno preterido.







PRIMEIRO E ÚNICO ATO




Telefone toca.

O Agente Mostarda tem a mesma estratégia do “Almirante Inglês*” - velho funcionário, com uma longa lista de desserviço ao serviço público - para não fazer nada, questiona tudo suavemente, interrompe qualquer argumento e desgasta o sujeito que quer fazer alguma coisa.

Chefe Ney, passado poucos segundos após sua explanação, por fim, desiste. Sai, vai tomar café, tentar acalmar-se. Ele veio de uma cidade grande no intuito de moralizar o serviço nessa repartição, mas sua missão não será fácil.


(alguns tic tacs depois...)

Chefe Ney volta.  

Agora Adinilza - A Viuvinha Profissional – também está fazendo e seu número para contra o discurso do Chefe Ney com o uso majestoso de mímica & pantomima. Ela começa com uma falsa tosse - (não consegue chamar atenção), pigarreia (o mesmo efeito), deixa a caneta cair ao chão (nada), lentamente começa a choramingar, Chefe Ney dá-lhe seu lenço e pede-lhe que se dirija ao banheiro para se recompor. Agora ela começa a chorar de verdade (percebe que seu número, tão ensaiado, falhou) e sai da sala.

Telefone continua tocando...

Chefe Ney, tenso, sai à rua. Resolveu voltar a fumar.

(passam-se alguns minutos)

Chefe Ney volta.

Telefone continua tocando...

A conversa é reiniciada e o tempo vai passando...

Agente Mostarda olha fixamente (ah! aqueles olhos baços azuis...), como se estivesse preocupado, balança cabeça de cima para baixo, da direita para a esquerda negativamente e afirmativamente, levanta o dedo indicador e já começa a tartamudear, balbuciar e emitir estranhos grunhidos emulando sugerir, aludir ou citar algo no intuito de confundir, dispara o inexorável:

 “- Veja bem!”
...e acaba por ganhar mais tempo para não fazer nada.
Consegue a atenção de todos à sua volta.  

     (mais tempo perdido!)

Sagra-se vencedor!

(a claque aplaude histérica!)

Chefe Ney, de volta ao arquivo encara o Agente Mostarda.

Chefe Ney pensa:

­- Terei dor de cabeça hoje.

Chefe Ney percebe que hoje não será resolvido mais nada e coçando a cabeça, pede licença e sai para tomar outro café, fumar outro cigarro e ir à loja de caça e pesca praticar uns tiros. 

Chefe Ney retira-se da repartição tocando seus snujs e murmurando seu mantra:

- “Ainda irei ao Ganges implorar a Ganga para que minh’alma imortal não ressuscite outra vez, vivo muito cansado de sofrer.” - Chefe Ney é fã ardoroso de George Harrison.

Telefone continua tocando...

À distância e nas sombras, o subchefe, e eterno chefe-substituto Josyanderson - O Sub-humano! - naturalmente, olha como que com sono para tudo isso e não diz nada, pois em seu intimo pensa:

- Quando o Chefe Ney cair reinarei soberano e porei essa canalha na linha! – Josyanderson, o subchefe, saliva!

O tempo passa e:

Agente Mostarda voltou para sua pocilga leve como uma libélula soprada pelo vento. Abre a gaveta e joga migalhas, tiradas do bolso de sua jaqueta, de pão velho para as moscas que cultiva em cima de folhas de alface.
Ele está satisfeito, embaralhou tudo e não fez coisa alguma, venceu mais uma vez. Em seu íntimo ele se vê como o toureiro que matou o miúra, o gladiador que matou leões, um semi-césar, ele sente-se o Grande Deus do Nada...

Amanhã será outro dia...

Outra luta.

Telefone continua tocando...

Agora Agente Mostarda está sentado em seu trono, olha para o relógio de pulso, com ar falsamente parvo comenta enquanto puxa do funda de sua gaveta um sanduiche de mortadela:

- Chefe Ney é um incompetente, fala e fala e não explica nada. - Perdigotos são disparados em todos os pontos cardeais e colaterais.

Telefone continua tocando...

A Viuvinha, decana das viuvinhas de repartição com os olhos mais fundos ainda (muita maquiagem, tá na cara!), voltando do banheiro onde estivera chorando até agora, comenta com a tia do café, de passagem no momento:

- Esse cara é envolvente, sempre sério, parece que está engajado em não produzir nada – seus olhinhos fundos de viuvinha profissional brilham lúgubres – um vagabundo fantástico... – Não a toa está galgando uma chefia aqui.

Pegando a tia do café pelo braço, indaga:

- Ele se locupleta? É solteiro?

15h23, os demais funcionários fogem.


(Som de gongo!)

Telefone continua tocando...

(Cai o pano)




*Aqui a modéstia e o medo de um processo nas costas me impedem de declinar-lhe o nome real

.** Novamente o medo e a prudência me impedem, outra vez, de declinar-lhe o nome recebido na pia batismal.




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