- Dona
Fuinha fez cento e dez anos mesmo!
- Você vai
cumprimenta-la?
- Por
nada-nada-nada-nada nesse mundo de Deus. Alias, já chamaram a Saúde Pública,
Defesa Civil, bombeiros? Para entrar na edícula?
- Pois é...
Pela lenda hoje é o dia de seu passamento...
- Velha dos
infernos, vai enfim encontrar o “Pai”.
- Deus?
Ela?
- Que Deus!
O pai dela é o demo, príncipe das trevas, o tinhoso, o coisa-ruim, o maligno, o
diabo.
- Será que
lá nos infernos ela se dará bem?
- Capaz...
O fogo e o enxofre há de limpar o mau cheiro daquele corpo...
- Corpo?
Que corpo?
- Humm... O
receptáculo da alma, quiçá?
- Dona Fuinha
e alma na mesma sentença? Não dá liga, não orna não.
- Tem
razão...
- Minha
avó, quando era pequeno, me contou a história dela. Nunca acreditei até me casar
– o que nunca pensei também... – e vir
morar aqui no bairro.
- Sim,
coisa de gente encantada, amaldiçoada, gente com o batismo vencido. Desde os
sessenta anos amaldiçoada desse jeito... Mas nunca soube os detalhes. O que tua
avó contava?
- A velha
contava que Dona Fuinha, aliás, Dona Maria Amália Fiúza era uma velha, já na
época, muito má. Morta-de-fome que só, gananciosa, ambiciosa do alheio, gananciosa
madrasta de uma da pior espécie. Trancafiava o sobrinho do marido no quarto, só
deixando a criança sair para comer e beber, longe dos olhos dela, bem longe.
Não deixava a criança sentar-se no sofá, pois o lugar dele era no chão, onde os
cães não ficavam, pois esses ficavam deitados no sofá. No trabalho vivia a falar mal dos colegas. A
roubar comida das marmitas na geladeira. Humilhava o marido, flertava
descaradamente com os motoristas, ou qualquer outro funcionário subalterno,
sempre falando: - Isso é que é homem, não esse traste que mora na minha casa, ênfase
no “minha casa, minha comida, minha cama, minha geladeira”. Era desprovida de
qualquer graça, beleza ou simpatia, baixinha, tinha gorda e enorme que era -
como explicar isso? - dois pares de joelhos! Pernas tortas. Cabelos tingidos
com uma cor criada exclusivamente para ela, só pode ser essa a explicação! Uma
coisa entre palha ressecada e bosta seca. Dentes encavalados, sempre com comida
presa entre eles, voz agudíssima, quase um grasnar. Bajuladora de chefes, de
diretores, de gerentes de bancos, de qualquer um que ela julgasse que lhe fosse
superior. Sempre com uma palavra ruim, cruel, desabonadora, venenosa na ponta
da língua. Eternamente desagradável. Ate que um dia, num desses dias que em
nada promete fazer alguma diferença na biografia do cristão sobreveio.
Aconteceu nesse determinado dia de ela estar falando mal do “negrinho”, que se
dependesse dela, comeria uma única vez por dia, dentro do quarto dele,
poupando-a assim de olhar para aquela fuça preta que lhe causava nojo e
repugnância, quando um senhor, à grande custo segurando sua raiva ouvindo tanta
desgabo chegou-lhe de chofre e olhando em seus olhos de roedor preferiu-lhe
essa praga:
- “A senhora é a pessoa mais desagradável que
já vi e ouvi em toda a minha vida. E a senhora não faz ideia de quanto eu já
vivi... Pois saiba que eu desejo, e assim será, que a senhora viva, a partir de
hoje, mais cinquenta anos. Quero que a senhora viva com dores, viva sofrendo,
quero que a senhora viva e veja todos ao seu lado morrendo, quero que a senhora
sofra dores, quero que a senhora chore lágrimas de sangue, que a senhora se
arrependa, e somente um dia depois dos cinquenta anos que agora lhe dou a
senhora morra, não que descanse, mas que morra. Mas não pense que há de
desfrutar desses anos, não, não há de. Seus dias serão de agonia. Fome, terás
tanta fome, que usaras focinheira para não se auto devorar, pois, há de, quando
ninguém estiver por perto, arrancar pedaços da própria carne para se
saciar. Quando então chegar perto do
fim de seus dias, toda a podridão de seu corpo alma tornar-se-ão podridão. Todos à suas volta afastar-se-ão de
nojo. Terás por companhia nesses últimos dias somente os abutres e os comedores
de carniça, pois é isso que és por dentro hoje, é assim que sairás desse mundo
quando sua hora chegar.“
- Cinquenta
anos sofrendo essa maldição e mesmo assim continuou má até o fim...
- Quantos
gatinhos e cachorrinhos intoxicados com chumbinho, pardais, sanhaços,
andorinhas, todas envenenadas naquele chafarizinho. Velha infeliz dos infernos
vivia se arrastando feito assombração apoiada nas paredes. Meu pai dizia que
sempre a via revirando latas de lixo em busca de restos comida. Roubava roupas
dos varais. Mas o pior era quando ela começava a gritar...
- Estava
esquecendo essa parte. Ela gritava por conta das dores de dente. Na praga ainda
estava que ela sofreria de fome eterna e dores em todos eles. Mas quem a viu há
uns anos atrás disse que já estava completamente careca e banguela. Cega, surda
e cada dia pior de caráter. Essa morreu tão má como no dia em que nasceu... E
não sobrou ninguém da família para chorar sobre a sua carcaça. Nem filhos, nem
netos, bisnetos. Que a terra lhe seja muito pesada.
- Essa
desgraçada vai ser enterrada mesmo é como indigente, mas o que me preocupa
mesmo é o maldito cheiro de carniça que ficará no bairro por muitas e muitas
gerações... Isso vai continuar desvalorizando os imóveis.
- Que
Belzebu[i] e
leve com todas as moscas do bairro!
[i]
Belzebuth ou
Belzebub ou Beelzebuth, príncipe dos demônios, segundo as Escrituras; o
primeiro em poder em e crime depois de Satanás, de acordo com Milton; chefe
supremo do império infernal, de acordo com a maioria dos demonógrafos entre
eles o nosso demonólogo plantonista Doutor Vadinho Madeira.