2016/11/22

O VELÓRIO



Não, não foi nada fácil estar ali. Café de coador, ralo, sem gosto e, com adoçante, pior. Gente quase desconhecidas, quase totalmente esquecidas zanzando por ali. Choro, chororô, dramas, ceninhas, um espetáculo patético...
Pois é, eu não queria estar aqui. Trabalhando o dia seria bem melhor, e olha que meu emprego é...
Mas estava lá, ponto final.
Não, antes fosse, é só um ponto e vírgula.
Arrumei um cantinho, acendi um cigarro, lamentei a falta de um café decente, e sob uma árvore fiquei quietinho.
Procurava alguém para conversar. Qualquer um serviria desde que não estivesse chorando. Sei, é pedir muito num velório, mas tinha que haver um contador de piada, um desafeto do morto ali duro.
Sei que parece uma atitude desalmada e antipática, mas velório é um pé no saco de qualquer um, imagino que até do cadáver ali, louco para ser enterrado de vez...
Olho pro relógio. Quanto tempo vou aguentar aqui? Velório em dias quentes de verão... Devia ser proibido morrer no verão. De preto, esse sol lascado na cabeça. Desumano, pro morto tudo bem, mas para os vivos... Os cheiros daquelas coroas de flores... As velas... o inferno de perfumes baratos...
Meu Deus! Onde estou com a cabeça para pensar nessas besteiras?
O sol, sim o sol - estou parecendo um Meursault* acusando o sol. Apalpo-me, não, não trago uma arma nos bolsos, graças a Deus. Começo a espanar minha roupa para disfarçar um pouco, tem gente me olhando de um jeito estranho... Outra árvore, outro cigarro. Não crio coragem para ir ver o morto, não fossem os sanhaços já teria saído correndo daqui.
O féretro saia às dezessete horas, ainda falta muito, assim sairão dois féretros.
Será que pega mal tomar uma cerveja? Muito quente hoje...
Daqui dá para ver o caixão cercado, o que será que falam, o que conversam? Será que já estão a dividir os bens do defunto? Aposto que aquela loira magrela chora de desgosto, deve estar fora do testamento dele... Cara de mercenária, maquiada daquele jeito... Querendo impressionar quem? Será mãe de algumas daquelas crianças correndo por ali? Vendo bem, vendo bem mesmo, não há ali nenhuma que se pareça nem vagamente com ela.
Tem um gordo suarento que se continuar quente assim enfarta logo - logo depois de mim. Terno de lã e gravata apertada daquele jeito num dia como hoje...
Continuo a chutar pedrinhas, evitando chegar ao caixão. Mas tenho que fazer isso logo, vejo, faço uma cara de mártir, finjo engolir um soluço, com os olhos rasos d’água olho piedoso para as pessoas à minha volta, dou minhas condolências à viúva (aproveito para ver a cara daquele biscate loira) e vou embora, mais ou menos assim: - “Missão cumprida!”
Simples assim.
É só dar uma tragada bem forte no cigarro e, feito uma locomotiva soltando fumaça, ir em direção ao caixão.
Primeiro passo...
...segundo... alguma coisa está acontecendo...
...terceiro..., a loira saiu reclamando alguma coisa...
...perfume barato, cabelos tingidos, torceu o pé por causa do salto alto nos pedriscos, passa quase voando por mim e agora está calçadas xingando alguém.
Entro, e...
Meu Deus, todo esse tempo enrolando e estou no velório errado.